sábado, maio 31, 2014



OS SALTEADORES DO PAÇO

O que se viu nas últimas eleições – e de quem para elas se marimbou (80% de abstenção nos Açores – bonito sinal de cidadania autonómica, sem dúvida, e a merecer foguetório de “vitória”!) –, foi de tal dimensão que devemos retomar o que merece ser pensado, tanto mais quanto a antes citada caixa de pesadelos e maldições de Pandora está já a deixar sair vários daqueles sintomáticos fantasmas – muitos deles previsíveis... – que a velha, cega e cínica Europa, com muitas das suas regiões, vem gerando em suicidário bojo...



– Dito e redito isto (conquanto não estando em causa a invocada e real necessidade de revisão de processos, ideários e práticas dos partidos, cá e lá obviamente, mas desde há muito!), como não pasmar das neo-patéticas cenas de perfeito desvario – despeito fratricida, ambição pessoal ou atracção pelo abismo? – que o País inteiro testemunha face à fria e calculista consumação das puras jogadas de ponta e mola nas duras hostes de Costa contra as maviosidades tácticas de Seguro (às quais por certo sucederão almejadas minagens aos trilhos para Belém...), e onde nem faltaram, em indigente coro ilhéu (41 em 20% de eleitores!), tremendas vociferações e demolhadas prosas de casticismo inócuo carpindo sobre tão (mal)dita e pirrónica “vitória bisonha” – “uma alcatra sem Jamaica, um verdelho a 10 graus” (sic) –, ali à porta desta expiatória ultra-perifericidade, hoje pseudo-democrática e pseudo-autonómica ainda, cívica e culturalmente ébria de ficções e mitos enganadores, como se tudo se resumisse (na Europa, no País, nos Açores e em todos os quadrantes político-partidários) a uma pugna de garotos armados com fisgas, ou a chusma de velhacos metralhando a frio, e desleais, aos tombos e empurrões extemporâneos, qual bando de salteadores, cada um a correr para sua banda nas escadas, salas e varandas do Paço, todos à procura de um (talvez agora mais remoto!) buraco na despensa ou na sala do trono, cujos actuais e coligados reis e xerifes, em confrangedor protectorado euro-luso, podem assim gerir na recuperação da sua derrota, como se esta fosse, ou tivesse sido, uma inesperada e dadivosa vitória à outrance...
___________

Em "Azores Digital":


















e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 31.05.2014):






As Equidades e os Salteadores

1. Nem que por coincidência, nas últimas horas de 23 Maio, quando se comemorava o 91.º aniversário de Eduardo Lourenço, relia eu textos que integram A Europa Desencantada, tendo ao lado um “Diário Insular”, uma revista de Imprensa estrangeira e uma primeira página da colecção (esquecida?) de um quinzenário crítico que se publicava na Praia da Vitória lá pelos anos 80 do século passado... Na altura, recordo, estávamos à beira da suspensão da enfastiante campanha para as Europeias, que alegadamente era para “reflexão” política nossa, isto é, dos cidadãos que aos hábitos e actos democráticos do Voto nunca se deveriam esquivar, nem por absentistas artes de furtar deixar de em consciência fazê-lo cair na ranhura da “urna” (palavra que continua a soar-me fatídica e a retinir sentido de funérea caixa de Pandora)!
 
 


Ora tudo aquilo, que à primeira vista não suscitava nenhuma ligação temática, teve de repente o condão de completar uma espécie de arco reflexivo – expressão que também me fez empeçar nas voltas e reviravoltas do “arco da governação” e que logo me aproximou similarmente das declarações de um politicão da direita gaulesa, das terra-a-terra-minha-gente serventias de argumentação para montagem de pretensos auto-motores autonómicos (de um ex-secretário regional), por um lado, e (por outro) de dois bravos e embravecidos editoriais que, separados por 31 anos (“JP”: 25.03.1983 – “DI”: 21.05.2014), forte e feio batiam na mesma tecla de um “cerco” à Terceira!

E desse modo – por entre as filosóficas e heterodoxas reflexões do autor de O Fascismo Nunca Existiu, as xenófobas e radicais congeminações do Sarkozy (com propostas de suspensão do Acordo de Schegen!),  e as tentações hegemónicas intestinas de uma insólita e presumida (não historicamente inédita, porém falsa e falseada) equidade  (sic) na “repartição dos recursos postos à disposição pelos financiamentos comunitários”... –, nenhuma diferença  (a não ser de escala e despudor) detectei nos equivalentes propósitos das respectivas (in)coerências desenvolvimentistas e de coesão euro-açoriana, até porque desalmadamente construir o que quer que seja “por irresistível pressão das forças económicas (...), como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme ninguém”...


