sábado, outubro 08, 2011

O Cardeal e as mãos da Política



Causaram sintomáticas reacções a diferentes níveis e género de vocabulário e discurso, as recentes declarações, em entrevista ao JN, do Cardeal Patriarca de Lisboa sobre a acção política directa tal “como ela é feita hoje”, sendo que, segundo D. José Policarpo, desse preciso contexto e definido campo “ninguém sai com as mãos limpas”!

– De facto e na sequência da manifestação de tal juízo, logo se multiplicou nos OCS e nas redes sociais toda uma série de comentários também bastante preenchidos por considerações provindas de algumas figuras e personalidades nacionais, regionais e locais, mormente da área político-partidária e jornalística...

Ora, como é sabido, a expressão “mãos sujas” (e/ou a antítese “mãos limpas”) tem sido paradigmática e historicamente usada em múltiplos registos e domínios discursivos (v.g. filosóficos, literários, estéticos, jurídicos, religiosos e morais), significando, real ou metaforicamente, toda uma fenomenologia da culpa e/ou uma espécie de violação, consentimento cúmplice ou atitude de transgressão de princípios ou de valores essenciais (nomeadamente os relativos à liberdade, à integridade do carácter, à honestidade na prática de actos, à autenticidade moral, à coerência entre os meios legítimos e a bondade dos fins, à transparência nas palavras e nas acções, à sinceridade, à verdade, etc.), estando ainda a mesma locução presente em obras literárias de pendor existencial reflexivo, como por exemplo no teatro sartriano de As mãos sujas (traduzido há anos para português por António Coimbra Martins) e no Camus de Os justos (também editado entre nós com um belo prefácio de António Quadros).

– E isto para já não falarmos nas conhecidas operações políticas, policiais e judiciais anti-corrupção que, por esse mundo fora, foram crismadas com similar código expressivo (bastando lembrar apenas as efectuadas no Brasil e as muito solicitadas e perdidas em Portugal, ou aquela famosíssima e italiana "Mãos Limpas" ("Mani pulite"), nos anos 90, que tentou sanear as finanças vaticanas das mafiosas golpadas bancárias e ambrosianas da Loja maçónica P2…

Porém, no caso actual, o que parece ter causado muita e maior indignação a alguns dos ditos e feitos (todos?) comentaristas – para além da ainda razoável crítica a uma possível (ou descuidada?) generalização inclusa no seu pronunciamento (o tal “ninguém”…) – foi o facto daquelas afirmações terem sido proferidas por um alto responsável da Igreja, – e vai daí foi um tal desancar na sua pessoa, na Instituição a que pertence e que também superior e responsavelmente representa, chamando-lhe (sem recuo sequer perante interjeições vulgares e ordinarices linguageiras!) de tudo e do pior, evocando-se à mistura velhas e consabidas misérias históricas reais do Catolicismo, discorrendo-se sobre calhas esquadrinhadas no mais serôdio anticlericalismo jacobino e maçónico, e fazendo-se superficial, ignorante e tendenciosa vista grossa ou distorcida sobre o inciso crítico, perfeitamente balizável e situado, que o discurso de D. José Policarpo comprovadamente contém:

– É que esse, de facto e ainda por cima, só se torna adequadamente interpretável por relação ao natural entendimento filosófico e antropológico da natureza ambígua de toda a acção política (e mesmo da pré-política, como o nosso antigo Reitor da UCP teorizava), tal como, aliás, saliento, acontece com toda a acção humana individual e com toda a própria história global da Humanidade e seus actos contingentes (enquanto e precisamente porque elas são formadas “pelas objectivações espácio-temporais da liberdade do homem, de uma liberdade empenhada e comprometida numa dialéctica de graça e pecado”…), como ele filosófica e criticamente elabora, lógica e consequentemente ainda enquanto teólogo e pastor, entre outros, no seu excepcional estudo Sinais dos Tempos (Roma e Lisboa, 1970/71).

Todavia tais pressupostos antropológicos e reservas éticas não podem nem devem implicar, nem solicitam – como também é bom ressalvar – o fomento do desinteresse, a alienação ou o resignado alheamento, pelos cristãos, da vida e da ordem sociopolíticas nas suas mais nobres, integrais e decisivas dimensões, sendo mesmo que, como a Exortação Christifideles Laici salienta, “As acusações de arrivismo, idolatria de poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente nem o cepticismo nem o absentismo dos cristãos pela coisa pública”…

– É claro que aqui e ali estamos em campos e universos conceptuais e existenciais completamente distintos, e assim o lamentável e fútil desconhecimento – pelos feitos e ditos comentadores – da pessoa, do pensamento e da obra do nosso Cardeal, não devia ter constituído gratuito móbil para tanta aversão anticlerical, parte dela a raiar até estilos de jacobinismo ou marteladas maçónicas de outrora…

E depois, ainda seria curioso (re)vê-los, a esses, noutras tribunas (políticas, jornalísticas e culturais…) menos esconsas ou ficcionais, mas em coerência de intenção radicada e idêntica verve, erguer semelhantes punhos e setas para bater, tão facilmente à distância ou à socapa, num velho académico e purpurado da Igreja em Portugal!

– Mas termino aqui:

Ainda não há muitos anos, na sequência de uma notável, exemplar e qualificada troca epistolar, depois vertida para livro com prefácio de Eduardo Lourenço, sobre o título de Diálogos sobre a Fé, Eduardo Prado Coelho escrevia a D. José Policarpo:

“O Meu Caro Amigo diz que desde sempre sentiu um desejo de pôr o diálogo em prática. Não tenho dúvidas. Se há algo que define a Igreja portuguesa, tem sido este clima relativamente recente como ela se integrou na democracia e como em muitos planos nos deu, a todos nós, verdadeiras lições de espírito aberto e dialogante. É natural que isto de faça de forma diferenciada conforme as personalidades, os lugares, as tradições e as responsabilidades. Mas a verdade é que a grande linha de orientação que neste momento domina é em muitos aspectos marcada por uma capacidade de ser positiva, afirmativa, expansiva – e isso merece de nós um aplauso unânime”.

– Boa ocasião porém e assim para um purificar de mãos, transparência de ideias e tino nas conscienciosas línguas de políticos, jornalistas e comentadores, tão pouco dignos afinal, nas suas cívica, eticamente (in)visíveis e impunes facetas… do Facebook!

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Publicado em: "A União" (08.10.2011): http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25539,
"Diário dos Açores" (09.10.2011) e Azores Digital (http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2155&tipo=col).
Primeira versão em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 08.10.2011).