domingo, setembro 01, 2013

José Enes ou A Filosofia
como Projecto de Vida

1. Mal sabia eu ao rumar à ilha de Ramon Llull que o meu querido Prof. José Enes deixaria nesse dia a terrena casa do ser, – aquela que na mais profunda raiz da nossa condição existencial tanto configura o sentido contingente, o destino e o estatuto ontológico da “finitude dos limites” do homo viator, como é condição de possibilidade do acesso novíssimo à Porta daquele Futuro Absoluto em cuja Transcendência cremos e confiamos, enquanto na consciência reflexa e nos seus signos – no silêncio matutino da Poesia ou nos verbos e metáforas da Filosofia – expectantemente questionamos se “a aridez deste deserto/chamará pelas fontes”…

Agora – para breve testemunho deste excepcional pensador português, para além do que antes escrevi –, que mais hei-de evocar dos anos em que privei e do muito que académica e cientificamente aprendi, culturalmente trabalhei e partilhei com ele, na Universidade, na sociedade e na fraterna intimidade da Família?

– Na impossibilidade de o dizer aqui de outro ampliado modo, como ele o merecerá sempre, saudosamente relembro hoje a lucidez orientadora das suas palavras generosas, os gestos paternais, a luminosidade inspiradora do pensamento vivo, a brilhante recriação hermenêutica das linguagens, a firmeza ética do carácter pessoal e institucional, – todos na exemplaridade cônscia do seu espírito filosófico, do seu universal saber integrado e da sua inquieta e inconsútil alma açoriana.




2. Passam agora mais de 20 anos sobre a justíssima Homenagem que a Câmara de Ponta Delgada prestou ao Prof. José Enes, concedendo-lhe então (1992) o merecido estatuto de Cidadão Honorário daquela maior cidade dos Açores – louvável iniciativa que aliás viria a ser seguida, em 1999, pelas Lajes do Pico (em cujo concelho, na freguesia da Silveira, o homenageado nascera a 18.08.1924) – e dando depois, em 2005, o nome daquele verdadeiro fundador, primeiro e Magnífico Reitor da nossa Universidade a uma das novas praças da zona “Urbe Oceanus” do município, sendo sua presidente Berta Cabral, – entidades autárquicas açorianas que assim figuram entre todas as que reconhecida e publicamente o louvaram em vida.

Por outro lado e a par ainda daqueles justos agraciamentos, recordo os do Corpo Nacional de Escutas (que lhe atribuiu, em 1958, a Medalha de Ouro de Gratidão pela sua liderante introdução do Escutismo Católico no Seminário de Angra); da Universidade de Rhode Island (Doutoramento Honoris Causa, em 1978); da Universidade Aberta (da qual Vice-Reitor e que lhe concedeu a respectiva Medalha de Ouro, em 1994), e – enfim … – da Presidência da República Portuguesa, que o condecorou sucessivamente com os Graus de “Grande Oficial da Ordem do Infante” (1964) e da “Ordem da Instrução Pública” (1983).

Quanto à Universidade dos Açores, saliente-se os louvores académicos que lhe foram prestados em 2005 (sendo Reitor Avelino Meneses), altura em que foi publicado, sob coordenação de José Luís Brandão da Luz, o esmerado e significativo volume Caminhos do Pensamento, Estudos de Homenagem ao Professor José Enes, no qual colaboraram alguns dos estudiosos da sua Obra, e outros discípulos, colegas e amigos nossos.

3. Hoje, estando a decorrer exactamente um mês sobre a data do falecimento (1 de Agosto) daquele que foi uma das mais distintas personalidades intelectuais, literárias, institucionais, académicas, sociais, culturais e espirituais da sociedade açoriana da segunda metade do Século XX, e não tendo eu podido deixar antes o solicitado e devido testemunho sobre a Vida e Obra do Prof. José Enes, a quando e a propósito daquela triste ocorrência, aqui ficam então agora estas palavras, intencionalmente retomando para tal e quase na íntegra também o texto mesmo de uma anterior e já distante evocação de há 20 anos, porém relido e novamente subscrito o seu conteúdo à luz das presentes circunstâncias e na planeada sequência daquilo que, semanas atrás, nestas colunas vinha abordando sobre algumas das mais relevantes dinâmicas societárias da vida dos Açores, onde José Enes desempenhou um papel absolutamente ímpar e talvez insuperável!

