domingo, fevereiro 09, 2014



Dos Lugares Imaginários
aos Desafios Insulares




«É um velho costume marítimo que uma nova embarcação seja lançada ao mar com um pedido de bênção para si e para todos os seus tripulantes. Agora que o nosso Dicionário de Lugares Imaginários passará a navegar as desconhecidas águas de Portugal, também pedimos que o abençoem as almas generosas de intrépidos viajantes imaginários (...). Eles entenderão, melhor do que ninguém, a honra que representa para uma obra como a nossa, de viagens a lugares sonhados, partilhar a estante com as crónicas dessas outras viagens a lugares que chamamos, sabe-se lá porquê, verdadeiros.»
                                                                                        Alberto Manguel




1. Publicou recentemente a editora Tinta da China (Lisboa, 2013) com o título literal de Dicionário de Lugares Imaginários e em tradução conjunta de Carlos Vaz Marques e Ana Falcão Bastos a famosa obra de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi The Dictionary of Imaginary Places (original de 1980).

– Já disponível entre nós, que o vimos e consultámos em Angra do Heroísmo nos atentos escaparates da Livraria In Folio, o livro – com cerca de mil páginas em papel Bíblia, esmeradamente impresso na Gráfica de Coimbra – inclui sugestivos mapas de James Cook e outras ilustrações de Graham Greenfield e Eric Beddows, contendo, para além de um belo e valorizante Prefácio de Manguel para esta revista e aumentada edição portuguesa, ainda o elucidativo Prefácio original e uma esclarecedora Nota dos autores a outra anterior versão da mesma.


Os autores deste fabuloso Dicionário são relativamente conhecidos, com natural destaque para Alberto Manguel – este já com diversos livros traduzidos e editados em Portugal, v. g. na Presença (Uma História da Leitura), Dom Quixote (No Bosque do Espelho), Gradiva (A Cidade das Palavras), Asa (Um Diário de Leituras) e Teorema (O Regresso, O Amante Extremamente Minucioso e Todos os Homens São Mentirosos). Todavia, vale a pena reproduzir aqui também e em síntese as suas bio-bibliografias:


Alberto Manguel nasceu em 1948, em Buenos Aires, e cresceu em Telavive e na Argentina. Teve como línguas maternas o inglês, o espanhol e o alemão (que aprendeu com a ama). Aos 16 anos, trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges, cego, lhe pediu que lesse para ele em sua casa; e deste modo tornou-se leitor de Borges entre 1964 e 1968... Frequentou depois o Colégio Nacional de Buenos Aires e, em 1968, mudou-se para a Europa.



– Tendo vivido em Espanha, França, Itália e Inglaterra, Manguel foi ganhando a vida como leitor e tradutor para várias casas editoras, publicando depois uma dúzia de antologias de contos sobre temas tão díspares quanto o fantástico e a literatura erótica. É ensaísta, romancista premiado e autor de múltiplos «best-sellers» internacionais, nomeadamente da já referida Uma História da Leitura (notável e fascinante viagem pela evolução do leitor e da leitura). Actualmente, Manguel é cidadão canadiano e vive em França, num antigo priorado do interior do país transformado em residência onde instalou a sua biblioteca de trinta mil livros...

Quanto a Gianni Guadalupi, entretanto falecido (2007), nasceu em 1943, em Itália. Historiador e escritor, traduziu para italiano autores como Kipling, Borges, Jodorowsky, Molina, Allende e Benedetti. Escreveu e editou dezenas de livros e antologias dedicados ao tema das viagens, reais e imaginárias.


– Especializado em temas como os Jesuítas na China, os viajantes setecentistas na Pérsia e no Oriente, as viagens espaciais, a presença dos Portugueses na Índia, a descoberta da América e os pioneiros aeronáuticos italianos, Guadalupi definiu-se como um «viajante sedentário». Também grande bibliófilo, coleccionou mais de treze mil livros sobre viagens de todos os tipos...