2. Quanto às eleições foi o que se viu nos resultados – e em quem para elas se marimbou, como neste luso arquipélago autonómico (80% de abstenção – bonito sinal de cidadania, sem dúvida, a merecer foguetório de “vitória”!) –, de tal maneira que o tema merece ser pensado, tanto mais quanto a citada caixa de pesadelos e maldições parece estar já a deixar sair vários daqueles sintomáticos fantasmas – muitos deles previsíveis... – que a velha, cega e cínica Europa e as suas regiões de periferia e ultraperiferia societária vem gerando em suicidário bojo...

E depois, aos pequeninos e incautos redutos de certas mentes insulares, atendendo às suas bairristas afinidades e tentações – versão provinciana de nacionalismo serôdio, frentista e populista (à gaulesa.!?), que temos vistos irem-se desencabrestando aos poucos ao longo destas décadas de Autonomia (e sem que ninguém lhes segure a rédea a tempo e tino) –, como não continuar a aplicar-lhes aqueles juízos que, embora noutro contexto, o nosso relembrado aniversariante formulara em 1976:

– “Reunir-se para verificar que se não está de acordo, é reflexo salutar e democrático. Mas fazê-lo para mostrar que o projecto socialista pouco ou nada tem de comum na boca dos seus apoderados, mais ou menos gloriosos, é um exercício de masoquismo político-ideológico que frisa o suicídio. (...) Podia, contudo, esperar-se um mínimo  – entenda-se, um ‘mínimo positivo’ – de coerência ideológica e política (...) em termos que ultrapassassem o do oportunismo e a demagogia da tradição burguesa mais lamentável, vazia e sinistra”.


3. Finalmente, dito isto e redito (conquanto não estando em causa a invocada e real necessidade de revisão de processos, ideários e práticas dos partidos, cá e lá obviamente, mas desde há muito e não de agora!), como não pasmar das neo-patéticas cenas de perfeito desvario – despeito fratricida, ambição pessoal ou mirífica atracção pelo abismo? – a que o País inteiro assiste face à fria e calculista consumação de jogadas de ponta e mola nas duras hostes de Costa contra as maviosidades tácticas de Seguro (às quais sucederão almejadas minagens aos trilhos para Belém...), e aonde nem faltaram, em indigente coro ilhéu (41 em 20% de eleitores!), tremendas vociferações e demolhadas prosas de casticismo inócuo carpindo sobre tão (mal)dita e pirrónica “vitória bisonha”... – “uma alcatra sem Jamaica, um verdelho a 10 graus” (sic) –, ali à porta desta expiatória ultra-perifericidade, já hoje pseudo-democrática (e mais pseudo-autonómica ainda, cívica e culturalmente ébria de ficções e mitos enganadores!), como se tudo se resumisse (na Europa, no País, nos Açores e em todos os quadrantes político-partidários) a uma pugna de garotos armados com fisgas, ou a chusma de velhacos metralhando a frio, e desleais, aos tombos e empurrões extemporâneos, qual bando de salteadores, cada um a correr para sua banda nas escadas, salas e varandas do Paço, e todos à procura de um (talvez agora mais remoto!) buraco na despensa ou na sala do trono, cujos actuais e coligados reis e xerifes, em confrangedor protectorado euro-luso, podem assim gerir a recuperação da sua derrota como se esta fosse, ou tivesse sido, uma inesperada e dadivosa vitória à outrance...
_______________

Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 31.05.2014):




quarta-feira, maio 28, 2014



MEMÓRIA E REGISTOS 
DE DEVOÇÃO


1. De entre as várias formas expressivas da religiosidade e das manifestações da fé religiosa católica dos Açorianos onde quer que vivam – no Arquipélago ou nas derramadas partidas e diásporas desse vasto mundo de residentes fora das ilhas, no continente português e europeu ou nas áreas de fixação da nossa população imigrada nas distantes terras das Américas –, o Culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres ocupa um lugar único, ímpar e absolutamente distinto.


 De facto – entre as diferentes devoções (Festas do Divino Espírito Santo, Culto Mariano, Culto Eucarístico, Culto a Santos, Oragos e Padroeiros...) que aqui e ali foram ganhando e perpetuando implantação e vigências espirituais, históricas, socioculturais e festivas (mais ou menos populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à Igreja e ao Poder secular...) –, as venerações de cariz crístico ou de representação cristológica, isto é, imediata ou mediatamente direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo (Segunda Pessoa da Trindade), estão presentes e são praticadas um pouco por todas as ilhas e espaços de vida, imaginário e memória colectiva do Povo Açoriano.


