sábado, outubro 22, 2011

As Sombras da Revolta


A semana que findou foi sem dúvida marcada pelas anunciadas e temíveis medidas governamentais de austeridade, previsão de cortes salariais e subsídios, penalizações tributárias, potenciação de nefastos efeitos no desemprego, despedimentos e falências, conjecturável recessão económica sistémica, etc., – tudo proposto ou decorrente do próximo Orçamento de Estado/Troika e nele plasmado pelo Governo PSD/CDS como mais um dos ditos frutos amargos das heranças, internas e externas, efectivamente recebidas ou tacticamente invocadas…

As reacções a tal torção do País e – também com algum recurso tardio, mas muito conveniente agora, diga-se… – às suas acrescidas expiações esburacadamente endossadas às Autonomias Regionais, não se fizeram esperar, vindas de quase todos os sectores, formações e classes sociais, e bem assim dos mais diversos agentes, atores, comentadores e analistas, politólogos e economistas (alguns destes, mais próximos dos puros e duros crânios da Escola de Chicago e alheios às determinações e fundamentos filosófico-políticos e ideológicos da Economia como Ciência Social, apenas compulsando cálculos e quantificações redutoramente economicistas e técnico-contabilísticas), sindicalistas desesperados, empresários e patrões aflitos, IPSS e ONG alarmadas, constitucionalistas e juristas divididos, movimentos cívicos indignados, intelectuais, filósofos e cientistas sociais em protesto, cidadãos em pânico, e – doutrinal e evangelicamente – a Igreja Católica!

Todavia, de entre todas as mais notáveis, paradigmáticas e controversas ou consensuais intervenções criticamente assumidas e que os OCS e as Redes Sociais registaram segundo perspectivas radicalmente opostas e/ou coincidentes, julgo merecerem destaque as seguintes:

     - D. Januário Torgal Ferreira (sem meias tintas de sermão ou missa cantada, fustigando os descomedimentos do Poder, do Governo e da Finança);

          - Boaventura Sousa Santos (na constatação da emergência da contestação e da explicitação da necessidade de uma alternativa profunda ao establishment político-constitucional, social e económico-financeiro vigente);

     - Bagão Félix (democrata-cristão, de consabida sensibilidade social, acentuando a injusta desproporcionalidade e falta de equidade nas bitolas fiscais preconizadas);

     - Mira Amaral (apelante abencerragem palavrosa da histórica baronia “social-democrata”, figura recorrentemente tutelar das mais recheadas e conspurcadas garagens de interesses e antigas carroçarias de prebendas bancárias e empresariais que ainda desgraçadamente enlameiam o presente e o futuro de certos expoentes do que resta do partido fundado por Sá Carneiro, e que, não há muito tempo sequer, distinguira-se novamente pela vulgaridade compulsiva do discurso político-partidário com que brindou uma sua companheira e adversária no PSD, a ponderável “velha senhora” Ferreira Leite…);

     - Gomes Canotilho (reconhecendo a possível inconstitucionalidade formal de algumas das excepcionais decretações agora impostas);

     - Bruto da Costa (com a sua objectiva análise, resistente coerência e profética denúncia social e ética dos riscos globais da galopante Pobreza em Portugal);

     - e finalmente (em acentuada e frontal fluência magistral!) o Presidente da República, Cavaco Silva, com o seu corajoso, muito crítico, precaucional e lúcido discurso ao Congresso dos Economistas (disponível em http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=58158), aplicando, específica e coerentemente à praça político-económica e societária lusas, perante a embasbacada e encolhida consciência da turma governamental e das formaturas partidárias que a suportam, aquilo mesmo que há semanas tinha análoga e incisivamente defendido, no Instituto Universitário Europeu de Florença, para a macro-escala económico-política europeia!

– E é assim que da atenta análise de todas essas intervenções e das circunstâncias e acontecimentos que as motivaram, para usarmos as metáforas biomédicas e existenciais tão usuais nestes dias de depressão e náusea nacionais, fica a evidente certeza de que nenhuma cura de nenhum mal poderá ser feita sem diagnóstico diferenciado e terapêutica holística, psicossomaticamente equilibrada e com regulação homeostática…, o que é o mesmo que constatar que a política financeira e a contabilística económica, quando exercidas à revelia da recta e superior ordenação do Bem Comum dos corpos sociais e contra toda a normatividade personalista e ética da Justiça, do Desenvolvimento Integral, da Solidariedade e da Liberdade, mais não suscitam, configuram e potenciam do que a cancerização de todos os tecidos e órgãos comunitários – leia-se sofrimento, injustiça, opressão, miséria, estagnação, ressentimento, violência, criminalidade… – e um crescente, daí resultante e legitimado direito à indignação, à revolta e (quando não até…) à Revolução, como as lições da História mostram e, muitas vezes, exigem mesmo.

Todavia – como acaba de lembrar Eduardo Lourenço, evocando europeias sombras, os riscos e os perigos “dos caos regeneradores, da mitologia do caos wagneriano e da defesa de que o caos regenera” –, não deve a justa indignação ser apenas usada como arma, porquanto ela é mais da ordem e da natureza dos sintomas

– Por isso é que, mais do que apelos à Revolução, o que deve advogar-se é uma outra Democracia, “o mínimo exercício dela” em tudo, a começar certamente também na vontade e no direito dos Povos, Nações e Regiões ao democrático exercício da rejeição daquilo e de quem os domina, explora e impiedosamente acabará por destrui-los!

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Publicado em "A União" (http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25703) e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 23.10.2011) e "Azores Digital" (http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2160&tipo=col).
Outra e primeira versão em "Diário Insular": http://www.diarioinsular.com/ (Angra do Heroísmo, 22.10.2011).