sexta-feira, dezembro 18, 2009

Encargos de Advento



A entrega do Prémio Pessoa 2009 a D. Manuel Clemente (Bispo de Porto e presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações) – uma iniciativa do “Expresso” visando distinguir a personalidade portuguesa que mais se tenha destacado durante o ano e que tiver protagonizado uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do País –, e cujo Júri (presidido por Francisco Pinto Balsemão) integra Faria de Oliveira, António Barreto, Clara Ferreira Alves, Fraústo da Silva, João Lobo Antunes, José Luís Porfírio, Maria de Sousa, Mário Soares, Miguel Veiga, Rui Baião e Rui Vieira Nery, constituiu uma agradável surpresa intelectual, um bom sinal sociocultural e uma sugestiva indicação ética e cívica bem oponível a outros factos e indícios que marcam (mas pela negativa…) o quotidiano real e mediatizado da vida corrente dos Portugueses:

– “Em tempos difíceis como os que vivemos actualmente, D. Manuel Clemente é uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo”, ao mesmo tempo que “leva a cabo a sua missão pastoral” e desenvolve “uma intensa actividade cultural de estudo e debate público”, – pode assim ler-se na Acta da Reunião daquele Júri, tal como justamente ali se realça ainda que, para além da sua vasta obra historiográfica, “a sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, de combate à exclusão e da intervenção social da Igreja”.

Nascido em 1948, Manuel do Nascimento Clemente frequentou a Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, onde se formou em História, tendo na mesma altura sido aluno residente do Colégio Universitário Pio XII (ao que já fizemos referência em Crónica anterior). Concluída aquela sua primeira Licenciatura, ingressou no Seminário Maior dos Olivais (1973), vindo depois a licenciar-se (1979) e a doutorar-se (1992) em Teologia Histórica pela Universidade Católica Portuguesa com uma tese intitulada Nas origens do apostolado contemporâneo em Portugal. A "Sociedade Católica" (1843-1853). Ordenado Presbítero (29 de Junho de 1979), foi coadjutor das Paróquias de Torres Vedras e Runa, Reitor do Seminário dos Olivais e, desde 1997, membro do Cabido da Sé de Lisboa, diocese da qual foi depois Bispo Auxiliar (2000).

Professor na Universidade Católica Portuguesa, onde lecciona História da Igreja e dirigiu o Centro de Estudos de História Religiosa, D. Manuel Clemente é autor de vários livros e estudos sobre temas das áreas de História, Teologia e Pastoral, publicados em edições próprias e Revistas da especialidade, e de entre os quais, entre muitos outros, destacamos:

Portugal e os Portugueses (2009), publicação apresentada por António Barreto, conforme anteriormente aqui já anotámos; 1810 - 1910 - 2010; Datas e Desafios (2009); Um Só Propósito. Homilias e Escritos Pastorais (2009); Igreja e Sociedade Portuguesa do Liberalismo à República (2002); A Igreja no tempo (2000); “A sociedade portuguesa à data da publicação da Rerum Novarum: o sentimento católico” (in Lusitania Sacra. Segunda série. Lisboa, 6, 1994); “Igreja e sociedade portuguesa do Liberalismo à República” (in Didaskalia. Lisboa, 24, 1994); “Fé, razão e conhecimento de Deus no Vaticano I e no Vaticano II” (in Communio. Lisboa, 10:6, 1993); “A Igreja e o Liberalismo. Um desafio e uma primeira resposta” (in Communio. Lisboa, 9:6, 1992); “Clericalismo e anticlericalismo na cultura portuguesa” (in Reflexão Cristã. Lisboa, 53, 1987), e “Notas de cultura portuguesa. Do teatro sagrado ao teatro profano” (in Novellae Olivarum. Nova série. Lisboa, 6-7, 1983).

Ora o actual Bispo do Porto, comentando na altura a atribuição que acabara de lhe ser feita do Prémio Pessoa 2009, salientou então que a referência ética era um quadro de valores, logo precisando que a sua missão era a de estar com as pessoas, “animá-las, dar-lhes esperança” e garantir-lhes que, “como representante da mais antiga instituição cultural do País, estava ao dispor” em tudo aquilo que pudesse contribuir!

E mais na ocasião acentuou o Prelado portuense: – “Agradeço, (…) reconhecendo que não sou merecedor de um galardão como este, que tomo como um encargo e uma responsabilização, também, porque sou um homem de Igreja e tento ser um homem da Cultura e da Sociedade, no sentido mais constitutivo do termo”.