Assim, dessa mesma recorrente presença devocional, são exemplos principais as festividades em honra ou preito piedoso ao Senhor da Pedra (em Vila Franca do Campo), ao Bom Jesus (em S. Mateus do Pico), ao Santo Cristo da Ribeirinha (no Faial), ao Santo Cristo da Fajã (em S. Jorge) e ao Santo Cristo da Misericórdia (na Praia da Vitória), este último que cedo se nos tornou familiar, tal qual Vitorino Nemésio o evocou analogamente num notável registo confessional e epistolográfico (que aliás retém núcleos simbólicos, mítico-narrativos e telúricos comuns a outros relatos, topografias sagradas e lugares iniciáticos da Tradição açoriana e das reminiscências cristãs da própria condição existencial específica do homo viator insular), deste paradigmático modo:


– “Uma das cenas da minha infância que me ficou gravada a fogo é a da procissão em memória da caída da Praia (...). Dobravam os sinos. (...) Atrás, fechando o préstito, ia o Crucificado que se diz arribado à ilha. Outras vezes, acordando cedo e estremunhado, ouvia defronte o coro que diz Senhor Deus, Misericórdia! E não se sabe se é humano ou se vem do mar às upas”.



Todavia, apesar desta proliferação cultual e votiva do Cristianismo ao seu Senhor Jesus Milagroso (Santo por excelência, o Cristo da Divindade Trina), enquanto e sob a forma revelacional reflectida no Ecce Homo, ou seja – em feição dolorosa, passionária e sofredora – como ícone universal do Homem das Dores), nenhuma outra devoção açoriana – com a excepção radical e essencial das Festas do Espírito Santo! – reúne tão grandes, profundas, complexas e significativas dimensões (religiosas, teológicas, existenciais, psicológicas, filosóficas, etnográficas, éticas e estéticas) quanto aquela que, em conjugação de sortilégios, se foi polarizando e acumulando no Senhor Santo Cristo dos Milagres que permanece hoje, talvez como nunca dantes, perfeitamente identificável e individualizadamente ritualizado de modo muito próprio, apelativo e espectacular no Convento-Santuário da Esperança em Ponta Delgada, de cuja clausura monacal sai anualmente para um concorrido percurso atapetado, qual réplica de desfile real que a todos apela e comove sob o Seu olhar simultaneamente sereno, melancólico e pacificador, pelas ruas labirínticas da cidade, em andor esplendoroso e florido...


  
2. Por outro lado e apesar do referencial tratado biográfico-apologético do Padre José Clemente (com primeira edição em 1763 e sucessivas reproduções contemporâneas); dos meritórios e conhecidos estudos sectoriais de Urbano de Mendonça Dias (1947), Hugo Moreira (com diligente e vastíssima produção especializada entre 1960 e 2000: 2000), J. Fernandes Mascarenhas (1971), Maria da Ascenção Carvalho Rogers (1978), Jacinto de Almeida (19922), Margarida Lalanda (2005), Maria Fernanda Enes (2010) e Daniel de Sá (2012), e dos Documentos Autobiográficos, Processos oficiais, Memoriais ou Recolhas testemunhais sobre Madre Teresa da Anunciada (1658-1738), – para além das prospectivas abordagens já produzidas sobre complementares facetas da matéria temática e da sincrética fenomenologia teológico-religiosa, historiográfica, sociocultural, iconográfica, narratológica e hagiográfica que são intrínsecas ao mesmo domínio, conforme também pude investigar sucintamente com o saudoso Padre Jacinto Monteiro num estudo conjunto sobre a Imagem do Senhor Santo Cristo Cristo”, trabalho depois publicado na Revista da Academia de S. Tomás de Aquino (Angra do Heroísmo, 1999), repertório que detectamos consultado e compulsado em minúcia, mas raramente citado (prática assaz feia mas rotineira em determinados sectores, e na qual muitos colegas académicos ou universitários amiúde caem quando, por preguiça ou comodidade, lhes dá sorrateiro jeito...).



Porém – vinha a dizer –, para além desses trabalhos e de todas as pesquisas, edições e reedições críticas, conquanto algumas infelizmente pouco acessíveis e outras talvez dependentes do andamento duvidoso do conexo e problemático “processo de beatificação” (em suspenso?) da nossa Venerável freira clarissa –, a verdade é que muitas dessas e outras subsidiárias investigações poderiam e mereceriam ser ainda desejavelmente retomadas e mais multidisciplinar e sistematicamente desenvolvidas por relação à possibilidade de cotejo com novas e alternativas intertextualidades ascético-místicas e outras universais categorias, quadros histórico-críticos, fontes e particularidades hermenêuticas (v.g. a partir de inerentes e confluentes raízes devocionais canónicas e de piedade ortodoxa e heterodoxa; de conflitos entre tipologias e carismas das congregações; de espirituais discursividades análogas; de medievais heranças franciscanas, contra-reformistas, tridentinas, jesuíticas e barrocas, para já nem apontar modelos pastorais, sociologias críticas da religião, da sociedade e da política, a interferência das elites, das ordens e das corporações, etc.)...


