quinta-feira, novembro 26, 2009

A RESTAURAÇÃO COMO IDEAL NACIONAL




1. Na sua História de Portugal, Damião Peres introduz o tema do restabelecimento da independência nacional de 1640 dizendo que “a dominação castelhana nunca conseguiu apagar totalmente em Portugal a saudade da independência”…

Outro historiador português, na sua análise do processo social, económico e político-institucional da Restauração afirma que são duas as ideias que perpassam “como fios condutores” através do movimento restaurador:


– “Em primeiro lugar, a coroa portuguesa foi usurpada em 1580 à casa a que pertencia de juro e herdade [...]; trata-se portanto, fundamentalmente, de restituir o seu a seu dono, anulando a usurpação sessenta anos anterior a fim de colocar no trono o único legítimo pretendente. Em segundo lugar, a união dinástica fizera-se pela força mas jurando os monarcas espanhóis respeitar as leis, foros e costumes de Portugal [...]; por conseguinte, os conjurados de 1640 visam o regresso à forma legítima [...] de Estado e governo, pondo termo a essa tirania, em que tinham soçobrado os soberanos de dinastia espanhola: restauração, em suma, a completar a restituição”.

E o mesmo Vitorino Magalhães Godinho precisa ainda o travejamento da sua global interpretação do processo estrutural do mundo da Restauração e do Portugal “restaurado”:

– “Em 1640 dá-se, portanto, a expulsão de um tirano usurpador (simultaneamente) e a restituição do poder a quem de direito. (…) Os Filipes tinham acabado por não respeitar as instituições tradicionais e o direito estabelecido; os Portugueses restauram, quer dizer, voltam à primitiva forma, o Estado anterior a 1620, ou mesmo a 1580”.

Por seu lado, José Hermano Saraiva, analisando o processo que conduziu ao 1º de Dezembro de 1640, já referia que “A conspiração não incluiu representantes populares; mesmo os chefes da revolta de 1637-1638 não foram chamados. [...] A preocupação de não desencadear uma revolução popular dominava os políticos de 1640 do mesmo modo que tinha dominado os de 1580.

“Os conspiradores decidiram restaurar a linha legítima da sucessão do trono, [...] D. João, duque de Bragança. [...] O duque vivia em Vila Viçosa, aparentemente afastado da vida política de Lisboa, e era considerado em Madrid como pessoa de confiança. Pouco antes da revolução, tinha sido nomeado governador militar do país. Convidado para a chefia da revolução, hesitou. Os conjurados colocaram-no perante a alternativa. Ou a conservação da monarquia com ele, ou uma república de nobres. Acedeu por fim”...

Finalmente, na sua perspectivação da História Política e Militar da Restauração – e defendendo logo, ao contrário de J. H. Saraiva, ser preciso rebater “a tradição sem fundamento que fez de D. João IV um homem indeciso ou pouco varonil, quando a sua actuação foi norteada pela lúcida visão das realidades políticas que lhe coube encarnar” e que “sem o seu equilibrado apoio e direcção” nunca a Restauração poderia ter eclodido –, Veríssimo Serrão introduz a temática restauracionista, a partir das seguintes linhas fundamentais e fundamentantes:

– A Restauração representa “um período bem definido da história portuguesa”, que se impôs também pela “unidade temporal que define uma grande realidade histórica”, tendo sido pois um período de retoma da “plena consciência do sentimento nacional”.

2. Muito longe de traduzir restritivos rituais passadistas ou nacionalistas – ambos datados e amiúde timbrados por conjunturas políticas e civilizacionais que não são as nossas –, faz todo o sentido a comemoração contemporânea desta tão significativa efeméride da existência histórica de Portugal como Pátria e Nação propriamente dotada de personalidade jurídica unitária (como Estado) e de identidade colectiva – dir-se-ia mesmo espiritual e culturalmente incarnada em formas, categorias e expressões específicas – como Povo.

Ora todas as evocações simbólicas e todas as representações comemorativas tendo um papel pragmático e normativo e desempenhando uma importante função cívica que é “instituinte de sociabilidades”, como salientou Pierre Bourdieu, assim também o mais profundo e autêntico sentido da celebração deste dia deve ser o de suscitar e cumprir ocasião propícia para pensar e reflectir criticamente aquela mesma realidade que é trazida de novo à memória e à representação, isto é, a existência histórica de Portugal e dos Portugueses, à luz de valores que são afinal formas universais e nacionais – e regionais também, bem entendido! – desse ideal ou conceito-força valorativo da afirmação dos nossos projectos histórico-existenciais e culturais, e da defesa dos nossos interesses vitais permanentes como País independente e soberano.

3. Facetado e dito sob múltiplas formas, até hoje, mas localizadamente em tantas e tantas datas cruciais da vida do nosso País, e afinal também na vida de todos e cada um de nós individualmente considerado, este ideal de Restauração (que não poderá ser com legitimidade apropriado por nenhuma forma ou regime político particular!) sempre pretendeu significar algo de essencial e direccionado a uma espécie de regeneração, recuperação, salvação ou ganho de plenitude histórica, destinal ou existencial. …