– Humildes, animadoras e exemplares palavras estas, e bem a propósito da exigente quadra que atravessamos, aonde nenhum apenas pontual (voluntarioso, benemérito ou ilusório?) apoio caritativo, psicossocial ou técnico, há-de substituir-se ao trabalho solidário e fraterno da construção progressiva, paciente e pacífica, de um mundo mais livre e mais justo porque integralmente mais humano…

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(*) Publicado em "Correio dos Açores".

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Caudais de Risco e Ribeiras de Desgraça


Ribeira da Agualva e velha Ponte de Madeira destruída pela mortífera Enxurrada de 8 de Dezembro de 1962 (Foto da época).


A freguesia da Agualva, situada na zona norte da ilha Terceira, em conjunto com outras localidades do Concelho da Praia da Vitória, foi novamente atingida este inverno por fortes chuvadas que provocaram enxurradas de grande caudal e imparável violência destrutiva sobre moradias, estradas e redes públicas de abastecimento de água e saneamento básico, – tendo o cenário físico das devastações provocadas já sido, com propriedade, adjectivado de dantesco e diluviano.

– Porém, ao contrário do que sucedeu em outras trágicas ocasiões e eventos catastróficos ocorridos e bem lembrados nos Açores, agora e felizmente, não há vítimas humanas mortais a lamentar, muito embora sejam perceptíveis dolorosas marcas traumáticas pessoais e familiares, e notoriamente avultados os prejuízos materiais apurados em bens particulares, infra-estruturas essenciais e equipamentos colectivos, – sendo que aqui e para a urgente, rápida e competente reposição mais segura e precaucional dos mesmos é de esperar uma absolutamente necessária, devida e determinante articulação reforçada, solidária e supletiva de meios financeiros e técnicos, e de confluentes programas específicos entre a Câmara Municipal da Praia da Vitória, o Governo Regional, as Juntas de Freguesia, os habitantes das zonas sinistradas e as diferentes entidades privadas e público-privadas directa ou indirectamente envolvidas e interessadas numa responsável e responsabilizante resposta a tão momentosa e capital calamidade!

Por outro lado, embora ainda muito em cima dos primeiros e dramáticos momentos e espaços deste sinistro – onde não faltaram as devidas presenças testemunhais e simbólicas de Carlos César e de José Contente –, e também já com uma devida nota de apreço pela capacidade e esforço de intervenção demonstrados pelas autoridades, serviços públicos e associações socioprofissionais e assistenciais mobilizados, a par da histórica e quase heróica dimensão da resiliência novamente avivada na alma do Povo desta terra, – mas exactamente por isso mesmo! –, é que é preciso que, atendendo às ocorrências secularmente conhecidas de alguns (nomeadamente a de Setembro de 1813) ou contemporaneamente preservadas na memória de muitos (especialmente a de 8 de Dezembro de 1962), não se deixe que da cura possível das feridas humanas e da limpeza radical das lamas residuais se passe a um branqueamento estratégico das águas ou ao desvio, apenas errático, perigoso e contraproducente, daquilo que, por adiamento ou interesse de conjuntura, apenas canalizará renascentes caudais de risco e de sofrimento para as ribeiras da próxima desgraça...

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(*) Publicado em "A União", "Diário dos Açores" e "Azores Digital".

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Memórias de Giacometti com os Açores presentes


Michel Giacometti (1929-1990) é um nome que preenche e detém um lugar único na Antropologia Cultural desenvolvida em Portugal, mormente na área da Etnomusicologia.


Apesar de ter praticado uma Etnografia de carácter predominantemente empírico (e mais ou menos espontâneo, como João Leal e Pais de Brito a denominam), este etnólogo – nascido na Córsega e doutorado pela Sorbonne, mas radicado no nosso País desde 1959 na sequência de uma acentuada crise de saúde e de uma sugestiva e iniciática visita ao Musée de l’Homme em Paris –, deixou-nos uma obra de excepcional envergadura e alcance, especialmente devido às recolhas que efectuou para os Arquivos Sonoros Portugueses (1960) em conjugação de dedicações de pesquisa e ideários sociológicos e estéticos com o seu camarada Fernando Lopes-Graça, dos quais resultaram nomeadamente os vários volumes conhecidos e editados da Antologia da Música Regional Portuguesa e do Cancioneiro Popular Português (1981).