– E tudo isto seria tanto mais motivador quanto este Culto vivido teve no passado, e continua igualmente a ter no presente, uma particular modelação regional católica, penitencial e doutrinal, a par de específicos e múltiplos percursos e configurações de apropriação societária (nos Açores em geral, em S. Miguel em particular e nas comunidades da Diáspora,), que assim e por isso – quer como experiência prática, identitária e colectivamente mobilizadora, quer como repositório pessoal, subjectivo e íntimo de vivências subjectivamente transformadoras ou metamórficas valeria sempre a pena continuar a acompanhar, (re)pensando-o, estudando-o mais e melhor no concreto contexto da sua génese e da sua imaginável evolução, segundo os seus múltiplos legados pretéritos e segundo os actuais sinais dos tempos do Mundo, da Igreja e do Espírito...



3. Para além da primordial e preponderante dimensão religiosa que o Culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres comporta em S. Miguel (e é precisamente aqui, com prudência e percepção de legitimidades, diga-se entre parênteses, que também devia ser socio-religiosa, pastoral e teologicamente situada a exemplar polémica a decorrer por causa da subtracção provisória, para fins artístico-museológicos, do Resplendor à integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem!), conforme está visivelmente dada em todo o aparato do cumprimento cíclico das suas ritualidades orantes e celebrações, teatros litúrgicos, parada de promessas e ostentação de votos que sistemicamente integram essa devoção –, estas festividades envolvem um sem número de outras paralelas actividades profanas (que reclamam redes logísticas, funcionais, organizacionais, técnicas, comerciais e financeiras, todas directa ou indirectamente envolvidas num enorme e indispensável circuito institucional e individual de trabalho ordenado, planeado, produtivo e criativo em manutenção e apoio ajustados, para além de promoções, marketing turístico-religioso, potenciação mediática, etc., etc.) –, factores importantes e suscitadores de apurada concertação administrativa e gestão de meios, boas vontades e empenhos públicos e privados, não só pelas naturais exigências qualitativas que todo o respectivo cenário festivo urbano exige e compromete, quanto ainda pelos especiais cuidados que uma concentração humana tão massiva e compacta sempre impõe a todos os níveis e ponderáveis estratégicos...


Finalmente e ainda a propósito evocativo desses dias de comemoração, não posso deixar de referir o modo muito belo como a dimensão memorial, visual e humana das Festas do Senhor Santo Cristo evidenciam um tempo e um espaço de Açorianidade (sempre profundamente envolvente, mesmo quando breve ou efemeramente marcado, porém ganhando sempre esplendores luminosos por sobre o peso das vidas, saudades de redenção, pedidos de cura ou perdão, dádivas do sacrifício ou medo das dores, rostos do mistério, espera da alegria ou altar das esperanças das Ilhas...), tal como tão sugestivamente os vejo espelhados no magnífico e prestigiante livro-álbum que as Edições Letras Lavadas (Publiçor, Ponta Delgada, 2013) em boa hora deram à estampa, com Textos de José Andrade e Fotos de José António Rodrigues, mostrando, “De Ponta Delgada para o Mundo”, essa realidade tão nossa e singular, em autênticos registos de devoção:


– “Dezenas de milhares de almas corporizam uma das maiores procissões do mundo católico, em cinco horas de circulação massiva pelas paróquias de S. José, S. Sebastião e S. Pedro – primeiro, o guião, as opas, as filarmónicas, os anjos, os seminaristas, o clero; depois, as religiosas, as promessas, as autoridades, as representações, os escuteiros, os bombeiros; e, entretanto, uma única Imagem. Uma Imagem única. Poderosa e cativante. Sem igual. À sua passagem ficamos sozinhos na multidão, de coração entregue ao hino (...). São festas que as palavras não conseguem descrever e que as imagens ajudam a conhecer, mas que só a fé permite compreender e viver”!
_________

