quinta-feira, outubro 23, 2014


O Ébola em Casulos Levianos
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Conforme sucintamente referimos do DI de há uma semana, acentua-se diariamente a apreensão mundial pela propagação exponencial do Ébola (num incremento dos medos descritos por Richard Preston em The Hot Zone), a par dos novos avisos das organizações nacionais e internacionais e dos maiores especialistas em Saúde Pública e Epidemiologia, na mesma altura em que a propagação viral (já epidémica em certos locais de África!) – espera-se que sem a possível mutação começa a ameaçar outros continentes e países (até mais desenvolvidos)...


– E isto verifica-se em simultâneo com a divulgação de (im)previsões globais (também envolvendo Portugal...), que não podem deixar-nos, especialmente no caso açoriano, sem continua e devida atenção prática e decorrente avaliação crítica de todas as componentes deste importante fenómeno, e tão mais urgentemente quanto, a nível nacional, continuam a grassar divergências quer sobre a nossa preparação para lidar com o Ébola quer sobre a possibilidade de Portugal poder vir a ter contaminações desse vírus, risco aliás já admitido pelo director-geral da Saúde perante a respectiva Comissão da Assembleia da República, reconhecendo-se ali que podem verificar-se – “até ao fim do mês” –, “2, 3, 4 casos (...) importados”, muito embora Francisco George insista simultaneamente na afirmação de que o país está “preparado” para lutar com esse desafio, precisamente porém ao contrário do Colégio da Especialidade de Saúde Pública que sobre o mesmo tema se pronunciou já:


Na verdade, segundo um (entretanto já controvertido) Parecer (disponível na íntegra no respectivo Portal Oficial) desse organismo da Ordem dos Médicos, “o risco teórico de virmos a ter casos de Ébola em Portugal é alto. Se isso acontecer, a dimensão (...) que o problema poderá atingir em termos numéricos (casos e mortes) e de impacto social, depende inteiramente da capacidade dos serviços de Saúde e da sociedade em geral lidarem com o problema”, sendo que esse mesmo risco é especialmente potenciado devido “posicionamento de Portugal como país integrante” dos PALOP, ao qual, do ponto de vista geográfico, humano, estratégico, “pode ainda adicionar-se, como elemento satélite a pesar no fardo do problema, o facto de termos ébola em Espanha, país vizinho e com o qual não existem fronteiras facilmente controláveis, pelo que em termos de circulação de pessoas (do vírus) se pode considerar a península como um só país”.


– E depois de analisar, país a país, situação a situação, os contextos da Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Moçambique, o documento daquele Colégio da Ordem dos Médicos analisa bastante criticamente a (im)preparação de Portugal para lidar com o Ébola, tanto numa perspectiva teórica quanto numa perspectiva real, articuladas ambas com um suposto “Plano de contingência nacional”, no qual “o modo, confuso e cheio de pontas soltas, como a realidade geralmente se apresenta” e onde o “enfatizar que a tónica na intervenção centrada apenas em serviços hospitalares é errada e que a sua comunicação nos media, centrada em técnicas médicas de ponta e cuidados milagrosos de assistência, produz na população a tal falsa sensação de segurança já invocada”.

E por fim, o citado Parecer chega ao ponto de descrever um imaginário (hipotético, mas verosímil e realista!) panorama, cuja analogia (sem entrar em linha de conta com barcos, portos e marinas) com um similar cenário insular açoriano não é difícil de estabelecer:

– “O que será lógico esperar – como qualquer epidemiologista experimentado ou qualquer médico de saúde pública sensato sabe desde os tempos do Professor Ricardo Jorge – é que o tal caso de ébola não vai chegar com uma bandeirinha a assinalá-lo ao aeroporto da Portela [das Lajes, ou de outro qualquer aeroporto das ilhas], onde logo chegará uma ambulância [devidamente preparada?] do INEM [dos Bombeiros ou do SRPCBA], que o levará [a partir desse tal aeroporto] sem demora ao Curry Cabral [ou a outro Hospital de referência, sempre fora dos Açores], onde espera por ele um quarto [ou um casulo...] isolado e apetrechado [eventualmente (?), primeiro num helicóptero Merlin e depois num avião Falcon...].