– Ora acontece que os Registos Etnomusicais, tão laboriosa e sistematicamente recolhidos por Giacometti, foram acompanhados de levantamentos e compilações não menos notáveis de outros documentos e peças antropológicas afins e complementares daqueles (fotografias, utensílios, narrativas e testemunhos orais, fichas e apontamentos de trabalho de campo, notas socioculturais e técnico-artesanais, etc.), de todos esses materiais dando mostra cabal as ricas colecções guardadas nos Museus do Trabalho (ao qual foi dado o seu nome, em Setúbal), da Música Portuguesa (Cascais) e Nacional de Etnologia (Lisboa).

Comemorações e Esquecimentos

Agora, comemorando-se em 2009 o 80º aniversário do nascimento e os 50 anos da chegada de Giacometti ao nosso País, com toda a justiça, merecimento e louvor assinalou-se no Continente a obra e a vida deste tão apaixonado quanto genuíno e incansável etnólogo francês, cuja sensibilidade e empenho de visão, ouvido, coração, memória e inteligência legou a Portugal uma herança de incalculável valor (conquanto ainda não devidamente divulgado e potenciado!) e cuja dimensão deixa a milhas as burocráticas sebentas de alguns empertigados portuguesitos de fraca cepa civilizacional, de outros tantos rotineiros e preguiçosos académicos de carreira e número, e de grossos cadeirões de pardas eminências de ruim gramática humana, cultural e política...


De resto, nesta era mediática e de tão amplos e sofisticados recursos – gastos, tantas vezes, em autênticas quinquilharias efémeras e alienantes subprodutos para estratégico divertimento de massas! –, nem sequer as nossas TVs (aonde tanto lixo é exibido ad nauseam) se tem lembrado lá muito da Série “Povo que Canta”, realizada por Alfredo Tropa e transmitida pela RTP, a partir de 1970, durante três anos seguidos…

– Mas, como dizia acima, nestas coisas da Cultura e do Património às vezes há honrosas excepções – e nem sempre tontas e oportunistas borboletas de decoração batem asinhas para chamar e entreter besouros de estimação e inofensiva parada… –, como é o caso das cidades de Coimbra e de Cascais.

De facto, em Coimbra, tal como foi anunciado, o Sector Intelectual do PCP (Partido Comunista Português) organizou – e bem! – entre Janeiro e Outubro um Ciclo de Comemorações, denominado "Reencontro com Giacometti", para o qual contou com a colaboração de entidades, organizações, associações, pessoas e grupos culturais cuja vida, actividade ou objecto de estudo tem contribuído para divulgar o papel e legado de Michel Giacometti e para celebrar e promover a Cultura Popular Portuguesa, e de entre os quais se contam os seguintes: Câmara Municipal de Coimbra, Universidade de Coimbra, Sindicato dos Professores da Região Centro, Museu da Música Portuguesa/Casa Verdades de Faria (Cascais), Museu do Trabalho "Michel Giacometti" (Setúbal), A Escola da Noite, Ateneu de Coimbra, Bonifrates, Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, Rodobalho, Teatrão, Teatro do Morcego, Brigada Víctor Jara, Diabo a Sete, Quarto Minguante, Realejo e Rebimbomalho.

E aqui, relembre-se, constituindo a principal iniciativa política deste Ciclo, foi promovida uma recolha de assinaturas reivindicando a reedição e publicação, por parte da RTP, da citada Série "Povo Que Canta" (que reúne, em trinta e sete episódios, sons e imagens da Vida e da Cultura Rural do nosso Povo, para “que os documentos que os constituem possam cumprir, sempre que convocados e para todos os interessados, a intenção de contribuir para ‘a análise necessariamente rigorosa da sociedade’ e das tradições culturais portuguesas, das quais aqueles sons e imagens foram gerados, e nos foram dados a herdar”.

