sábado, dezembro 21, 2013


Uma Memória Libertadora

1. Assinada em Roma pelo Papa Francisco no dia de encerramento do Ano da Fé (24 de Novembro), a Exortação Apostólica (1) Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho) é um documento pastoral que deverá – assim se espera, conforme expressamente pretendido pelo seu autor – marcar “uma nova etapa evangelizadora (…) e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos”.

– Dividido em 288 parágrafos agrupados em 5 capítulos (“A Transformação Missionária da Igreja”, “Na Crise do Compromisso Comunitário”, “O Anúncio do Evangelho”, “A Dimensão Social da Evangelização” e “Evangelizadores com Espírito”), o conteúdo deste notável, belo e denso texto, inserindo-se naturalmente na linha teológica da Doutrina Social que vinha sendo continuadamente delineada em especial pelos últimos Pontífices, traz contudo uma série de outras incisivas propostas de leitura crítica dos contemporâneos “sinais dos tempos”.


Ora é precisamente nesse sentido que a Evangelii Gaudium é direccionada, mas agora a partir de uma específica retoma da categoria bíblica (vétero e neotestamentária) e –digamos assim – para-teologal da Alegria, visando e proclamando uma fecunda e revigorada nova acção evangelizadora e missionária da universal existência humana no mundo actual, aqui caracterizado como historicamente moldado e hodiernamente assente no permanente grande risco de “uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada” e de uma “vida interior” fechada nos próprios interesses, onde “deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem”! 


2. Elaborada com discernimento e ousadia por este Papa latino-americano, vindo da Companhia de Jesus e de um continente-mundo outro – e até sintomaticamente redigida com um notório esforço hermenêutico (logo atestado pelos neologismos…), pela dialectização conceptual das categorias antropológico-transcendentais e até pelos estilísticos usos gramaticais do singular da primeira pessoa (sem recurso à tradicional forma de um plural talvez de outro modo mais majestático do que colectivo, colegial ou, inversamente, de Cúria romana…) –, esta Exortação propõe, com admirável pertinência de análise, “algumas directrizes que possam encorajar e orientar” o imperioso tratamento subsequente e consequente de toda uma “multiplicidade de questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso”…

E de facto neste documento do Papa Francisco – conquanto não “com a intenção de oferecer um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão actual da Igreja” –, não faltam abundantes temas, problemas, pistas, exigentes pensamentos e autores antigos, clássicos e modernos, desde a Patrística (S. Ambrósio, S. Cirilo, S. João Crisóstomo…) ao seu mestre Romano Guardini ou a Ismael Quiles, e desde Platão, S. Agostinho e S. Tomás de Aquino a John Henry Newman, George Bernanos e Henri de Lubac, passando por S. João da Cruz, Santa Teresa de Lisieux e Tomás de Kempis, entre muitos outros inter-textualmente presentes ou reconhecidamente paralelos às tematizações aduzidas e sempre a par ou por entre acontecimentos concretamente vividos, factos pessoalmente padecidos (lembremos as resistências activas de Jorge Mario Bergoglio à ditadura torciária dos generais argentinos!), testemunhos agudamente percepcionados, dramas históricos, denúncias proféticas e desafios religiosos, culturais e civilizacionais seculares (ali abordados claramente, ou de modo suficientemente audível e inteligível a partir de outras vozes afins…)!


– No entanto, e por isso mesmo, a Evangelii Gaudium solicitará também assim uma continuidade compreensiva e uma retoma reflexiva e ortoprática dos diversos e complementares delineamentos e conceitos que a moldam e integram, – muitos deles tantas vezes simplesmente já esquecidos ou intencionalmente ignorados (quando não até totalmente desconhecidos entre nós…), como sejam aqueles que dão objectivo e rigoroso conteúdo teológico, filosófico, ético, social e histórico-cultural aos documentos sinodais ou episcopais de todos os cinco continentes da Terra (com realce para os não-europeus ou menos eurocêntricos…), aos patrimónios e heranças espirituais das ordens religiosas (leia-se o que é recapitulado da lectio divina…), à sistemática do “sensus fidei” e do “querigma”, à mistagogia catequética, à dimensão estética dos ritos e do culto, à arte oratória e homiliética, às linguagens da inculturação, à defesa da dignidade inviolável do começo e do termo da vida humana, etc., etc., sem esquecer a necessidade fundante e básica de uma cultura geral, de educação humanística, histórico-filosófica, artística, ecológica e científica, de um sólido domínio das narrativas histórico-culturais planetárias, dos jogos da comunicação e das mentalidades civilizacionais, – todos eles permitindo ter acesso racional e afectivo às configurações e modelos poliédricos do Espírito e ao entendimento dos núcleos conceptuais e societários recorrentes de fenómenos como o irenismo, o nominalismo, o subjectivismo, o imanentismo antropocêntrico, o racionalismo, o gnosticismo e o pelagianismo…


