sábado, setembro 17, 2011

As Teias do Sincretismo


À primeira vista, as caminhadas e peregrinações que por esta altura se realizam na ilha Terceira a Nossa Senhora dos Milagres da Serreta, e o discurso de Carlos César no último Congresso do PS em Braga nada terão em comum; e todavia…

Nos seus estudos sobre as novas configurações dos sistemas, geografias, práticas, crenças e pertenças religiosas contemporâneas – nomeadamente a partir de uma sugestiva proposta de análise das categorias-tipo do convertido e do peregrino –, Danièle Hervieu-Léger salientou a profunda ligação existente entre os processos de construção existencial e simbólica das identidades individuais e colectivas, e as modernas (des)regulações sociais, institucionais e de poder ideológico e espiritual, nomeadamente aquelas que se exprimem sob a forma de um grande sincretismo flutuante e de bricolage.

– E entre nós também assim acontece, pelo que é urgente comparar este fenómeno com outras manifestações formais mas de tangência conflitual no mesmo campo societário, que aqui e ali vão convergindo, tanto mais quanto a mera participação observante nas “idas à Serreta” e seus crescentes e proliferantes catalisadores e adjacências bem o reclama e sinaliza…

Entretanto e por outro lado – citando António Brotas quando escreve que “o PS não volta ao poder, ou pelo menos não volta trazendo um benefício para o País, sem uma grande transformação interna” –, José Medeiros Ferreira, com a habitual intuição, competência, experiência e visão da realidade sociohistórica portuguesa, num depoimento sobre o referido Congresso do PS, com justeza salientou que, sobretudo agora, deverá o partido “manter-se firme na representação política dos mais desprotegidos e de uma classe média largamente ameaçada”, enquanto que um seu novo ciclo implicaria mesmo uma profunda e necessária reflexão crítica, tanto mais quanto os “erros que se podem perpetuar devem ter prioridade no balanço crítico”, com “renovação das estruturas, mas com uma boa mistura de juventude e experiência”, porquanto o “mero critério geracional e a enorme teia de apoios recebidos podem ser o caminho mais curto para o congelamento de uma refundação”.

– Ora de refundação e de outras coisas igualmente responsabilizantes, importantes e a merecer atenção também falou Carlos César na sua assinalável intervenção naquele recente Congresso socialista, conforme está disponível e pode ser revisto em http://www.ps.pt/ps-tv/pstv/discurso-carlos-cesar/itemid-100003.

Porém, para quem conhece os métodos e teias das estruturas típicas de todos os poderes institucionalizados ou simbólicos, o sincretismo das palavras e das acções tanto pode significar um prenúncio refundador de identidades coerentes e de fidelidade a reais valores, quanto também, pelo contrário e infelizmente, poderá não ser mais do que uma mera deambulação retórica, ainda talvez “peregrina”, mas já apenas de “bricolage” ou para inconsequente estratégia de ritualização cíclica…

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Publicado em "Diário dos Açores" (18.09.2011), "Azores  Digital" (http://www.azoresdigital.com/) e ""Diário Insular" (17.09.2011).