Em "Diário dos Açores" 
(Ponta Dejgada, 29.05.2014):

















e "Diário Insular" 
(Angra do Heroísmo, 01 de Junho de 2014):



sexta-feira, maio 23, 2014


As Inversões de Schengen

ou As Equidades Desencantadas





Nem que por planeada coincidência, nestas últimas horas – já à beira da suspensão da enfastiante e fenecida campanha para as Eleições Europeias – que alegadamente são para “reflexão” política nossa – isto é, dos cidadãos que aos hábitos e actos democráticos do Voto nunca se devem esquivar, nem por absentistas artes de furtar deixar de em consciência escorreita e livre fazê-lo cair na ranhura da respectiva “urna” (palavra esta que agora me soou sobremaneira fatídica e a retinir sentido de funérea caixa de outra mítica Pandora...) –, relia eu os textos de Eduardo Lourenço (hoje, dia 23 de Maio, comemorando o 91.º aniversário do seu nascimento) que integram o seu livro A Europa Desencantada, porém tendo ao lado um “Diário Insular” da semana que hoje termina (edição de quarta-feira passada, dia 21), uma revista de Imprensa estrangeira e uma primeira página (25.05.1983) da Colecção (esquecida?) de um famoso quinzenário crítico que se publicava na Praia da Vitória, lá pelos idos anos 80 do século passado e sem perneiras arregaçadas nas fracas pernas a meia água salobra...



 – Ora tudo aquilo, que à primeira vista não suscitava nenhuma ligação temática, de repente teve o condão de completar uma espécie de arco reflexivo (expressão que também mais me fez empeçar nas voltas e simétricas reviravoltas do contemporaneamente chamado “arco da governação”...), mas que todavia me aproximaram simultânea e similarmente os textos que ali me davam conta das declarações de um politicão da direita gaulesa (de nome Sarkozy), das bem terra-a-terra-minha-gente serventias de argumentação para montagem de pretensos auto-motores autonómicos (de um ex-secretário regional do PS), por um lado, e – por outro – dos dois bravos e embravecidos editoriais terceirenses que, separados por sintomáticos 31 anos (“JP”: 25.03.1983 – “DI”: 21.05.2014), forte e feio batiam ambos na mesma tecla-vocábulo de um “cerco” à ilha Terceira!



E foi assim que entre as filosóficas e heterodoxas reflexões do autor de O Fascismo Nunca Existiu, as propostas de suspensão do Acordo de Schegen e as tentações hegemónicas intestinasde uma falsa e falseada equidade (sic) político-económica na “repartição dos recursos postos à disposição pelos financiamentos comunitários”, nenhuma diferença (a não ser de escala e despudor!) se detecta, porquanto construir o que quer que seja “por irresistível pressão das forças económicas e uma lógica que é hoje planetária, como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme ninguém”... 

– Até porque, nos pequeninos redutos de algumas mentes insulares socialistas, atendendo às bairristas afinidades que todos temos vistos irem-se desencabrestando aos poucos, ao longo destas já longas e historiáveis décadas de Autonomia açoriana, e sem que ninguém lhes segure a rédea, continua a valer aqui a aplicação daqueles juízos que, noutro contexto e com outros alvos, o nosso inspirador aniversariante de hoje escreveu em 1976:

”Reunir-se para verificar que se não está de acordo, é reflexo salutar e democrático. Mas fazê-lo para mostrar que o projecto socialista pouco ou nada tem de comum na boca dos seus apoderados, mais ou menos gloriosos, é um exercício de masoquismo político-ideológico que frisa o suicídio. (...) Podia, contudo, esperar-se um mínimo – entenda-se, um mínimo positivo – de coerência ideológica e política (...) em termos que ultrapassassem o do oportunismo e a demagogia da tradição burguesa mais lamentável, vazia e sinistra”.
_____________

Em Azores Digital:

















Primeira versão em RTP-Açores:

 

 

 














e "Diário Insular"
(Angra do Heroísmo, 24.05.2014):





sexta-feira, maio 16, 2014



A Trincheira das Razões



1. Coordenado por Fátima Campos Ferreira, o último Programa “Prós e Contras” sobre Tauromaquia, suscitou justificado interesse e provocou díspares comentários antológicos, de entre os quais – para além da retoma do assunto em Blogues de incidência permanente, como o “Arco de Almedina” – chamou-me mais natural e especialmente a atenção aquele que o sacerdote jesuíta João Vila-Chã publicou no Facebook e que adiante, para devida consulta, reproduzirei na íntegra.


2. Ora apesar de algumas perspectivas e “axiomas” ali defendidos (ou omissos...), que antes deviam ter sido dados como “questões disputáveis” (v.g. os exigentes problemas filosóficos e jurídicos do “estatuto ontológico”, do “princípio da igualdade”, “do limite da senciência”, dos “direitos dos animais” e dos “deveres humanos” para com eles; os processos rituais e os envolvimentos institucionais e religiosos no fenómeno taurino; a não-referência à variedade de modelos “socioculturais” e à discrepância de manifestações que a “festa brava” assume (caso das “touradas à corda” nos Açores); o impacto do espectáculo e seu inerente carácter violento na psicologia colectiva e individual, na memória e nos imaginários etnográficos e histórico-políticos civilizacionalmente sempre situados em sociedades dissemelhantes; a dimensão antropológica, estética e ética dos valores também ali em confronto e conflito; a disparidade contextual de atitudes, acções e discursos dos distintos intervenientes no habitus e no campo tauromáquico; o papel dos técnicos, veterinários e cientistas sociais na avaliação global e integrada dos capitais simbólicos e das práticas constituintes da “taurinidade”; a dimensão ecológica, comercial, profissional e empresarial da tauro-indústria; a vasta e conhecida representação literário-ficcional e a criticamente já bem qualificada produção ensaística sobre a corrida e a decorrente e indeclinável abordagem filosófica e pluridisciplinar do psiquismo, do binómio dor/sofrimento, da consciência e da bio-sensitividade animal, inseparáveis da compreensão profunda da estrutura metafísica e ético-espiritual de todos os actos existenciais humanos, etc., etc.)...