De resto e para além do mais, estas notas não podem esquecer – mas todavia ressalvam a preceito da respeitável efeméride actual – muito daquilo que, por entre ventos e marés, foi tantas vezes invejosa ou despeitadamente movido ao Prof. José Enes – intolerantes dissensões doutrinárias e ideológicas, incompreensões e tentativas de incendiários libelos (recordáveis por entre machadadas obscuras…), venenos à falsa fé ou a coberto de seráficas e invertebradas letras e tretas, etc. –, todos a modos de ignóbeis, rasteiros e quase expatriantes golpázios, apenas para escusado e interesseiro conluio ou tentativa frustrada de silenciamento pessoal e político-institucional por parte de tantos daqueles que, agora, deixam cair no proscénio do cinismo nacional, regional e local a hipócrita lágrima da mais repugnante compunção póstuma sobre os seus inegáveis e aproveitados legados, fundamentados projectos ou indicativas utopias concretas…

4. Assistente que fui do Prof. José Enes, durante anos, na Universidade dos Açores (na leccionação das Cadeiras de Ontologia e Axiologia e Ética); orientado por ele para Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica; companheiro e acompanhante de prospectivos trabalhos no seu tão empenhativo CERIE (Centro de Estudos de Relações Internacionais e Estratégia); privilegiado merecedor da sua generosa, paternal e fraterna Amizade, daquela espécie de íntima e sapiente tutoria filosófica e humana do seu profundo e complexo saber comprometido, e da sua densa e partilhada experiência de vida, – é-me difícil dar, em poucas linhas, depoimento adequado à estatura do Filósofo de À Porta do Ser (1969), Linguagem e Ser (1983) e Noeticidade e Ontologia (1999); do Crítico e Ensaísta de Estudos e Ensaios (1982) e Autonomia da Arte (1965); do Poeta de Água do Mar e do Céu; do sistemático estudioso, teórico comprometido e prático militante da dominância das origens da Açorianidade e na Autonomia, para já nem falar nas suas propedêuticas teoréticas e reflexões exegéticas nas esferas da Teologia, Fenomenologia da Religião, Poética Literária (Roberto Mesquita, Pessoa e Nemésio), Sociologia, Filosofia da Ciência, História da Cultura e Filosofia Social e Política.

– De resto, tanto na Educação e no Ensino diocesanos e no Magistério Universitário (Universidade Católica, Universidade dos Açores e Universidade Aberta), quanto através de Conferências, Traduções e Investigações filosóficas e multidisciplinares, sempre José Enes ocupou e ocupará lugar cimeiro na inteligência da Cultura e da Identidade portuguesas, nomeadamente no particular horizonte temático de um original e inovador jeito de Pensar, perspectivado a partir de problematizáveis primórdios e prosseguimentos escolásticos e tomistas (Aristóteles, Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca, Suárez, António Cordeiro, Hoenen…), mas depois logo, como identicamente detectou Gustavo de Fraga, num “diálogo filosófico de que ficarão resultados e vestígios seguros na nossa linguagem filosófica e literária”, mormente no confronto crítico, categorial e discursivo, com Heidegger, Kant, Descartes, Hegel e Ricoeur.


5. Figura cimeira, liderante e referencial de uma geração de Açorianos ilustres e empenhados na nossa comunidade insular e autonómica, e na nossa comunidade de destino, pátria e civilização, a ele se deve, a par do imenso labor da reflexão intelectual, uma esforçada e multímoda acção prática, ambas conseguidas no contexto possível das diferentes e mutáveis circunstâncias orgânicas e das conjunturas históricas e mentais do tempo em que viveu…

E assim aconteceu ainda, como já aqui salientei anteriormente, no âmbito pioneiro das Semanas de Estudos dos Açores, nos círculos e centros pedagógicos e associativos diocesanos da renovação conciliar e socio-espiritual Católica (Cursos de Cristandade, especialmente), no Suplementarismo Cultural (“A União”), na produção e no movimento editorial e artístico nacional e dos Institutos Culturais dos Açores, etc., aonde a contribuição de José Enes foi decisiva (e mantém-se contemporaneamente válida!) para aquilo que ele próprio definiu e sintetizou como sendo a elaboração do pensamento da nossa sociedade.