Por seu lado, a Câmara de Cascais (presidida pelo social-democrata António Capucho) acaba – e muito bem! – de liderantemente associar-se ao IELT (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) e à FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) para viabilizar a monumental edição (Gradiva) do “Espólio de Medicina Popular recolhido por Michel Giacometti”, publicado há poucas semanas, com o título de Artes de Cura e Espanta-Males, sob a Coordenação de Ana Gomes de Almeida, Ana Guimarães e Miguel Guimarães, e com Prefácio de João Lobo Antunes:

– Trata-se aqui da publicação em livro (687 páginas, em formato grande) de 5.550 Fichas de Doenças do Espólio Documental de Giacometti (preservado no Museu da Música Portuguesa, em Cascais), cujos textos de Medicina Popular (com rezas, ladainhas, benzeduras, provérbios, receitas e receituários, remédios, ervanárias, etc.) foram lidos e são comentados por médicos especialistas, poetas, artistas, investigadores e professores – Júlio Machado Vaz, Fernando Nobre, Teresa Rita Lopes, Isabel do Carmo, Germano Xavier do Carmo, entre outros, num riquíssimo repositório, acompanhado de Glossário e Bibliografia, de saberes e práticas ancestrais relativas ao corpo, à doença e à procura da cura.

Recordações Açorianas

Devo finalmente salientar que para nós também, como açorianos e como investigadores, este livro – que por via da Etnomusicologia desenvolvida por Giacometti ainda deixaria ocasião para evocar as recolhas insulares de Artur Santos e de José Alberto Sardinha… –, se reveste de um específico e particular interesse pela presença que a nossa terra e a nossa gente aqui marcam directa ou indirectamente, conforme as referências retidas e citadas, por exemplo a partir de Teófilo Braga, Côrtes-Rodrigues, Leite de Athaíde, Drumond, Inocêncio Enes e M. Dionísio.Ainda por isso e tal como já escrevi em “Narrativas e Virtualidades de um Património de Crenças” (cf. Heranças da Terra, 2000) a propósito do imenso e análogo labor localmente proporcionado do nosso querido J. H. Borges Martins e das suas Crenças Populares da Ilha Terceira (2 Volumes, Edições Salamandra, 1994) – obra que Giacometti infelizmente já não pôde desfiar, mas que não posso deixar de recordar neste contexto temático –, realmente, trabalho(s) como este(s), podem e devem ser acolhidos, potenciados, lidos e estudados nas nossas Escolas e na nossa Universidade, sendo os seus conteúdos susceptíveis de fornecer abundante campo para vastíssimos, criativos e mobilizadores projectos disciplinares e interdisciplinares (desde a Filosofia à Antropologia Cultural, da Psicologia à História da Mentalidades, da Sociologia à Ciência, e da Literatura à Religião), além de constituírem um valente e sério exemplo para tanto desleixo ou tanto interesseirismo cultural que por aí pululam, de braço dado com preguiças e ignorâncias institucionais de bradar aos Céus, rogando-se curas para tantas maleitas históricas ou esconjuro para alguns dos males espirituais e crónicas patologias sociais que persistem em assombrar muitas das nossas vivências pessoais e insuspeitados, recorrentes ou estagnados imaginários colectivos nacionais e regionais…


(*) Publicado em "Diário dos Açores", "Correio dos Açores", "A União" e Azores Digital.

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Humor e Agravos

Tem o programa “Gato Fedorento” vindo a merecer crescentes encómios nos Órgãos de Comunicação Social lisboetas, sendo até coqueluche e suposto modelo de criatividade humorística aplicada ao actual campo da vida sociopolítica do proverbial e ajardinado “rectângulo” do Zé Povinho…

De resto, a projecção e as reverências concedidas àquele dito “imaginativo e desempoeirado” programa tem sido de tal ordem que não poucos foram os analistas que chegaram ao queirosiano ponto de lhe atribuírem significativa quota de responsabilidade na formação do sentido do voto nacional e no desenvolvimento da inteligência, da perspicácia e do espírito satírico do Portugal contemporâneo!

Ora tendo isto em vista talvez até tivessem razão aqueles ilustrados articulistas, pois na verdade grandes foram, em determinada altura, os índices de audiência granjeados pelas suas famosas Entrevistas aos líderes da praça política que Portugal ostenta e complacentemente venera, e cuja (des)complexada e consentânea ida ao aromático mas felino programa foi mesmo posta em oposição de interesse à concorrente substância dos inócuos e estafantes Debates interpartidários das TVs.

É claro que também subjacente a tudo isto está a problemática do Humor e do Riso, – questão recheada de “dialéctica subtil e delicada, complexa e de entendimento nem sempre fácil” de analisar nos seus diferentes modelos, conteúdos e esquemas, como sintetizou Manuel Antunes.

E depois, diversamente, há humor e humores, conforme os talentos, as virtudes e os níveis culturais em cena (por exemplo, os ditos à Charlot, Cantiflas, Solnado ou Badaró, o ordinário à Herman, o inglês de Mr. Bean ou Yes Minister, o francês de Allo! Allo!, o brasileiro do Gordo ou as sitcoms norte-americanas, sem esquecer os Palhaços dos Circos e as Danças de Carnaval…).

