sábado, fevereiro 22, 2014




Pobreza e tempo de Justiça


  

“Dizer que há uma história não é de forma alguma a mesma coisa que dizer que há coisas que se passam...”. Emmanuel Mounier


“Existe evidentemente uma relação intrínseca entre os conteúdos históricos do bem comum e a configuração e funcionamento dos poderes públicos”. Pacem in Terris



Com o seu exemplar testemunho num recente encontro de reflexão, pessoa amiga e desde sempre empenhada em questões sociopolíticas e de Doutrina Social da Igreja fazia-me recordar um antigo texto (de 1991) no qual eram abordadas precisamente algumas daquelas mesmas problemáticas. Ora sendo que, passados já 23 anos, o assunto permanece não só bastante actual quanto merecedor de revisitação temática entre nós, retomo aqui o respectivo delineamento crítico, infelizmente de novo à luz crua de uma urgência societária cada vez mais gritante...


1. A par das múltiplas questões que se tem vindo a deparar à Região Autónoma dos Açores com o processo mesmo da sua Autonomia político-administrativa, às quais importa dar respostas cada vez mais prontas e eficazes na medida em que constituem outros tantos desafios às instituições e aos agentes pessoais da vida açoriana – e cuja pertinência conjuntural reclama imediata análise e revisão do sistema, práticas e valores estabelecidos no Arquipélago (e afinal em todo o País!) –, existem outros núcleos de constante expressão e universal significação que, embora intrinsecamente relacionados com os primeiros, de algum modo os ultrapassam, entretecendo uma espécie de horizonte de consciência permanente que diz respeito à essência da verdade do homem e ao seu fundamental estatuto social e ético.

– Assim, de entre esses recorrentes sinais dos tempos, que são afinal outros tantos lugares críticos da vida comunitária, há que dar relevo aos fenómenos da Pobreza.

2. Regiões de Pobreza, em áreas mais ou menos circunscritas do tecido sociológico, são todos aqueles espaços aonde uma qualquer real indigência representa alienação ou privação daquilo que é minimamente necessário para uma vida humana digna.

– Todavia e de facto a Pobreza não se reveste de uma só feição, nem é representável apenas a partir de parâmetros mais ou menos estanques, existindo efectivamente muitas e tantas formas de carência humana grave quantas as esferas, múltiplas, hierarquizadas e diferenciadas de actividade, condição ou dimensão da existência.

E assim nenhuma forma de Pobreza é politicamente inocente ou eticamente neutra, tal como nenhum pobre – antes e quase sempre um empobrecido ou um explorado... – é uma fatalidade advinda da pura natureza das coisas sociais, ou um produto de ordem social (e muito menos metafísica!) abstractamente determinada.


Mas a procura de compreensão das causas da Pobreza, único processo legítimo para um consistente e coerente acompanhamento de empenhadas tentativas de contra ela lutar e tentar debelá-la – construindo alternativas superadoras daqueles que são quadros estruturais geradores não só de Pobreza quanto de Injustiça... –, é sempre algo inseparável de uma percepção da realidade cujas categorias de Razão e de Sensibilidade se afirmam e se enraízam em valores não-cousistas nem coisificados de consciência e de eticidade, aliás radicalmente confluentes e mutuamente implicados nos patrimónios da natureza espiritual, social e material do Homem e da história da sua Humanidade!

3. Entre nós – e porque há regiões dentro da Região –, a uma visão globalística e meramente estatística, é pois necessário juntar uma diferenciação concreta, tal como a uma suposta e ilusória unicidade de interesses, afinal mistificadora das disparidades classistas, das prioridades sociais e amiúde até da própria “assistência social” (quase sempre por anulações, conflito ou inversão de interesse e ideologia...), haverá que conceber, contrapor e accionar uma acção política, laboral, económica, social e cultural que tenha como base de sustentação sistemática e sistémica – como propunha em 1971 a doutrina da Octagesima Adveniens (Carta Apostólica de Paulo VI por ocasião do 80.º Aniversário da Encíclica Rerum Novarum) – “um esquema de sociedade, coerente nos meios concretos que escolhe e na sua inspiração, a qual deve alimentar-se numa concepção plena da vocação do homem e das suas diferentes expressões sociais”.


Deste modo, só um tempo de Justiça, sacudindo a fixidez espacializante ou apenas formalmente constituinte ou estatutária dos modelos e custos institucionais vigentes – e aplicado aqui ao caso da nossa Autonomia político-administrativa e da Insularidade histórico-geográfica açoriana – veiculará o dinamismo comprometido e solidário que unicamente as poderá dialectizar, aprofundar e fazer progredir substancialmente, dando conteúdo verdadeiramente virtuoso ao Progresso das ilhas e ao auto-governo regional, enquanto estes forem, ou puderem ser, propiciadores de um maior e verdadeiro Desenvolvimento humano, social e moral dos Açorianos, com todas as exigências, responsabilidades, custos e esperanças que tudo isso fundamenta e exige à Sabedoria, à Política, ao Trabalho, ao Estudo, à Economia, aos multidisciplinares Saberes e até à Fé...

– Porém os últimos dados e acontecimentos, exactamente segundo os mesmos valores e perspectivas acima referidos, são sinais – preocupantes, agressivos e crescentes –, de que há (e continuará a haver) na casa açoriana sempre muito a faltar fazer, que é como quem diz, anos e anos já passados, que ainda é cedo para imaginar a tarefa sequer parcialmente cumprida (muito menos acabada...), quando não até sendo de questionar se a Autonomia vem seguindo e/ou irá prosseguir na via certa e no rumo democrático mais seguro e conscientemente assumido pelo Povo dos Açores!
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 23.02-2014):























e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 22.02.2014):