2. No seu Prefácio a este Dicionário de Lugares Imaginários, Alberto Manguel retoma e explana toda uma teoria do imaginário, começando por realçar que a nossa imagem do mundo contemporâneo, com todos os seus possíveis e inéditos pormenores planetários, sofreu uma profunda alteração devido aos novos instrumentos e tecnologias de observação da Terra, sendo que, por via disto, tornou-se “impossível zarpar rumo ao desconhecido, a não ser sob vigilância”, tanto mais quanto, desde a mais ampla escala espacial ou geo-estacionária até à mais doméstica intimidade, toda a privacidade foi anulada, com ela simultaneamente desaparecendo assim a própria possibilidade de imaginarmos já, “em algumas regiões dispersas”, qualquer terra incognita com que sonhar ou a procurar alcançar na distância, no mistério ou na demanda de novos e afortunados Descobrimentos.


– Todavia, antes desses e de todo e qualquer desvendamento concreto, positivista e realmente empírico do mundo terrestre, sugere e salienta Manguel (embora por outras palavras), haver sempre um diferente mapa mundi, outra cartografia da imaginação feita de substâncias ou materialidades outras, apenas existentes na alma ou no espírito (na consciência, diz o autor) e numa esfera ou dimensão por assim dizer etérea, como aquela povoada por criaturas angélicas (“cujas hierarquias os nossos antepassados debatiam”) e por outras “como o unicórnio e a manticora”, ou por conceitos como os “de democracia perfeita e de boa vontade para com todos os homens”, lugares da mente, da Utopia, do Maravilhoso (e do Terrível ou Pavoroso...), enfim, do Lendário, do Fantástico, do Extraordinário ou do Sublime, – quase todos eles afinal anteriores ao próprio real e dele determinantes ou indutores, porquanto é “seguindo as geografias imaginárias que construímos o nosso mundo: o resto é apenas confirmação”…

E depois, na mesma linha de abordagem, escreve ainda o autor, conforme vamos sublinhar:

– “Como no caso de qualquer língua, uma construção imaginária como a Atlântida precede sempre, para o bem ou para o mal, os vocabulários geográficos e arquitectónicos. Talvez alberguemos no nosso íntimo um antigo desejo de migração e colonização, de grutas pintadas e copas de árvores protegidas, a partir do qual desenhamos as representações cartográficas. E, quer se tornem ou não edifícios sólidos, esses mapas exigem, antes que se dê o primeiro passo ou que se aviste o primeiro horizonte, uma ideia preconcebida do espaço, do tempo e da viagem. (…) A imaginação salva a realidade do reino inefável dos fantasmas”…

3. Ora é exactamente a partir destes núcleos interpretativos dos fenómenos míticos e do imaginário (às vezes do mitológico e do puramente ficcional, outras do poético-literário, do prospectivo positivo ou do projectivo negativo e do ucrónico...) que Manguel e Guadalupi procederam a esse notável e ímpar repositório de lugares e espaços imaginários e quimeras que integram e povoam consciências e inconscientes pessoais e colectivos (memórias históricas, mitológicas, textuais e iconográficas) tão vasta e sugestivamente guardados neste tão assim conatural léxico, dicionário e enciclopédia de imaginários que percorrem não só espaços quanto tempos espantosos, numa excepcional e rica viagem por símbolos, representações, ficções, ícones, linguagens e narrativas exemplares, perdas e ganhos do (des)conhecido, (re)invenções de mundos e universos quase (ir)reais, errâncias individuais, peregrinações, odisseias, reclusões, escatologias bíblicas e êxodos iniciáticos e topográficos (como em Calvino, Caim e Abel, Ulisses, Gulliver, Defoe, Kafka, De Maistre, Campanella, Huxley, Swift, Tolkien, Dante, C. S. Lewis, Verne, Melville, Xu Fu, Eco, S. Agostinho, etc., entre tantos e muitos dos nossos próprios intrépidos viajantes imaginários, como Manguel em outros depoimentos e entrevistas assinalará mais de passagem – Camões, Pessoa, Sophia, Lobo Antunes, Mendes Pinto, Saramago …), por mares, terras, palácios de Ventura e ilhas…


