sábado, agosto 16, 2014


Réplicas de O Mandarim
na casa de Madame Augusta



1. Sem qualquer dúvida, foi por uma curiosa sobreposição de puras coincidências que ao decorrer a passagem do presidente da República Popular da China pela ilha Terceira estava eu acabando de tornar a reler o nosso Eça – e assim o confesso com toda a sinceridade e gosto –, quando praticamente em simultâneo se me deparou ali nas sempre apelativas, clássicas e actualizadas estantes de uma livraria angrense (a nossa sempre actualizada e informada "In Folio") a bem sugestiva chegada e colocação em merecido destaque da última obra de Jorge Luís Borges traduzida e editada em português (Lisboa, Quetzal, 2014).




 –  Biblioteca Pessoal, assim se chama esse atractivo livro onde o consagrado autor de Ficções, História da Eternidade, O Aleph, etc., regista um magistral, apesar de selectivo e sucinto, repertório daquilo que foram as suas leituras memoriais ao longo do tempo, numa espécie de “biblioteca díspar, feita de livros, ou de páginas, cuja leitura foi uma felicidade”, escreve ele e nós com ele em idêntico gesto o partilhamos e retomamos aqui “por razão clara”..., conquanto nem sequer, por outro lado mas a propósito, deixando de chegar-nos à lembrança a novamente debatida e complexa questão dos programas, autores e conteúdos dos curricula nacionais e regionais na área da Literatura e das Humanidades:

Velho, arrastado e indefinido empeço que continua a flutuar ao sabor luso-açórico de muita falta de conhecimentos estruturados e de visões estruturantes, quando não em incríveis sequências e protelamentos de dossiers, pastas e secretárias, toscas “task forces” de educação, ciência e cultura, e por aí adiante e para trás, conforme as modas e manias mais ou menos instrumentalizadas ou proteladas de acordo com a conjuntura político-ideológica ou a mera táctica do arremedo (e do arremesso...) nacional e/ou regionalista ad hoc!

–  E isto para já nem referir a mais incompetente oscilação histórica, metodológica e temática entre modelos científicos e epistemológicos que sempre tem coxeado entre uma espécie de residual positivismo regionalista, mais ou menos serôdio, fechado e passadista, e um discutível figurino de uniformidade nacional (às vezes material, formal e pragmaticamente necessária, é certo, mas cujas linhas gerais, obrigatórias e/ou facultativas, deixam sempre alguma potencial margem de entendimento e criatividade às tutelas e aos desempenhos regionais  – e nacionais, igualmente–, quando e se bem trabalhados, credíveis e reconhecidos como tal...).





Porém – vinha a dizer, lá acrescentava então Borges –, os professores “que são quem dispensa a fama, interessam-se menos pela beleza do que pelos vaivéns e pelas datas da literatura e pela prolixa análise de livros que se escreveram para essa análise, não para prazer do leitor.


– “ (...) Um livro é uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente Universo, até que encontra o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Acontece então a emoção singular chamada beleza, esse mistério belo que nem a psicologia nem a retórica decifram”...


2. No seu Prólogo a esta obra, Jorge Luís Borges fez também questão de salientar que os seus íntimos eleitos não o foram para esta antologia, um pouco iniciática aliás, por serem “forçosamente famosos”, nem em função dos seus próprios “hábitos literários”, nem sequer “de uma determinada tradição, de uma determinada escola, de tal país ou de tal época”, antes manifestando desejo que esta proposta e confluentemente assumida Biblioteca Pessoal fosse “tão diversa como a não saciada curiosidade que me induziu, e continua a induzir-me, à exploração de tantas linguagens e de tantas literaturas”...

– Em nota inserta nas badanas deste pequeno mas fascinante volume, bem sinalizado vem o perfil do autor, lembrando que nasceu em Buenos Aires (1899), de onde partiu em 1914 para uma viagem pela Europa, até 1921, ano em que regressa ao seu país e começa a participar activamente na vida cultural da Argentina.

Professor de Literatura, director da Biblioteca Nacional de Buenos Aires (1955-1973) e Prémio Formentor (1961), a par da poesia, Borges escreveu ficção, crítica e ensaio, sendo a sua obra “um mise en abîme de uma enorme biblioteca, uma construção fantástica e metafísica que cruza todos os saberes e os grandes temas universais: o tempo, o ‘eu e o outro’, Deus, o infinito, o sonho”, todos vistos ou apenas entrevistos ou vislumbrados, para além da cegueira física que cedo o atingiu, ou talvez devido a ela mesma, até à sua morte em Genebra, em 1986.