Todavia, o que “a realidade nos tem demonstrado (designadamente nos casos ocidentais desta epidemia, mas antes disso na história de qualquer surto ou epidemia) é que um (ou mais) caso infectado chegará silenciosamente ao aeroporto num voo fora de horas, em perfeito estado aparente, onde (...) onde um carro cheio de familiares saudosos o esperará para o levar (...), onde há um almoço de celebração do regresso dele (...) marcado para o dia seguinte e onde estarão presentes cerca de cinquenta pessoas que ele, emocionado, abraçará fortemente. E no dia seguinte ao almoço sentir-se-á, pela primeira vez, febril e com dores articulares, cansado, mas irá pensar que tudo isso é fruto da viagem, das horas mal dormidas, da emoção... É isto que poderemos esperar na maioria das situações, não com uma realidade que se molda aos manuais ou aos monitores com algoritmos de uma sala de controlo de emergências”!

– Ora a auscultação de profissionais, decisores, estudiosos, especialistas e operacionais, directa ou indirectamente cientes desta exigente, complexa e pluridisciplinar situação, mais fundamenta e evidencia, também aqui nas ilhas, idêntica e proporcionada preocupação... Mas continuamos, perplexos, a assistir a orientações nacionais (e regionais!) pouco definidas, imprevidentes ou em sobreposição e atropelamento de práticas de duvidosa segurança e pouca viabilidade, como aquelas que prevêem a criação, nos Centros de Saúde, de “espaços para isolar temporariamente [“por horas” (sic)] doentes suspeitos” de Ébola, ou as outras, emanadas da Autoridade Nacional de Protecção Civil, avisando os Bombeiros – perante as questões e dúvidas da Liga sobre o papel destes profissionais no âmbito da prevenção do vírus do Ébola em Portugal – de que estes não devem transportar casos suspeitos, antes contactando o INEM ou a linha de Saúde...



Assim e para mais ainda, perante a leviandade nacional e regional, face às potenciais vulnerabilidades que a indigitação das Lajes contém como Aeroporto, e agora, como já salientámos – com a inadmissível menorização institucional açoriana atingindo o cúmulo da pura ficção (para não dizer temerária falsidade) de que se poderia “ter confiança no dispositivo montado [?] ao nível da Região”, e cujo planeamento estaria “a decorrer em estreita articulação” com a DGS e com o SRPCBA – alegando-se até que o Arquipélago possuiria um “plano de contingência regional para casos específicos, dado que a Região tem características distintas do continente, mas integra-se do plano nacional” –, comprova-se e confirma-se que “não houve [sequer!] formação” de quaisquer “equipas médicas” nos Açores, e que esta “É uma situação nova. Sabemos a teoria, mas não a prática” (sic)!



– Realmente, repita-se, tudo neste caso permanece um perigoso retrocesso se o comparamos, por exemplo, com as ameaças do H5N1, onde ao menos não esperávamos (em ambulância?!) que um Falcon de Lisboa, alertado pelo 112, viesse aterrar no nosso quintal..., até porque aqui, à semelhança do que foi feito lá no Continente para a gripe pandémica de 2006/07, “uma estrutura foi montada, circuitos foram criados de novo e a máquina de enfrentar uma epidemia (...) ficou oleada.

“ (...) Parece-nos [ao Colégio da Especialidade de Saúde Pública da Ordem dos Médicos, e também a nós, nos Açores] que essa experiência anterior pouparia – imediatamente e logo nas nossas ilhas e Região Autónoma – na ameaça de crise actual, tempo e dores de cabeça”, tanto mais quanto, “salvo melhor informação que, até agora, não chegou ao conhecimento do público ou da generalidade dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, profissionais de laboratório, pessoal administrativo, pessoal auxiliar de apoio a cuidados médicos) nenhuma orientação, integrada e global, que inclua desde uma estratégia nacional para lidar com o problema até à emissão de informação que responda às perguntas e ansiedades do público em geral e dos profissionais de saúde em particular”!


– E depois, com todas essas (ir)responsabilidades governamentais açorianas e lisboetas, bem à vista de todos, é um tremendo ónus que se está a fazer recair sobre toda a população regional e nacional, sem falarmos nos riscos e tremendos comprometimentos que assim sobremaneira pendem sobre a Força Aérea Portuguesa (e sobre a própria presença e logística norte-americanas...) nos Açores, quando se sabe dos paralelos empenhos em marcha, pelo mesmo Governo central português, em acudir (e bem!), no estrangeiro, ao circulatório terreno geográfico e humano africano, na Guiné e em Cabo Verde...
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 24.10.2014).