Todavia – e para já não referirmos outras, exemplares e bem duvidosas graçolas do “Gato Fedorento”, como uma anterior sobre as devoções marianas em Fátima –, o que mais se lamenta ainda aqui e hoje é o uso, pretensamente catalisador de risota ou gargalhada em estúdio que ali se fez (chocarrice pegada, embora até audio-linguisticamente equivocada nas afitadas orelhas daqueles meninos de capital!), nas vésperas das Eleições Autárquicas, de um vídeo do YouTube com um candidato do PSD a uma Junta de Freguesia da Terceira.

– Realmente, e fosse lá com quem ou de quem fosse, tão humilhante e cruel publicitação da fala e face de um simples homem do povo (aliás vítima inocente e infeliz da inoperância política própria e alheia, e de afins e clamorosas incompetências comunicacionais!), documentou afinal e apenas mais uma manifestação da desalmada e impiedosa lógica de violência simbólica e do acanalhamento cívico a que o nosso burgesso e fútil País político-partidário e os seus actores e agentes mediáticos chegaram, sem apelo nem agravo!


(Publicado no "Diário dos Açores" de 24.10.2009)

LITERATURAS UNIVERSAIS



OS GRANDES LIVROS
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A ideia de ministrar-se em Portugal e na Universidade Católica Portuguesa um Curso sobre os Grandes Livros da Humanidade nasceu de um projecto pensado por João Carlos Espada (director do Instituto de Estudos Políticos da UCP) e concretizado por Anthony O’Hear – professor de Filosofia na Universidade de Buckingham, director do Royal Institute of Philosophy e editor da revista "Philosophy" –, antigo visiting professor da Fundação Gulbenkian naquela Universidade portuguesa, onde, entre o Outono e a Primavera de 2004-05, leccionou uma Cadeira que tinha por temática "A Tradição dos Grandes Livros" e cujas aulas vieram precisamente a constituir o conteúdo de um livro agora acabado de lançar pela Alêtheia Editores.


– O texto, declaradamente escrito com grande e justificado entusiasmo, pretende servir de roteiro iniciático ou primeiro mapa de leitura para um sugestivo e motivador contacto com os autores clássicos seleccionados, de modo a que os leitores possam conhecer e apreender as grandes obras ali referidas "com satisfação e deleite, para além de aprenderem com a visão, as intuições e a sabedoria nelas contidas", sem esquecer ainda "a maneira como certas obras da tradição influenciam outras obras posteriores, sendo continuamente referidas nelas, [e] muitas vezes de uma forma que permite compreender cada vez melhor as obras anteriores", – e vice-versa, ressalte-se aqui, com certeza, e nalguns casos até por maioria de confluentes ou difluentes horizontes temáticos, literários e existenciais – conforme aliás poderíamos deduzir de outros Cânones…, ou articular com a abordagem da famosa angústia da influência do também "canonista" literário Harold Bloom (muito conhecido apologista shakespeariano de José Saramago…) –, ou ainda por outras mais avantajadas razões e demais entendimentos histórico-críticos, hermenêuticos e exegéticos que andam por aí a par de outras afins lacunas de familiaridade e vivência civilizacional sólida, marcando o paradigmático "caos da vida corrente" em que vegetamos e nos afundamos geração após geração, e cuja clamorosa e fatídica ausência secular por esse País fora e por esta Região adentro são o pão nosso de cada dia na Cultura, na Educação e até na Religião!


Resta dizer que nesta obra, de leitura acessível e de vigor mediano, de Anthony O’Hear – Os Grandes Livros, da Ilíada e da Odisseia de Homero até ao Fausto de Goethe – uma viagem afinal por 2500 Anos de Literatura Clássica, passando por Platão, Virgílio, Ovídio, S. Agostinho, Dante, Chaucer, Shakespeare, Cervantes, Milton, Pascal e Racine –, lá encontraremos ainda o nosso Camões, de quem o Prof. O’Hear afirma possuir "um agnosticismo profundo, que talvez não devesse ser analisado em termos exclusivamente cristãos".



– E assim, também aqui, a questão, como se vê, não é nem tão antiga nem tão pouco polémica como a outra tão em voga nas pedregosas e transtemporais sendas de Caim