3. Ora no início desta Crónica dizia eu que a minha leitura desta Biblioteca Pessoal de Jorge Luís Borges coincidira com uma saborosa releitura de Eça de Queirós, logo por acaso na mesma altura em que Xi Jinping passava na Terceira e sendo que, de entre os 63 autores e obras seleccionadas por Borges (incluindo os Evangelhos Apócrifos, Hesse, Kafka, Kierkegaard, Flaubert, Bloy, Poe, Blake, Voltaire, Heródoto, Frei Luís de Léon...) para aquele seu cânone singular (que tem algumas semelhanças com um outro livro seu, Prólogos com um Prólogo dos Prólogos, editado em português no Brasil pela Rocco, em 1985, mas que se diferencia por exemplo das selecções de Harold Bloom...), lá encontrei precisamente nomeado o nosso imortal autor de Os Maias:

– E nem que por admirável sortilégio, precisamente escolhido e apreciado pela sua tantas vezes minorada novela O Mandarim (importante “novidade” no contexto da “escrita narrativa queirosiana”, “no plano da linguagem e tendo em vista as estratégias narrativas que nela emergem”, como entre nós precisou Carlos Reis, mas também importante pelo conteúdo estético-literário da Carta, em jeito de Prefácio, que Eça escreveu, em Agosto de 1884, para a respectiva edição francesa, para além de todas as outras dimensões e alcances morais, éticos, civilizacionais e sociais, e das potencialidades interpretativas, até psicanalíticas, que a obra pode proporcionar...)!



 
Enfim, de Eça traça Jorge Luís Borges uma subtil resenha biográfica, situando a sua vida e obra na nossa “pequena e ilustre pátria”, onde ficou famoso, embora tenha morrido “quase ignorado pelas outras terras da Europa”, apesar de ter sido postumamente consagrado pela “tardia crítica internacional” (que o reconheceu, depois, “como um dos primeiros prosadores e romancistas da sua época”):

“ (...) Eça de Queirós – continua Borges – foi esta coisa um tanto melancólica: um aristocrata pobre. (...) Cada oração que Eça de Queirós publicou foi limada e temperada, cada cena da vasta obra múltipla foi imaginada com probidade. O autor define-se como realista, mas esse realismo não exclui o quimérico, o sardónico, o amargo e o piedoso. Como o seu Portugal, que amava com carinho e com ironia, Eça de Queirós descobriu e revelou o Oriente. A história de O Mandarim (1880) é fantástica (...). A mente do leitor hospeda com alegria essa impossível fábula”...

– Agora, não me parecendo necessário nem possível entrar aqui em aberturas e pormenores sobre o enredo e a “Moralidade discreta” dessa notável e sempre, sempre muito recomendável peça literária, até porque, ao contrário do que o seu autor simula teatralizar numa espécie de epígrafe preambular, estes “calores do Estio” não deixam derivar muito nem embotar nenhuma ponta de sagacidade, tal como não nem poderiam fazer-nos repousar de um outro ainda mais “áspero estudo da Realidade humana”!




Porém, se isto e aquilo, que em Eça e Borges tão bela e gostosamente apreciamos, pode e deve merecer todo o nosso comprazimento literário e cultural, para além do prazer intelectual de os ler e reler ficcional ou realisticamente, como não despistar, pelo direito ou no avesso simbólico de O Mandarim, novos sinais premonitórios e igualmente sábios sobre os antigos e contemporâneos riscos e tentações de vermos tanto “amanuense do Ministério do Reino” a vender a alma e a pátria ao Diabo, dê-se também o nome que se der aos Teodoros (perpétuos, paradigmáticos ou recorrentes “mangas de lustrina à carteira” do Estado...), aos milhões sonhados nos oblíquos olhos de Ti Chin-Fu, às oníricas alianças com as generalas de toda a casta política, aos Camilloffs da geoestratégia mundial, ou até – vá lá... – à euro-lusa casa de hóspedes de Madame Augusta?!

–  De facto, ainda, e com condescendência:

“ – Portugal é um belo país...

“ Eu exclamei com secura e firmeza:

“ – É uma choldra, general”... 
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 17 de Agosto de 2014):





















e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 13.09.2014):