– Pese embora tudo isso (que a filósofos não pode escapar nunca!), ao que vimos e infelizmente ali faltou – dizia –, é de registar todavia a pertinência e seriedade desta reflexão de Vila-Chã, na medida em logrou sugerir (com a pertinente introdução da figura do “bouc-emissaire”, como sabemos, aplicável tanto a partir da hermenêutica bíblica quanto em articulação, neste âmbito temático, com as teses de Frazer e de Girard, por exemplo...) um óptimo contributo para a continuação sistemática de um debate ainda em aberto, sobre um “tema muito polémico” e mais complexo do que aparenta, tal como aliás ficou demonstrado nas contendas entre a plateia e os escolhidos membros dos painéis – presumidos representantes oficiosos de lides e sortes pró e anti-tourada... –, porém também nos limitadores (e intencionais?) balanceamentos revelados pela moderadora, que aparentou, neste caso, não ter compulsado devidamente a difícil matéria crítica ensarilhada nos escorregadios terrenos, faenas e trincheiras de tão passionais arenas! 


3. O texto do Prof. Vila-Chã – antigo director da nossa saudosa e estimável Revista Portuguesa de Filosofia –, cuja integral e criteriosa leitura recomendo, acentuando porém que foi (indicativamente até...) escrito antes da transmissão do “Prós e Contras”, é do seguinte teor:

– A tourada é, desde há anos a esta parte, um tema muito polémico. Em Portugal e não só. Estou informado de que o «Prós & Contras» desta semana será dedicado a esta temática. Naturalmente, desejo à jornalista Fátima Campos Ferreira a melhor moderação possível. Imagino de antemão a emoção que vai acontecer nesse programa, e (talvez) ainda bem. Mas também espero que ali se façam ouvir as vozes da razão. E estas, claro, podem ser várias. Pessoalmente, nunca gostei de touradas e só pela televisão, quando era menino, vi um ou outro episódio de cariz tauromáquico. Ainda me lembro de algumas impressionantes acrobacias por parte dos cavaleiros, da escalofriante coragem dos forcados, e muito menos esqueci um ou outro acidente que se deu na arena e a que pela televisão, sem querer, assisti. Recordo touros ofegantes e alguns chapéus no ar. Tenho presente actos humanos de enorme risco e coragem, acrobacias (quase) impensáveis, o aplauso das (pequenas) multidões.

Hoje, porém, mesmo sem ver o «Prós & Contras» desta noite, tenho mais que tudo presente dois axiomas que julgo deverem estar no centro da nossa atenção quando reflectimos sobre a nossa relação com o mundo dos animais, e que formulo em termos como os seguintes: os animais não são pessoas, mas não devem ser maltratados; os animais não têm direitos, mas perante eles nós temos obrigações.

Em si mesmas, as touradas são fenómenos sociais, e rituais, muito antigos, com origens na nossa história comum mais remota. Uma vez em Creta, recordo ter visto uma impressionante representação, multimilenária, do confronto que na tourada se dá entre o homem e o animal. Do ponto de vista antropológico, estou convencido que a arte tauromáquica desempenhou ao longo da evolução humana um importante papel, sobretudo no que se refere à transferência para o animal da violência anti-social humana. Penso mesmo que nas touradas, o touro funciona como uma espécie de bode-expiatório; nesse sentido, o touro transforma-se em alvo de uma notável estilização da violência inter-humana. Obviamente, não é por acaso que a tourada sempre assumiu uma dimensão quase religiosa, certamente ritual.


Mas a pergunta nem precisa de ser essa, mas antes esta: hoje, ainda se justificam as touradas? Não; não há modo de as justificar. Mas talvez haja, e disso estou convicto, de convincentemente as tolerar e isso tanto mais assim quanto as «corridas» continuam a ter um não desprezível valor económico e a representar um aspecto fortemente marcante da nossa «cultura», especialmente em zonas como Ribatejo e Alentejo.