– Aqui, como seria de esperar, as Ilhas – e às nossas, omissas neste (con)texto, noutra ocasião me referirei... –, ocupam portanto um relevante posto e uma paradigmática cartografia, ou não fosse com a Utopia de Thomas More que se criou “o primeiro arquétipo insular: uma ilha cujo sistema sugere um modelo ideal, didáctico – simultaneamente positivo e negativo – a raiar a alegoria, que pode servir (ou não) para pôr em causa os nossos próprios sistemas de governo”, pelo que até não deveria surpreender-nos “que fossem, literalmente, os habitantes de uma ilha a povoar o mar com ilhas inexistentes, para as quais inventaram histórias e geografias específicas”!


Para nós, insulares açorianos – para além, como é evidente, do seu conteúdo enciclopédico e universalmente referencial para uma grande e apaixonante variedade de estudos e abordagens multidisciplinares –, esta obra vale sobremaneira pelas inúmeras pistas, sugestões, analogias e ilustrações pluri-civilizacionais que arquiva, a par, numa dimensão outrossim já mais profunda e filosófica, de tudo aquilo que subsidiariamente vem acrescentar à vasta e conhecida bibliografia temática sobre a dimensão ontológica e mesmo metafísica das ilhas e dos ilhéus onde quer que existam e vivam, porquanto uma ilha é como um corpo humano, e o corpo a própria “corporização do eu, a essência de um lugar singular” no meio do Mar e do Oceano do Ser:

– “É por esse motivo que os anglo-saxões, a fim de fazerem surgir outros modos de ser, inventaram ilhas invisíveis, sempre situadas para além do horizonte, que podem ou não ser descobertas, mas que não exigem presença física para existir. Essa cartografia imaginária tem uma pré-história na Grécia e no mundo árabe”, reconhece Alberto Manguel, mas pode ter também uma plena actualidade enquanto espaço político permitindo e deixando crescer ora a Esperança ora as suas contrárias e contraditórias alternativas, através da “criação de sociedades perfeitamente eficazes e perfeitamente atrozes, lugares onde tudo é possível (...) e onde nos podemos ver como outras pessoas, na nossa condição humana de eternos sobreviventes de um naufrágio ou como cidadãos de um estado feliz ou desditoso”...


4. De resto, também por tudo isto – e nem que a propósito derradeiro como comentário já politicamente à margem deste e de outros glossários insulares... –, é que não posso deixar de finalizar por hoje sem recordar aquilo que, a propósito de um outro bem exigente, nada então imaginário nem fantasista desafio insular tive oportunidade de reescrever no respectivo Prefácio à obra homónima (Ponta Delgada, 19902) de um convicto, estimado e respeitável homem das nossas ilhas, cujo ideário reflecte afinal tantos daqueles sinais do Tempo e suas potenciais riquezas espirituais para uma plena, progressiva e consequente humanização da Cidade dos homens, em cidadania personalista e eticamente alicerçada:

– As nossas ilhas prestam-se bem à indiciação mostrativa da condição humana, aí incluída a dimensão política... E assim, numa altura em que as problemáticas culturais, sociais, político-institucionais, económicas e técnicas da Regionalização e do Regionalismo ganham novas premências planetárias, perante os riscos e as promessas da unificação civilizacional e da interdependência crescente de Regiões e Estados, Povos e Nações, a especificidade da Autonomia do Arquipélago dos Açores reclama também e novamente novo alento precisivo das condicionantes, situações, custos e potencialidades presentes, e inovadores estilos e capacidade de resposta aos reptos do futuro!
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Publicado em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 08.02.2014):



e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 09.02.2014):