Porém, e julgo que também isto deve ser acentuado, o discurso desta Exortação é desenvolvido num crescendo argumentativo incisivamente realista mas quase angustiadamente apreensivo, conforme dele amiúde ressalta com o receio ou a suspeita (quando não até previsão?) da posterior consumação da possibilidade mesma daqueles fatais e fatalistas alheamentos (conformismos, demissões e irresponsabilidades!) que sistemática, institucional e individualmente geram e configuram, nas recordadas palavras do seu antecessor Joseph Ratzinger/Bento XVI, essa maior ameaça que “é o pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade, mas [onde] na realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez”, tal como o novo Papa igualmente ainda teme e confessa:

“Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avanças no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. (…) Constituamo-nos em ‘estado permanente de missão’, em todas as regiões da Terra”.

“ (…) “É a hora, escreve depois o Papa, de saber como projectar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos, mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões”! 


 3. Identificando com precisão, ou por analogia doutrinal, fenómenos teológico-filosóficos vários, paradigmas mentais, estruturas eclesiais e esferas histórico-espirituais, intelectuais e pragmáticas, esta Exortação Apostólica, aliás societariamente bastante corajosa e eticamente apelativa – pelo que começou já a provocar (2), de quadrantes ideológicos opostos, ignorantes acusações, retrógradas instrumentalizações e abusivas colagens táctico-políticas… –, sendo todavia e em primeiro lugar um documento pastoral cristão, e nisto fazendo uma perfeita síntese de congéneres abordagens anteriores do Magistério da mesma Igreja (bastas vezes aliás nem sequer textualmente lembradas e ainda muito menos praticamente assumidas pelos católicos, como sejam a Evangelii nuntidiani de Paulo VI, Declarações como as de Puebla, de Aparecida ou de Institutos como o “Justiça e Paz”…), nem por isso deixa de conter muitas outras, diversas, progressivas e importantes referências de ordem teológica, metafísica, filosófica, antropológica, cultural, económico-política e moral, todas – apesar das consabidas indigências e menoridades que nos rodeiam também em Portugal… – merecedoras de complementar, competente e articulada reflexão inter e multidisciplinar, aberto debate e autêntica e assumível partilha prática…


– Por tudo isto é que A Alegria do Evangelho não poderá deixar de marcar o nosso pobre Tempo e o nosso escurecido Mundo, felizmente vinda, como veio, neste Advento por mão do papa Francisco, à luz viva da Fé e do anúncio apelativo de uma conversão permanente e confluente de estruturas sociais e de corações, naquela única “força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança”, sob o signo memorial da imagem de uma trémula Estrela no nosso céu de expectantes pastores, junto ao Mistério indizível daquele Menino bem lembrado cujo nascimento representamos e humildemente presenciamos no Presépio, como Sinal de Redenção para a Vida dos Homens e para o Futuro Absoluto.
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(1) – Texto integral da Exortação em Língua Portuguesa, disponível aqui:

(2) – Veja-se a Entrevista do Papa ao jornal “La Stampa” e ao “Vaticam Insider”, em Inglês, aqui:
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- Em “Diário Insular” (Angra do Heroísmo, 29.12.2013):

















Uma primeira versão deste texto (com o título de "Uma Alegria Libertadora") foi publicada no Jornal “Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 21.12.2013):







Uma leitura de Advento


Da autoria do Papa Francisco, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho*) é um documento pastoral que deverá marcar “uma nova etapa evangelizadora (…) e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos”, visando fecunda e revigorada nova acção missionária no mundo actual, aqui caracterizado como assente no grande risco de “uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada” e de uma “vida interior” fechada nos próprios interesses, onde “deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem”!


– Elaborada com discernimento e ousadia por este Papa latino-americano – vindo da Companhia de Jesus e de um continente-mundo outro –, a Exortação propõe, com admirável e corajosa pertinência, “algumas directrizes que possam encorajar e orientar” o imperioso tratamento de toda uma “multiplicidade de questões que devem ser objecto pistas, temas, problemas e exigentes pensamentos, a par e por entre vividos ou agudamente percepcionados dramas históricos, denúncias proféticas e desafios religiosos, culturais e civilizacionais, abordados não “com a intenção de oferecer um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão actual da Igreja”:

“É a hora, escreve pois Jorge Bergoglio, de saber como projectar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos, mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões”!

– Oxalá esta Exortação fosse bem lida, competentemente estudada, debatida e cotejada com outros documentos da Doutrina Social, vindo assim a ter implicações práticas na vida da nossa sociedade e da Igreja que está nos Açores, neste Natal das Ilhas, onde – como escrevia o poeta – “Já brilha/ Nas ondas do mar de inverno/ O menino bem lembrado,/ Que trouxe da sua ilha/ O gosto do peixe eterno/ Em perdão do seu passado”…

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Azores Digital:


RTP-Açores:


e Jornal “Diário Insular” (Angra do Heroísmo, 21.12.2013):