sexta-feira, maio 03, 2013


Memória de um Projecto Cristão
para Desenvolvimento dos Açores



Nesta efeméride da passagem de meio século sobre a ocorrência de acontecimentos históricos muito marcantes e decisivos na vida da sociedade açoriana de meados do Século XX, tive já oportunidade de evocar aqui dois deles – a II Semana de Estudos dos Açores e o início dos Cursos de Cristandade no Arquipélago –, relacionando-os especialmente com a publicação da Encíclica Pacem in Terris, a realização e a recepção do Concilio Vaticano II, a Doutrina Social da Igreja e o Pensamento Humanista Cristão, – factos e factores que conjugadamente moldaram uma ilustríssima geração de Açorianos e balizaram os seus horizontes, ideários, projectos e comprometimentos espirituais, sociais, culturais e políticos.

1. Hoje abordarei sucintamente mais um exemplo desses acontecimentos e recepção dessas ideias, recordando a paradigmática confluência verificada entre aquele que seria afinal o principal lema das Semanas de Estudos e uma sua interpretação ortoprática tal como foram subscritas no discurso de um distinto homem da sociedade e da imprensa micaelenses da época, – precisamente o Dr. Manuel Carreiro, então Director do “Diário dos Açores” (e cujo filho Manuel/“Mani” viria a falecer, morto em combate na Guiné, durante a Guerra Colonial que o regime deposto em 25 de Abril sustentaria durante décadas de opressivos sacrifícios, injustiças, logros, arbitrariedades e impasses nacionais, regionais e pessoais…). 

– E foi assim que na Apresentação do Livro da II Semana de Estudos (realizada em Angra do Heroísmo entre os dias 3 e 10 de Abril de 1963) o seu genial animador e incansável Secretário, Doutor José Enes (na pintura-retrato de Aristides Ambar que ilustra este texto), depois de salientar o “nível das conferências e dos debates, o interesse activo e o admirável espírito de compreensão, sinceridade e tolerância” que haviam timbrado as respectivas sessões com “um valor cultural e humano verdadeiramente invulgar”, acabaria por colocar aquele ímpar projecto pan-açoriano sob o programático lema de “Mais saber para melhor viver”!

Porém aquela formulação fora possivelmente inspirada e como que parafraseava filosoficamente uma célebre passagem da Encíclica Mater et Magistra (de João XXIII), por sua vez recolhida da não menos indicativa expressão – “Ver, julgar, agir” – do método pastoral do cardeal Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica (JOC) e que tinha aliás desempenhado activo papel como um dos mais empenhados e primeiros responsáveis católicos a pedir ao Papa, em Memorando próprio, a publicação de nova Encíclica social para marcar o 70º. Aniversário da Rerum Novarum (1891) de Leão XIII. E de facto, na Mater et Magistra (15 de Maio de 1961), no articulado relativo a “Sugestões práticas”, viria depois a ler-se:

– «Para levar a realizações concretas os princípios e as directrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios e directrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as directrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: "ver, julgar e agir"» …

2. Ora é neste contexto socio-histórico e teórico-prático que José Enes, citando Manuel Carreiro, depois de afiançar que como portugueses e como açorianos tínhamos consciência de que a hora não era “para divagações estéreis nem para discussões bizantinas”, destacava o argumento a relevar e subscrever com o Director do “Diário dos Açores” quando este dizia que “de mãos dadas, olhando-nos de frente e nunca indiferentes, poderemos discutir, limar arestas, e resolver grandes problemas açorianos, há muito aguardando solução satisfatória. Só assim, francos e descontraídos, poderemos dar ao Arquipélago aquela coesão e força anímica de que tanto carece, para que mais se valorize e prestigie”!

Por seu lado e do mesmo modo, justa e finalmente José Enes concluía, com toda a previdente lucidez da sua tão reflectida e avisada prospectiva: – “E é desta forma que as ideias entram na convivência humana, ao nível da consciência colectiva, transformando-se em sistemas de dominantes teóricas e práticas. Quer dizer: é assim que se elabora a cultura vivida.

“Com o desejo de mais saber para melhor viver, comecemos, portanto, sob o signo da boa vontade, da sinceridade e da tolerância”…

3. Todavia, agora e aqui, passado meio século, talvez seja urgente e proveitoso repensarmos todos e analogamente o estado de coisas a que chegámos, e tudo aquilo que não soubemos (ou não nos deixaram…) construir como homens e como cristãos portugueses dos Açores, no País, para a nossa Região Autónoma e com todos os Açorianos, sendo que talvez com isso nos tornaríamos mais dignos das esperanças e lutas do passado… Ou não permanecessem ainda vigentes e actuais as históricas palavras da mesma Encíclica, lá pelos idos (?) anos 60, ao analisar os antecedentes do século, assim:

–“Como é sabido de todos, o conceito do mundo económico, então mais difundido e posto em prática, era um conceito naturalista, negador de toda a relação entre moral e economia. (…) Juros dos capitais, preços das mercadorias e dos serviços, benefícios e salários, são determinados, de modo exclusivo e automático, pelas leis do mercado. (…) Num mundo económico assim concebido, a lei do mais forte encontrava plena justificação no plano teórico e dominava no das relações concretas entre os homens. E daí derivava uma ordem económica radicalmente perturbada.

“ (…) Enquanto, em mãos de poucos, se acumulavam riquezas imensas, as classes trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar. (…) Sempre ameaçador o espectro do desemprego.

“ (…) Não devemos, pois, admirar-nos, se os católicos mais eminentes, atendendo aos apelos da Encíclica, empreenderam iniciativas múltiplas, para traduzirem em prática os seus princípios. De facto, nessa tarefa se empenharam, sob o impulso de exigências objectivas da natureza, homens de boa vontade de todos os países do mundo.

“Por isso, a Encíclica, com razão, foi e continua a ser considerada como a Magna Carta da reconstrução económica e social da época moderna”…
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Em RTP-Açores:
http://www.rtp.pt/acores/index.php?article=32031&visual=9&layout=17&tm=41;
Azores Digital:
Jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 03.05.2013)