quinta-feira, dezembro 10, 2009

Humor e Agravos

Tem o programa “Gato Fedorento” vindo a merecer crescentes encómios nos Órgãos de Comunicação Social lisboetas, sendo até coqueluche e suposto modelo de criatividade humorística aplicada ao actual campo da vida sociopolítica do proverbial e ajardinado “rectângulo” do Zé Povinho…

De resto, a projecção e as reverências concedidas àquele dito “imaginativo e desempoeirado” programa tem sido de tal ordem que não poucos foram os analistas que chegaram ao queirosiano ponto de lhe atribuírem significativa quota de responsabilidade na formação do sentido do voto nacional e no desenvolvimento da inteligência, da perspicácia e do espírito satírico do Portugal contemporâneo!

Ora tendo isto em vista talvez até tivessem razão aqueles ilustrados articulistas, pois na verdade grandes foram, em determinada altura, os índices de audiência granjeados pelas suas famosas Entrevistas aos líderes da praça política que Portugal ostenta e complacentemente venera, e cuja (des)complexada e consentânea ida ao aromático mas felino programa foi mesmo posta em oposição de interesse à concorrente substância dos inócuos e estafantes Debates interpartidários das TVs.

É claro que também subjacente a tudo isto está a problemática do Humor e do Riso, – questão recheada de “dialéctica subtil e delicada, complexa e de entendimento nem sempre fácil” de analisar nos seus diferentes modelos, conteúdos e esquemas, como sintetizou Manuel Antunes.

E depois, diversamente, há humor e humores, conforme os talentos, as virtudes e os níveis culturais em cena (por exemplo, os ditos à Charlot, Cantiflas, Solnado ou Badaró, o ordinário à Herman, o inglês de Mr. Bean ou Yes Minister, o francês de Allo! Allo!, o brasileiro do Gordo ou as sitcoms norte-americanas, sem esquecer os Palhaços dos Circos e as Danças de Carnaval…).

Todavia – e para já não referirmos outras, exemplares e bem duvidosas graçolas do “Gato Fedorento”, como uma anterior sobre as devoções marianas em Fátima –, o que mais se lamenta ainda aqui e hoje é o uso, pretensamente catalisador de risota ou gargalhada em estúdio que ali se fez (chocarrice pegada, embora até audio-linguisticamente equivocada nas afitadas orelhas daqueles meninos de capital!), nas vésperas das Eleições Autárquicas, de um vídeo do YouTube com um candidato do PSD a uma Junta de Freguesia da Terceira.

– Realmente, e fosse lá com quem ou de quem fosse, tão humilhante e cruel publicitação da fala e face de um simples homem do povo (aliás vítima inocente e infeliz da inoperância política própria e alheia, e de afins e clamorosas incompetências comunicacionais!), documentou afinal e apenas mais uma manifestação da desalmada e impiedosa lógica de violência simbólica e do acanalhamento cívico a que o nosso burgesso e fútil País político-partidário e os seus actores e agentes mediáticos chegaram, sem apelo nem agravo!


(Publicado no "Diário dos Açores" de 24.10.2009)

LITERATURAS UNIVERSAIS



OS GRANDES LIVROS
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A ideia de ministrar-se em Portugal e na Universidade Católica Portuguesa um Curso sobre os Grandes Livros da Humanidade nasceu de um projecto pensado por João Carlos Espada (director do Instituto de Estudos Políticos da UCP) e concretizado por Anthony O’Hear – professor de Filosofia na Universidade de Buckingham, director do Royal Institute of Philosophy e editor da revista "Philosophy" –, antigo visiting professor da Fundação Gulbenkian naquela Universidade portuguesa, onde, entre o Outono e a Primavera de 2004-05, leccionou uma Cadeira que tinha por temática "A Tradição dos Grandes Livros" e cujas aulas vieram precisamente a constituir o conteúdo de um livro agora acabado de lançar pela Alêtheia Editores.


– O texto, declaradamente escrito com grande e justificado entusiasmo, pretende servir de roteiro iniciático ou primeiro mapa de leitura para um sugestivo e motivador contacto com os autores clássicos seleccionados, de modo a que os leitores possam conhecer e apreender as grandes obras ali referidas "com satisfação e deleite, para além de aprenderem com a visão, as intuições e a sabedoria nelas contidas", sem esquecer ainda "a maneira como certas obras da tradição influenciam outras obras posteriores, sendo continuamente referidas nelas, [e] muitas vezes de uma forma que permite compreender cada vez melhor as obras anteriores", – e vice-versa, ressalte-se aqui, com certeza, e nalguns casos até por maioria de confluentes ou difluentes horizontes temáticos, literários e existenciais – conforme aliás poderíamos deduzir de outros Cânones…, ou articular com a abordagem da famosa angústia da influência do também "canonista" literário Harold Bloom (muito conhecido apologista shakespeariano de José Saramago…) –, ou ainda por outras mais avantajadas razões e demais entendimentos histórico-críticos, hermenêuticos e exegéticos que andam por aí a par de outras afins lacunas de familiaridade e vivência civilizacional sólida, marcando o paradigmático "caos da vida corrente" em que vegetamos e nos afundamos geração após geração, e cuja clamorosa e fatídica ausência secular por esse País fora e por esta Região adentro são o pão nosso de cada dia na Cultura, na Educação e até na Religião!


Resta dizer que nesta obra, de leitura acessível e de vigor mediano, de Anthony O’Hear – Os Grandes Livros, da Ilíada e da Odisseia de Homero até ao Fausto de Goethe – uma viagem afinal por 2500 Anos de Literatura Clássica, passando por Platão, Virgílio, Ovídio, S. Agostinho, Dante, Chaucer, Shakespeare, Cervantes, Milton, Pascal e Racine –, lá encontraremos ainda o nosso Camões, de quem o Prof. O’Hear afirma possuir "um agnosticismo profundo, que talvez não devesse ser analisado em termos exclusivamente cristãos".



– E assim, também aqui, a questão, como se vê, não é nem tão antiga nem tão pouco polémica como a outra tão em voga nas pedregosas e transtemporais sendas de Caim