quinta-feira, novembro 26, 2009

COMEMORAR A RESTAURAÇÃO DE 1640
PARA REPENSAR A ACTUALIDADE



Muito longe e muito mais do que cumprir restritivos rituais passadistas ou nacionalistas – ambos datados e amiúde timbrados por conjunturas políticas e civilizacionais que não são as nossas –, faz todo o sentido a comemoração contemporânea desta tão significativa efeméride da existência histórica e independente de Portugal como Pátria e Nação propriamente dotada de personalidade jurídica unitária (como Estado) e de identidade colectiva – dir-se-ia mesmo espiritual e culturalmente incarnada em formas ou categorias específicas – como Povo.

O mais profundo e autêntico sentido da celebração deste dia deve pois ser assim o de suscitar e cumprir mais uma ocasião, com motivo e em tempo propícios, para pensar e reflectir criticamente aquela mesma realidade que é trazida de novo à memória e à representação, isto é, a existência histórica de Portugal e dos Portugueses, à luz de valores que são afinal formas universais e nacionais – e regionais também, bem entendido! – desse ideal perseverante ou conceito-força valorativo da formulação e da afirmação dos nossos projectos histórico-existenciais e culturais, e da defesa dos nossos interesses vitais permanentes como País independente e soberano.

Todas as evocações simbólicas e todas representações comemorativas, tendo um papel pragmático e normativo, desempenham uma importante função cívica que é “instituinte de sociabilidades”, como salientou Pierre Bourdieu.

E depois, a ideia de Restauração (restauratio) – muito ligada, por exemplo, pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa, à dimensão espiritual do Império e que é ainda uma categoria teórico-prática de raiz bíblica – sempre mobilizou Portugal, talvez até mesmo desde os primeiros impulsos da construção imaginal da nação portuguesa como pátria possível.

– Facetada e dito sob múltiplas formas, até hoje, mas localizadamente em tantas e tantas datas cruciais da vida do nosso País, e afinal também na vida de todos e cada um de nós individualmente considerado, este ideal de Restauração (que não poderá com legitimidade ser apropriado por nenhuma forma ou regime político particular!) sempre pretendeu no fundo significar algo de essencial e direccionado a uma espécie de regeneração, recuperação, salvação ou ganho de plenitude histórica, destinal ou existencial. …

– Comemorar pois a Restauração de 1640 é assim tanto um acto de memória e de reflexão quanto um acto projectivo de imaginação, de criatividade e de esperança, numa época tão assolada por crises, impasses e desalentos, como esta em que vivemos.

A nossa dita abertura (muitas vezes afinal e apenas mais um tardio escancaramento tecno-financeiro, consumista, parasitário, passivo, politicamente subserviente e subsídio-dependente!) e a nossa imparável inserção nos novos espaços e tempos da Globalização hegemónica, deve ser contrabalançada pela preservação possível daquilo que nos pode distinguir, fazer desenvolver e progredir de modo sustentado, integrado mas autónomo. Os campos discursivos globais e regionais, também aqui, enfrentam batalhas civilizacionais e ético-políticas decisivas…

Mesmo a Restauração de 1640 – embora parcialmente justificada por enquadramentos psico-sociais nacionais traumáticos … –, carece ainda de ser explicada pela articulação da individualidade cultural com a independência política; a conjuntura económica e colonial dos Impérios Português e Espanhol; as pretensões, interesses e sucessivos reposicionamentos tácticos e estratégicos das restantes potências europeias do século XVII (França, Inglaterra e Holanda); o posicionamento das classes, formações, grupos socioprofissionais e mentalidades socio-religiosas; a situação político-militar europeia (nomeadamente as revoltas regionais da Biscaia, de Évora e a decisiva rebelião nacionalista da Catalunha); o contexto conflitual dos vários esquemas teórico-jurídicos e diplomáticos vigentes, – e todos estes ainda no quadro militar puro e próprio de um processo revolucionário de re-nacionalização, como foi o que se seguiu à insurreição restauracionista e à Paz de Vestefália, sendo até que a ordem internacional decorrente desta última só terá terminado afinal em 11 de Setembro de 2001!

– Como se deduzirá, por comparação ou analogia, não estamos assim tão longe do espírito do mundo, da inteligência das sociedades e do coração dos homens de 1640, como pseudo-socraticamente poderia parerecer...