– Ora todo esse projecto comunitário e institucional, simultaneamente teórico, técnico e prático, também foi, é e deve continuar a ser, uma procura de formulação explícita e sistemática da experiência histórica de sociedade açoriana, com vista à sua integral evolução e ao seu desenvolvimento cultural, científico e educativo, socioeconómico, político-administrativo e espiritual!

Porém, mais do que a minha discursividade valerá ouvir a sua, na formulação da intencionalidade precisiva das dinâmicas e das virtualidades de um saber integrado e de uma prática lúcida, para fundamentação segura e competente efectivação de tudo aquilo que neste domínio pode e deve emancipadoramente ser esperado:

– “No processo histórico as decisões são tomadas mediante a interpretação das potencialidades que estabelecem o fluxo causativo dos acontecimentos. O devir do acontecer histórico é formalmente constituído pelo discurso da razão hermenêutica e pelo discurso da razão prática. E são as razões fundamentantes da razão hermenêutica e as razões motivantes da razão prática que formam e dão consistência àquilo a que se costuma chamar o destino de uma sociedade ou a sua vocação histórica, ou o seu papel na história, entendidas, é claro, estas expressões como denotativas de entidades formalmente históricas.

“Ao longo do seu percurso histórico e sob o aguilhão dos obstáculos e dos percalços, vão-se aquelas razões armando com as categorias e os argumentos dos seus respectivos discursos.
“E à medida que o nível cultural da sociedade sobe e que no seu seio surgem homens dotados de alto poder de cerebração, aqueles conceitos e raciocínios se vão explicitamente formalizando e tendendo para a recíproca integração num sistema. Assim se vai formando aquilo a que se dá o nome de pensamento de uma sociedade. Isto é: o pensamento da sociedade sobre si mesma e que ela forma através da sua experiência histórica”.

E concluía o Prof. José Enes no texto que venho tendo em atenção:

“Parafraseando [Unamuno] nós poderemos chamar aos Açores o miradoiro atlântico da nossa visão de Portugal. Por força da em nós vigente transcendentalidade da proto-história dos Açores, para usar a expressão nemesiana, a nossa perspectiva atlântica é de facto essencial para a descoberta dos vectores mais autênticos da historicidade portuguesa”.

E também assim, por tudo e para tudo isto, é que toda a Obra de José Enes representa um legado precioso e será sempre um factor de enriquecimento e um ponto de luminosa referência na construção e na ultrapassagem históricas da consciência e da auto-consciência dos Açores, perante todos os desafios, impasses ou retrocessos do presente ou do futuro… Mas para tal é necessário conhecê-la, estudá-la, divulgá-la e pensar com ela, para – na medida do possível (face a tantas das condicionantes e indigências actuais a que estamos amarrados…) – levá-la à vantajosa e crítica frutificação real, renovada e sistemática!

– Será essa certamente a melhor homenagem que o País, os Açores e os Açorianos de boa e racional vontade lhe poderão gratamente vir a prestar, respeitando a sua memória e partilhando a força meditativa e crítica do seu espírito, quando ele já não está – apenas ao (a)parecer fenoménico, digo, como não sendo do mesmo modo, isto é, ontológica e existencialmente configurado como dantes – agora, ainda vivo e presente, entre nós…

Angra do Heroísmo, 1 de Setembro de 2013
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Em Jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 01.09.2013).
Versão parcial em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 01.09.2013).
Um extracto deste texto (§ 1) foi também publicado no Suplemento de Homenagem ao Prof. José Enes, publicado pelo Jornal "Correio dos Açores" (Ponta Delgada, 01.09.2013), com o título A Exemplaridade do Espírito.