– Comemorar pois a Restauração de 1640 é assim tanto um acto de memória e de reflexão quanto um acto projectivo de imaginação, de criatividade e de esperança, numa época tão assolada por crises, impasses e desalentos, como esta em que vivemos.
Mesmo a Restauração de 1640 – embora parcialmente justificada por enquadramentos psico-sociais nacionais traumáticos … –, carece ainda de ser explicada pela articulação da individualidade cultural com a independência política; a conjuntura económica e colonial dos Impérios Português e Espanhol; as pretensões, interesses e sucessivos reposicionamentos tácticos e estratégicos das restantes potências europeias do século XVII (França, Inglaterra e Holanda); o posicionamento das classes, formações, grupos socioprofissionais e mentalidades socio-religiosas; a situação político-militar europeia (nomeadamente as revoltas regionais da Biscaia, de Évora e a decisiva rebelião nacionalista da Catalunha); o contexto conflitual dos vários esquemas teórico-jurídicos e diplomáticos vigentes, – e todos estes ainda no quadro militar puro e próprio de um processo revolucionário de re-nacionalização, como foi o que se seguiu à insurreição restauracionista e à Paz de Vestefália, sendo até que a ordem internacional decorrente desta última só terá terminado afinal em 11 de Setembro de 2001!

– Como se deduzirá por comparação ou analogia, ou como pseudo-socraticamente poderia parecer, não estamos assim tão longe do espírito hobbesiano do sistema-mundo, dos paradigmas emergentes da progressiva racionalização das sociedades ocidentais e do vacilante coração dos homens de 1640…
COMEMORAR A RESTAURAÇÃO DE 1640
PARA REPENSAR A ACTUALIDADE



Muito longe e muito mais do que cumprir restritivos rituais passadistas ou nacionalistas – ambos datados e amiúde timbrados por conjunturas políticas e civilizacionais que não são as nossas –, faz todo o sentido a comemoração contemporânea desta tão significativa efeméride da existência histórica e independente de Portugal como Pátria e Nação propriamente dotada de personalidade jurídica unitária (como Estado) e de identidade colectiva – dir-se-ia mesmo espiritual e culturalmente incarnada em formas ou categorias específicas – como Povo.

O mais profundo e autêntico sentido da celebração deste dia deve pois ser assim o de suscitar e cumprir mais uma ocasião, com motivo e em tempo propícios, para pensar e reflectir criticamente aquela mesma realidade que é trazida de novo à memória e à representação, isto é, a existência histórica de Portugal e dos Portugueses, à luz de valores que são afinal formas universais e nacionais – e regionais também, bem entendido! – desse ideal perseverante ou conceito-força valorativo da formulação e da afirmação dos nossos projectos histórico-existenciais e culturais, e da defesa dos nossos interesses vitais permanentes como País independente e soberano.

Todas as evocações simbólicas e todas representações comemorativas, tendo um papel pragmático e normativo, desempenham uma importante função cívica que é “instituinte de sociabilidades”, como salientou Pierre Bourdieu.

E depois, a ideia de Restauração (restauratio) – muito ligada, por exemplo, pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa, à dimensão espiritual do Império e que é ainda uma categoria teórico-prática de raiz bíblica – sempre mobilizou Portugal, talvez até mesmo desde os primeiros impulsos da construção imaginal da nação portuguesa como pátria possível.

– Facetada e dito sob múltiplas formas, até hoje, mas localizadamente em tantas e tantas datas cruciais da vida do nosso País, e afinal também na vida de todos e cada um de nós individualmente considerado, este ideal de Restauração (que não poderá com legitimidade ser apropriado por nenhuma forma ou regime político particular!) sempre pretendeu no fundo significar algo de essencial e direccionado a uma espécie de regeneração, recuperação, salvação ou ganho de plenitude histórica, destinal ou existencial. …

– Comemorar pois a Restauração de 1640 é assim tanto um acto de memória e de reflexão quanto um acto projectivo de imaginação, de criatividade e de esperança, numa época tão assolada por crises, impasses e desalentos, como esta em que vivemos.

A nossa dita abertura (muitas vezes afinal e apenas mais um tardio escancaramento tecno-financeiro, consumista, parasitário, passivo, politicamente subserviente e subsídio-dependente!) e a nossa imparável inserção nos novos espaços e tempos da Globalização hegemónica, deve ser contrabalançada pela preservação possível daquilo que nos pode distinguir, fazer desenvolver e progredir de modo sustentado, integrado mas autónomo. Os campos discursivos globais e regionais, também aqui, enfrentam batalhas civilizacionais e ético-políticas decisivas…

Mesmo a Restauração de 1640 – embora parcialmente justificada por enquadramentos psico-sociais nacionais traumáticos … –, carece ainda de ser explicada pela articulação da individualidade cultural com a independência política; a conjuntura económica e colonial dos Impérios Português e Espanhol; as pretensões, interesses e sucessivos reposicionamentos tácticos e estratégicos das restantes potências europeias do século XVII (França, Inglaterra e Holanda); o posicionamento das classes, formações, grupos socioprofissionais e mentalidades socio-religiosas; a situação político-militar europeia (nomeadamente as revoltas regionais da Biscaia, de Évora e a decisiva rebelião nacionalista da Catalunha); o contexto conflitual dos vários esquemas teórico-jurídicos e diplomáticos vigentes, – e todos estes ainda no quadro militar puro e próprio de um processo revolucionário de re-nacionalização, como foi o que se seguiu à insurreição restauracionista e à Paz de Vestefália, sendo até que a ordem internacional decorrente desta última só terá terminado afinal em 11 de Setembro de 2001!

– Como se deduzirá, por comparação ou analogia, não estamos assim tão longe do espírito do mundo, da inteligência das sociedades e do coração dos homens de 1640, como pseudo-socraticamente poderia parerecer...