quarta-feira, setembro 29, 2010

Unidade, Historicidade e Consciência Regional

1. No horizonte da Autonomia Regional Açoriana, se há questões recorrentemente debatidas – diversamente configuradas e respondidas mas permanentemente vigentes, e assim até criticamente constituintes e estruturantes dos diferentes ideários, imaginários e concretizações político-administrativas, jurídico-políticas, socioeconómicas e culturais dos projectos e modelos aqui historicamente arquitectados (pensados ou apenas sonhados, conquistados ou somente outorgados…) –, uma dessas é, com toda a certeza, a problemática da unidade regional entre as nove ilhas do Arquipélago.

– Por outro lado, como é facilmente constatável, a inteira questão da unidade, que não é exactamente sobreponível à outra e fundamental problemática da consciência regional – tal como não é subsumível à vulgar gestão, mais ou menos táctica e tácita, das retóricas ideológicas e dos sofismas político-partidários com incidência e materialização nos distorcidos esquemas, meios, querelas e fins de muita da governação e do parlamentarismo que ainda vemos hasteados entre nós… –, não deixa todavia de ser-lhe conatural, pese embora a sua indisfarçável disparidade de conteúdos e dimensões a nível da opinião pública mediatizada (ou silenciada!), da prática comentarista (mais ou menos inócua e unidimensionalmente anestesiante) ou até das prédicas e falas do senso comum e das suas impressivas narrativas, fábulas e mitos (às vezes proverbiais e precaucionais, porquanto marcados por décadas e acumuladas lições de experiência feita e conhecimento de causa…).

2. Embora só no Século XX tenha a reflexão sobre a especificidade identitária dos Açores e dos Açorianos atingido um mais relevante e incisivo corpus teórico-prático institucionalmente materializável – dele constando núcleos accionais e críticos sobre o atraso, o progresso e o desenvolvimento insular, o fomento de uma administração capaz e capacitada, e sobre a unidade regional e os factores mais representativos, reais ou fictivos, de uma legitimação historicizada da Autonomia (enquanto modalidade possível de auto-governo ou livre administração do Arquipélago, no contexto nacional português e no crucial horizonte euro-americano…) –, só depois da Revolução de 74 e à bolina de derivas separatistas e de avanços, recuos, lutas, repressões e conquistas democráticas insulares e portuguesas (todas com fenómenos de dissensão, conversão e reconversão doutrinária, estratégica e sociológica que não vem a caso e medida retomar aqui), é que ficou, finalmente, consagrado um substancial e merecido estatuto constitucional autonómico.

– E isto apesar de, em verdade, desde bem cedo na História, na Historicidade, na Historiografia e em múltiplos outros domínios, acontecimentos e registos temporais, narrativos, geo-antropológicos, simbólicos e psico-existenciais açorianos ter sido possível detectar, ou ter relevado, presenças ou marcas daquilo a que José Enes chamou de pensamento de uma sociedade sobre si mesma e do que ela forma através da sua experiência histórica

3. É no campo do devir e do acontecer histórico, filosófico, político e societário das nossas ilhas que tem sido assim detectados, ou apenas propostos ou sugeridos, vários índices sinalizadores ou modeladores de uma espécie de potencial ou latente intencionalidade de fundo ciclicamente emergente e afirmativa da Açorianidade, ou seja, de uma ontologia regional tornada cônscia como identidade e como consciência insular açoriana propriamente ditas (conquanto só depois formalmente plasmadas na ordem jurídico-política objectiva enquanto e como Autonomia), mas sendo precisamente que, a par destas categorias e com elas, sempre aí esteve pressuposto um determinado conceito crítico da existência ou da construção da nossa debatida unidade regional!

Depois, é por isso mesmo que – tendo presente toda uma possível, embora não unidireccional nem unívoca fenomenologia do espírito da Açorianidade (tematizável ainda dialéctica mas praticamente desde os primórdios do Povoamento até hoje, em perspectiva trans-histórica, multidisciplinar e multissectorial) –, uma reflexão aprofundada e livre sobre estas afins e confluentes problemáticas e paradigmas se torna novamente muito urgente, perante uma realidade global em profunda mutação e acelerada reconfiguração nacional, pós-imperial e pós-colonial, aonde a solidez dos afectos das gerações, as solidariedades comunitárias (mais ou menos imaginadas, como as classifica Benedict Anderson, mas à escala continental, regional, étnica, religiosa ou até neo-tribal…) e as irmandades destinais de outrora perderam muito do seu perfil tradicional e do seu significado consensual, substituídas que estão sendo pelo primado do efémero, do provisório, do pensamento mole ou movediço, da liquefacção ou da fragmentação de duplo sentido das fronteiras éticas, cívicas e psico-comportamentais (como propõe Bauman), do mercado unidimensional das mensagens, dos projectos virtuais, das linguagens discriminatórias, dos hábitos dúplices e predadores, e da disseminada violentação biopolítica da Humanidade, da Natureza e dos seres vivos e sencientes, – como se já nada pudesse ou valesse a pena ser preservado, com bondade e boa-vontade, em nome de uma verdadeira, autêntica e justa grande unidade de Espírito e de Ser, de coração, de utopia ou de esperança…

– De resto, exemplares momentos reveladores destas complexas e multimodais problemáticas universais (e da sua epidérmica recepção provincial…) entre nós, sempre natural e temporalmente situados na historicidade das ilhas e nas diversas configurações epocais da sua conscientizada assumpção prática, têm sido e mais poderiam ser ressaltados nas obras clássicas dos Cronistas Açorianos; na arquivística documental e no memorialismo; na conceptualização geopsíquica, filosófica e antropológico-cultural; na produção estética, plástica, musical, etnográfica, folclórica e iconográfica; no discurso jurídico-administrativo das sucessivas tendências e movimentos autonomistas; na criação literária (poética, contista, romanesca e teatral); nos valores, cosmovisões e ritualidades da religião cristã e da religiosidade popular; no capital simbólico e comunicacional pan-insular; nas migrações, mobilidades e diásporas internas e externas, – enfim –, na convivencialidade e intercâmbios académicos, científicos, associativos e grupais ilhéus…

4. Ora assim e só assim sendo, a questão da unidade real das nossas ilhas – discutida às vezes apenas e cinicamente a partir de referências menores e de interesses exclusivistas, ou de medíocres e inconsequentes artifícios e malabarismos político-partidários (que já nem prestariam sequer, como outrora, inter-distritalmente, inter-ilhas, inter-concelhiamente e por aí abaixo, para “inocentes remoques de vizinho”, como escrevia Vitorino Nemésio, nem mais servirão para improdutivamente entretermos “a nossa humaníssima concorrência nos penhascos”…) –, talvez encontrasse, alternativamente então, um fértil, construtivo, digno e unificado campo para uma regeneração cada vez mais urgente de ideais, práticas e discursos açorianos (insulares, mas racionais e generosos!), e para uma reflexão renovada, séria e prospectiva sobre o género de vida e o modelo de sociedade e de valores que queremos construir e legar aos nossos vindouros, nesta terra comum e com as nossas existências partilhadas.

Ilha Terceira, Setembro de 2010
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* Publicado na Edição Especial, subordinada ao tema Açores Unidos, do Semanário "Expresso das Nove" (Ponta Delgada, 23.09.2010) e reproduzido em "A União" (Angra do Heroísmo, 29.09.2010):