Tanto quanto sei, a Igreja sempre manteve (pelo menos na ordem dos princípios) uma forte distância em relação a estes eventos. E ainda bem! E se o digo, é por uma razão muito simples: a dimensão sacrificial da tourada, e a sua conotação (pseudo-)religiosa, com o advento do Cristianismo, ficou totalmente esvaziada. De facto, essa justificação tornou-se de todo impossível. Que resta, então?

Em meu entender, apenas isto: o atavismo das tradições, o profissionalismo dos «artistas», o «voyeurismo» de muitos. Do ponto de vista psicológico, não digo que a visualização numa arena da morte de um touro, quando ela acontece, não possa constituir factor de reforço da vontade de viver dos que ao espectáculo assistem; mas tampouco duvido de que, com isso, coisas essenciais se podem perder, como sejam o valor da ternura, o sentido do respeito, o reconhecimento da própria vulnerabilidade, bem como da nossa mais inevitável mortalidade.

Em suma, mesmo estando longe de demonizar as touradas, confesso que não gosto de as ver, mesmo quando posso admirar a performance dos artistas que fazem, ou sofrem, a lide. Mais importante do que tudo, penso que é mais do que tempo para que nas nossas sociedades, agora que temos muitos outros mecanismos para lidar com a violência ínsita no coração humano, se deixe para a história uma tradição, a das touradas, que para muitos dos nossos concidadãos constituem, ainda que não raro por falsas razões, um factor de escândalo que deve ser reconhecido e, como tal, devidamente evitado. Naturalmente, repudio o «animalismo» por ser esta uma perigosa forma de ideologia, coisa tanto mais séria quanto, não raro, são muitos graves as consequências que muitos, falsamente, deduzem na hora de pensar a moral e a ética, nomeadamente sempre e quando nos seus raciocínios a primeira coisa que tendem a fazer é equiparar o ser humano ao simples animal.


 Dito isto, não deixo de reconhecer que num ponto muito preciso os opositores das touradas têm razão, e é este: é injustificado, e como tal não-racional, infligir a um animal sofrimento desnecessário, coisa que se torna tanto mais grave quando um tal sofrimento possa apenas derivar da tentação voyeurista de ver no animal seviciado um modo (inautêntico) de fugir à responsabilidade que, independentemente de sermos defensores ou não da tourada, todos temos perante a vida e a morte que a mesma contém.
_____________

Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 17.05.2014):
















e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 25.05.2014):



Emendas e Sonetos da TV

Nos últimos dias voltaram a lume os impasses, desacordos e diversos (des)interesses que continuam a digladiar-se na e entre a Região e o Governo de Lisboa – digamo-lo assim e preposicionando-o no terreiro da capital continental, e mais aí talvez do que apenas das e nas supostamente maturadas linhas mestras para a CS do executivo de Passos e Portas.


Porém este assunto, não sendo inédito, vem ganhando agora novos contornos, inserindo-se tanto no quadro global da necessária tentativa de regulação (moralização e controle) das despesas gerais do Estado e dos organismos dele funcionalmente dependentes, quanto entroncando numa questão que não é só financeira, orçamental e empresarial, nem sequer laboral e técnica, antes estando no cerne da política governamental nacional (e regional!) para o Audiovisual...

– Ora como já foi explanado num famoso estudo sociológico de referência, a Televisão sempre “faz correr um perigo muito grande” – ou melhor e mais rigorosamente, vários e associados perigos... – “às diferentes esferas da produção cultural”, crendo-se mesmo, “contrariamente ao que pensam e ao que dizem, sem dúvida com toda a boa-fé, os jornalistas mais conscientes das suas responsabilidades”, que a TV “faz correr um não menor risco à vida política e à democracia”, do mesmo ou correlativo modo – entenda-se – que à própria Autonomia!

Todavia, se ninguém ignora aquele juízo de facto (e paralelo lugar retórico...) que atesta ter a RTP-A constituído (mas não por si mesma...) um dos factores (pilastra?) da construção da unidade açoriana – quando não até da (ou de alguma) identidade regional (matéria aliás discutível no que historicamente traduz em simultâneo de veracidade e de ficção para a verdade precisiva dos conteúdos e dinâmicas dos Açores tanto como comunidade real de vida e destino como enquanto conjuntural comunidade imaginada) –, a verdade é que nem sempre assim foi no passado, tal como nada nem ninguém, com bondade e inocência (?), revendo-se recentes discursos e figurinos de certas fortunas projectivas que por aí se agitam, nos garante que assim não venha a ser no futuro...

– Antes pelo contrário!
_________________

Em RTP-Açores:
http://tv2.rtp.pt/acores/index.php?article=36337&visual=9&layout=17&tm=41:





















"Diário Insular" (Angra do Heroísmo,17.05.2014):























Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2628:
















e "Diário dos Açores" (no prelo).

sábado, maio 10, 2014


Uma Epopeia Governamental


Causou furor e muito comentarismo nos OCS e nas Redes Sociais uma série absolutamente fabulosa de Fotos da Agência LUSA, na qual o Primeiro-ministro (PM) e sua Comitiva aparecem numa visita guiada e interactiva a um recém inaugurado “Museu dos Descobrimentos”.


– E dessas sugestivas e inspiradoras imagens especialmente apreciadas tem sido aquelas que mostram a selecta e dita tripulação museologicamente sentada num lindo bote-barca (ver reportagem aqui: http://www.tvi24.iol.pt/fotos/1/351263), embasbacada toda com tanto exotismo plástico numa tropical cenografia, que só visto...


Deixando porém nos devidos lugares tanto a iniciativa privada que investiu no dito “Museu”, quanto, no seu anedótico barco, quem por ali navegou deslumbrado em aventureira fita..., – o que se espera em sequência é que idêntica atenção e fascínio pela promoção da Cultura, da Arte, do Pensamento e da Ciência, tamanho incentivo ao Progresso, ao tão falado “Empreendorismo” e à Criatividade nacionais venham a ser sempre concedidos pelo Governo (por este ou por outro qualquer de igual jaez!) – sequer ao menos em parecida medida e divulgação – aos autênticos Museus de Portugal e seus preciosos acervos histórico-civilizacionais (ao abandono), aos Institutos de Investigação Científica (sem verbas suficientes), aos Laboratórios (estagnados ou em retorta fria), às Universidades (desorçamentadas), às Escolas (degradadas), às Bibliotecas e Arquivos (com documentação a apodrecer), à preservação urgente dos nossos verdadeiros Patrimónios monumentais (a perderem-se por esse País fora), às Galerias de Arte (desamparadas e esquecidas), e – enfim – ao trabalho credenciado dos nossos Historiadores, Cientistas, Estudiosos, Alunos, Professores, Escritores, Intelectuais, Trabalhadores a Animadores Culturais, Artistas e Investigadores portugueses, – tantos deles, amiúde os melhores, condenados ao ostracismo, ao desalento, à subalternização académica, à estagnação institucional sistemática e à emigração, ou crescentemente penalizados e destruídos no seu trabalho e talento por cegueiras, mediocridades instaladas, imprevidências e ignorâncias políticas projectadas em investimentos de miséria e irresponsáveis lógicas de planeamento sem prioridades estrategicamente acauteladas, sem realismo nem imaginário que lhes valha uma artificial espuma de lucidez governativa e patriótica!


– O resto, como seria de contra-argumentar, por muito meritório que fosse, pode não ir muito além da criação de novos modelos privados ou públicos (no caso tanto faz!) para a proliferação menor de uma espécie supostamente moderna e tecnologicamente sofisticada de outros, novos ou velhos “Portugal dos pequeninos”, talvez apenas para turista ou criança lusa ver como quem vai a um Parque de Diversões ou a uma qualquer Lusolândia mais ou menos fantasista, virtual ou teatral nos seus discutíveis materiais, símbolos, pastiches e avalizados conteúdos...



Mas seja como for, nada disso invalida nem anulará o que, na antecâmara de um surrealismo pueril, está ali em diversa e hilariante possibilidade de observação:


– Essa mesma, a das ridículas figuras grupais que deslizam abancadas naquela lancha-batel de plástico museológico, dentro da qual o PM e a sua selecta Comitiva de improvisados navegantes governamentais (mais ou menos ciceroniados a preceito e embevecidamente embasbacados todos...), à medida que vão passando por bichos medonhos, selvas de arrepiar cabelo, peças armadas e quadros alegóricos das nossas excêntricas e heróicas viagens de descoberta, conquista e epopeia de antanho, perante o quase incrédulo, divertidamente contraposto, irreprimível e espontâneo desejo de tantos Portugueses os verem antes... afundando-se, molhados até à cintura e esbracejando nas próprias e falsas marés das suas duplas simulações merecidamente sonorizadas por uma desopilante gargalhada geral, dobrada agora e ainda mais deliciosa pelo País inteiro, como no lembrado tempo de mestre Gil, quando eles (os mesmos... ou os seus antepassados ainda próximos?) já então iam dando pé à prancha do Inferno, “com fumosa senhoria,/ cuidando na tirania/ do pobre povo queixoso”,  assim chamando-os o próprio Diabo “Á barca, à barca, senhores!/ Oh que maré tão de prata! Um ventezinho que mata/ e valentes remadores”...
____________

Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 10.05.2014):






















Em Azores Digital: