quarta-feira, fevereiro 20, 2013


NEMÉSIO E OS VINHOS DA ILHA

1. Um conhecido e proverbial testemunho – aliás bem sugestivo, sobre o ambiente e os contextos artísticos, literários e culturais, mais ou menos animados, fraternais e boémios (como se imagina…), que terão rodeado a elaboração e o selo último do famoso quadro de António Dacosta sobre Nemésio –, conta que o Pintor angrense ao fazer o quadro do escritor do Corsário das Ilhas – e quando ao encimá-lo de remate com a legenda V.N., logo teria interrogado os companheiros próximos sobre o significado das famosas e paradigmáticas siglas…

E então, recorda-se mais, que ao ser-lhe palpitado, indubitavelmente, reportarem-se as letras à indicação sinalética dos nomes Vitorino Nemésio, logo garantiu que não, que não senhor, que era falsa pista e não univocamente tão clara ou perceptível como o retrato parecia mostrar, e que se desenganassem no equívoco, sem sombra, suposto, para dúvida legível!

– Porém ainda, antes que sim, que melhor talvez fosse, mas de outra expressão, quem sabe se sempre nova em velhos odres, e que o ali do trago do pincel para a vista se emborcara não era senão legenda outra, por Vinho Novo, – concluía.

Todavia, a pincelada de Dacosta vem aqui à mesa hoje e ao balcão tocado de cheiros de memória mas é para uma vide de escrita de evocação – de vida, devida e grata – e no ensejo presente de celebrar o Centenário do Nascimento do Poeta da Festa Redonda, ou não tivesse sido toda a nossa Ilha por ele cantada e assim erguida em popular cálice e quadra:

Minha rosa, minha casa,
Meu almário, minha flor;
Arca de pão, minha vinha,
Minha terra, meu amor!

2. Nas páginas de uma publicação enófila – para mais desta terceirense Confraria do Verdelho dos Biscoitos –, a propósito de Vitorino Nemésio e da presença do Vinho na sua vida e na sua obra – tanto real como ficcionalmente –, não deixaria de ser curioso proceder à selecção dos ricos cachos, apuradas castas e preciosas colheitas, que a tal figura de produção e fruto da terra  – metáfora poética e trabalho do homem! – o autor de Mau Tempo no Canal concedeu adega literária ou latada castiça…

 
Segunda-feira dos Biscoitos (1952). Dia de Tourada:
     Vitorino Nemésio, em casa de Manuel Gonçalves Toledo Brum, 
     com João de Oliveira Gouveia e Fernando Linhares Brum.

– E depois, para tanto, não deixariam também de justificar o gesto da apanha, a percepção da cor e o paladar que tal faina deixasse escorrer de balseiros e prensas, ao provarmos, com sede, o escorrer vivo e observante das suas prosas e da sua apurada e única poesia!

Desde aquelas falas do discurso humaníssimo e castiço do conto do Matesinho de São Mateus – “Padaço de Traste”! Tarraço! –, que sem vinho “era o rei dos bensinados e amigo de carrear”, o tal que para Consuelo, na Calle de las Fuentes, mandara vir

“roda de aniz, que chómum amuntilhado, pois sempre era ua bebida doce, e as mulheres gosto daquilho”,

– o mesmo que “era o maior gavola que a Vila da Praia tinha” e que


“Pelava-se por vinho e cachaça, entrando às vezes em casa perdidinho de bêbado. É verdade que passava às vezes um mês e mais sem copo (…). O seu fraco era aguardente do balcão – que emborcava, sem pestanejar, aos dezasseis de cada vez. Numa aposta, mesmo, lá ia meio quartilho. Enxugava também com limpeza o seu cálix de nêspera, empinando-se com o nó da garganta a embolar debaixo da papada”,


– até àquelas Décimas & Cantigas de Terreiro –

Meu Primo Chico Maria,
Maioral do meu concelho,
Alfenete de oiro puro
Como vinho de verdelho!

Meu Primo Chico Maria,
Nem visconde nem barão;
Pinheiros da tua casta
Não querem escoras, não!

Meu Primo Chico Maria!
Nas tuas pipas de vinho
Cabia o mar dos Biscoitos
E o povo do Raminho…


Meu Primo Chico Maria,
Dono da Agualva e Fontinhas!
Dizei-me se lá do Céu
Tendes saudades das vinhas…

– e também desde aquele maravilhamento da Tourada e dos seus bulícios –

“Quinto domingo na Agualva;
Manuel Maria Brum!”
Vá fogo prò ar! Brindeiras
E tambores, turuntuntun!

– até às suas erguidas taças de profunda reminiscência –

Que lembro? Um sonho é pouco nas aradas,
Pão de alma não granou no estéril chão
E, a vinho, ponho à boca o coração.

– sempre em Vitorino Nemésio poderíamos detectar marcas dessa presença, nos mais diferentes contextos, esferas de realidade e mundos de linguagem.




3. Deixando, porém, para outra prova, ou mostra, tão longa e ampla degustação merecida e proveitosa, fiquemo-nos apenas por agora numa banqueta de lava, junto àquela mesma geografia histórica e humana que deixou bagos extremos em roda da Ilha Terceira, acabando por lacrar as saídas saudosas e as aconselhadas entradas limítrofes e comuns dos vinhedos e do próprio concelho nemesianos da Praia da Vitória…

- Na verdade, entre muitos dos muros da pedra vulcânica e da existência insular que lhe balizaram as vivências, as inspirações, o calor almado do coração açoriano e a profunda graduação oceânica do espírito, ali, sobremaneira vivenciados e significantes, encontramos pingos daquele Vinho que – do Porto Martim aos Biscoitos – é mansa festa, alegria e exclamado fascínio:

Ah, Porto Martim das uvas,
Baga de faia cheirosa,
Minha maçã redondinha,
Pedra negra preciosa!

Ora este Porto Martim e aqueles Biscoitos, por igual, são “lavas cobertas de vinhedo, de matinhos de faia e pitosporos”, aonde no passado se erguiam cedo

“os filhos dos vinhateiros e lavradores da periferia do biscoito (nome do chão de pedra vulcânica onde, em currais, medra a vinha)”,

mas hoje se levantam e entrecruzam novas e estrategicamente calculadas mobilizações socioeconómicas…, um pouco como aquelas que Nemésio não deixou, no seu tempo e a seu modo, de lamentar ver desabafar, como uma ameaçadora trituração implacável do nosso clássico viver antigo, enquanto

“se vão desfazendo, como se fossem simples saibreiras, os velhos picos da ilha cobertos de trevinha e debruados de hortenses…”.

– Talvez por isso mesmo as vides histórico-literárias de Nemésio destilem ainda agora mais actuais e espirituosas graduações críticas do que na época dos seus primeiros frutos!

A 24 anos da sua morte – idade nobre para a qualidade de certos vinhos… –, a sua obra permanece pois, como casta privilegiadamente exposta, quando em temperatura crítica para fermentação cuidada – e sendo passada pelos cascos da mais genuína Açorianidade –, cada vez mais nimbada de luz e cor, e assim enfim animada do único sabor e saber que os verdadeiros Escanções podem apreciar, provando e servindo…

Ilha Terceira, 20 de Dezembro de 2001
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Publicado na Revista Verdelho – Boletim da Confraria de Vinho Verdelho dos Biscoitos, Nº. 6 (2001).

Disponível no Blogue Bagos d' Uva: