sábado, outubro 11, 2014



A Ternura e o Vigor de Assis
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Atendendo ao actual contexto (e com uma compreensível dose de bom humor...), pede-me um “irmão franciscano” – apesar, diz ele, com alguma razão, da minha “formação ser mais acentuadamente próxima e de predilecção pelos autores tomistas da Escola filosófica e teológica dos Jesuítas” (sic) –, que recupere hoje o tema de fundo da minha Crónica sobre S. Francisco que o DI publicou há uma semana, e que pelo seu carácter relativamente sucinto e sumariado “talvez valesse a pena retomar”!

É o que farei com gosto, desenvolvendo hoje um pouco mais o mesmo assunto .[Nota prévia inserta na publicação deste mesmo texto na edição do jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12 de outubro de 2014)].


1. Numa feliz coincidência de calendários litúrgicos, técnico-profissionais e societários, comemorámos no passado dia 4 de Outubro a Memória de S. Francisco, o Dia Mundial do Médico Veterinário e o Dia Mundial dos Animais – data (neste último caso) escolhida em Florença, em 1931, durante uma Convenção de Ecologistas, atendendo ao característico e universalmente consagrado “padroado” do poverello de Assis.

– E é assim que para além do profundo significado e alcance ético e deontológico (que naquele dia se relembra e devia traduzir-se nas práticas do quotidiano, no respeito ontologicamente proporcionado por todas as criaturas e eco-bio-sistemas, e identicamente no desempenho daquela especialidade biomédica), a todos se exortou e convidou à renovação (dir-se-ia propriamente trans-física e trans-especista, quando não mesmo metafísica) da sensibilidade racional e antropológica, da atenção afectuosa, da inteligência compassiva e do cuidado vital que à espécie humana cabe, de e para com todos os outros seres e forças da Vida e da Consciência que povoam e co-habitam o planeta Terra...


2. Todavia, no que a S. Francisco particular e referencialmente respeita – como se dizia no pórtico de uma bela Antologia organizada por Frei Adelino Pereira) com Testemunhos Contemporâneos das Letras Portuguesas (Lisboa, INCM, 1982)   sobre o autor dos Fioretti –, caberia logo recordar que “o Pobrezinho que deixou marcas indeléveis na história religiosa e cultural do mundo pós-medieval e especialmente na portuguesa [e também, acrescentemos aqui, de modo muito relevante, no Povoamento, na Evangelização e no Imaginário das Ilhas dos Açores]”, propôs-nos fundamentalmente uma “maneira singularíssima de ser homem e de viver a vida”, uma “forma original de estar no mundo, de pensar a existência e de valorar as coisas”, naquilo que constitui a exemplar visão franciscana da vida!


Ora verdadeiramente naquela obra – que reúne personalidades tão diferentes como Sophia e Urbano Tavares Rodrigues, Raul Rego e Amândio César, Jacinto do Prado Coelho e João Maia, Agostinho da Silva e Manuel Alegre, Agustina e Fernando Namora, Borges de Macedo e António Borges Coelho, Gama Caeiro e Vergílio Ferreira, Moreira das Neves e Miguel Torga, etc. –, não faltam eloquentes textos (e insuspeitas confissões em prosa e verso...) da presença interior, histórico-cultural, religiosa, humanística, simbólica e espiritual daquele filho do rico comerciante Bernardone, primeiro chamado João, lá desde os fins do século XII e daquela cidade de Assis, na antiga Úmbria, com “um pouco de sol da Provença, de terra lavrada pelo encanto trovadoresco, pela ternura delicada e fidalga, pela saudável e casta alegria das Cortes de Amor”.


– E foi mesmo desse modo que entre nós escreveu o filósofo Leonardo Coimbra, a par de tantos outros em múltiplos tempos e lugares, estilos e modos, na reminiscência colectiva popular e erudita, e nas narrativas e múltiplas representações de tudo quanto em Francisco, conforme dizia outro Leonardo [o teólogo Boff], confluiu e permanece de ternura e vigor e de um novo enraizamento afectivo, compassivo e cósmico: humilde e paciente (mas sem resignação perante o Mal e os males do mundo); pobre (mas não submisso face à exploração dos Pobres); resistente ao Sofrimento (mas sem dolorismos masoquistas nem cumplicidade com sadismos opressivos), e – enfim – simultaneamente amante (integrativo mas diferenciador) do varonil e do feminino (sem misoginia nem feminismos estéreis), tal como fascinantemente afinal podemos ver espelhado na pura e transfigurante relação enamorada de Francisco (1182-1226) e da sua tão dilecta Clara (1193-1253), ela própria que, quando jovem donzela, “desejava com frequência senti-lo e vê-lo”, tanto as palavras do seu amado lhe pareciam “chamas”, quanto as obras dele se lhe revelavam quase “sobre-humanas”...


De resto, como muito bem sinalizaram António Quadros e Jaime Cortesão, o Franciscanismo é efectivamente “uma das componentes da alma portuguesa”, sendo que – com Santo António de Lisboa – até houve uma original e primaveril contribuição portuguesa, “quase desde a origem, para a formação do ideal franciscano”, para além de ser a Língua Portuguesa natural e expressivamente “lírica, franciscana, repassada de ternura e piedade”.


– Infelizmente, com certeza por involuntário desconhecimento ou lamentável esquecimento, na excepcional galeria de nomes constantes da bela Antologia que atrás referi, dos Açores, dos nossos autores e das nossas paradigmáticas heranças franciscanas apenas consta um poema joaquimita de Natália Correia (“Tu que do Espírito em clara humanidade/ o núncio foste de melhor idade, / vem com teu óleo sarar as nossas feridas”...), porém (sem ir sequer aos mais antigos Cronistas, Diogo das Chagas, Monte Alverne...) ou, mais próximo, a Côrtes-Rodrigues, ainda restavam, para a contemporaneidade seleccionada, as evocações memoriais e os cânticos de Vitorino Nemésio, como este que sempre trago bem vivo, com a sua profundamente sentida poética confessional:

“Do Cristo ao Servo, irmão do lobo e da água, /Cinco fios de sangue tensos vão, / Alto Morse da mágoa, / [...] Teia de amor, será gemido ou uivo o ouvido/ Clamor da doce aceitação?”)...



3. Em todo o caso, e para o que aqui sobremaneira importa relevar – na visão radicalmente assumida da existência humana e da respectiva posteridade universal –, de Francisco de Assis ficou-nos até hoje uma impoluta e timbrada aura (ímpar, luminosa e transcendental...) projectada nos séculos, e para além deles, nas gestas e carismas do Alter Christus (e dos seus dolorosos estigmas...), tal como, embora a outro nível mas em confluente horizonte, a mesma germinou naquela alta expressão de Humanismo que a Civilização do Ocidente, através dos seus melhores espíritos, procurou apontar, assumir e amiúde incarnar como possíveis caminhos e valores alternativos para toda uma Humanidade decaída e dramaticamente perpetradora daqueles grandes crimes e pecados que desvirtuaram tantas vezes, por acção ou omissão, a Mensagem de Jesus, através de uma culpada e demencial violência religiosa, filosófico-teológica, sociopolítica, económica e psico-simbólica que explorou, sacrificou ou destruiu – mas também libertou! – vidas, consciências, classes, raças, espécies, culturas e povos inteiros em todos os continentes da Terra...).


– Talvez por isso, esperançosamente num Dia Novo, só a Graça, o Perdão e a Misericórdia do seu Senhor conseguirão – com as obras e a fé dos Homens... –, redimi-la e justamente salvar!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 11.10.2014):



























e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12.10.2014):