sábado, setembro 20, 2014



Direito, Política e Cultura
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1. A polémica que veio a lume nos jornais e nas redes sociais à volta de um espectáculo/workshop de “danças de ventre” – encenado no Coro Alto da igreja de Nossa Senhora da Guia, também conhecida como de S. Francisco ou do Museu de Angra –, embora tenha caído em alguns despiques fulanizados e inconsequentes (por relação ao que verdadeiramente interessava ver reflectido e debatido), teve ao menos o mérito de chamar a atenção para duas questões de fundo: uma de ordem jurídico-institucional e política; outra de ordem cultural, simbólica e programática...

– Enquanto aguardamos a divulgação completa de novas e firmes reacções individuais e institucionais (v.g. de agentes partidários e da Diocese de Angra), e tal como tive ocasião de escrever há uma semana neste jornal, valerá ainda a pena proceder a uma releitura crítica de toda a Entrevista que Mário Cabral concedeu ao “Diário Insular”, já pelo ali notório entendimento da complexa e articulada conjugação de problemáticas, factores e valores, para além – evidentemente, como salientei –, de outras complementares questões formais, de lisura e ética societárias, de responsabilidade institucional e, enfim, de agenda política e de gestão pública (governamental e superiormente avalizadas?) de Cultura e Educação.


 2. No meu texto anterior, que parcialmente retomo hoje (17 de Setembro) para recentrar o tema, tive ensejo de realçar que toda esta controversa matéria deveria ter sacudido e despertado logo, contra incríveis e renitentes delongas ou confrangedores alheamentos, a reabertura actualizante e a resolução imediata do inadmissível protelamento e/ou incumprimento do imbróglio jurídico-político que pende sobre o Museu de Angra e o usufruto da sua igreja, conforme competentemente historiado e clarificado pelo Dr. Álvaro Monjardino – em 05.02.1994 – num Parecer importante (mas que dormia esquecido ou ignorado...) para a compreensão de uma das perspectivas de fundo que volvemos a lembrar aqui com a elucidativa transcrição das suas mais elucidativas passagens.

– Assim: “A Direcção Regional dos Assuntos Culturais achou-se confrontada com um problema relativo à propriedade da igreja de Nossa Senhora da Guia, anexa ao antigo convento de São Francisco, a qual, a julgar por um ofício (nº 72793, de 10 de Novembro) provindo da Câmara Eclesiástica da Diocese de Angra, não pertencia ao Estado. A este ofício se seguiu um outro (nº 81/93, de 22 de Dezembro), agora dirigido ao Director do Museu de Angra do Heroísmo, em que lhe é comunicada uma provisão do Bispo de Angra [então o saudoso D. Aurélio Granada Escudeiro], de 7 de Dezembro de 1993, nomeando um capelão para a referida igreja de Nossa Senhora da Guia.

 “ (...) À Direcção Regional dos Assuntos Culturais e ao próprio Museu de Angra do Heroísmo interessa uma definição do actual estatuto da igreja de Nossa Senhora da Guia, em termos de propriedade e, acessoriamente, em termos do próprio uso, seja ele pelo próprio Museu, seja por outra entidade, designadamente a Fraternidade referida [Ordem Terceira de São Francisco de Angra do Heroísmo]”.

– E depois de proceder a uma minuciosa destrinça histórico-legislativa que apura serem “o edifício do extinto convento de São Francisco, com a sua igreja”, “em termos de propriedade”, pertencentes à Região Autónoma dos Açores – pelo que esta pode conceder, ou pôr termo, à respectiva concessão a outros da mesma igreja (no caso à citada Ordem Terceira) –, o Parecer do jurista angrense salienta e conclui pelo seguinte:

“Porém (...) outra coisa será poder afectar aquele templo (...) a outros fins que não sejam do culto católico. Este é um aspecto do uso pelo proprietário que deve ser também posto em relevo.

“Na verdade, o art. VII da Concordata (...)  veda ao Estado (e, consequentemente, à Região) o destinar para outro fim que não seja o desse mesmo culto qualquer templo sem o acordo prévio da Autoridade eclesiástica”, sendo esta “uma importante limitação ao próprio conteúdo do direito de propriedade, na medida em que, por via de um texto de direito internacional, se condicionaram e restringiram as faculdades de uso do proprietário”, – restrição formal e material esta que “não pode deixar de estar presente em quaisquer decisões que, futuramente, a Administração regional venha a tomar relativamente à igreja de Nossa Senhora da Guia do antigo convento de São Francisco de Angra”...


3. Ora este texto de Álvaro Monjardino foi elaborado durante a vigência e para o V Governo Regional dos Açores presidido por Mota Amaral, sendo Aurélio da Fonseca secretário da Educação e Cultura, Vítor Duarte director regional dos assuntos culturais, e José Olívio Rocha director do Museu de Angra.

Todavia e a propósito deste exemplar documento – apesar da fundamentação jurídica e histórica de Álvaro Monjardino se reportar, natural e situadamente, à ordenação nacional e internacional vigente em 1994 (daí a remissão para o art. VII da Concordata de 1940, em vigor naquela data) –, convirá elucidar que nem por isso a substância e o fundamento dos argumentos nele aduzidos deixam de valer contemporaneamente, na exacta medida em que a nova Concordata (assinada em 2004) é bem explícita sobre idênticas matérias de facto e de jure, mormente nos Artigos 23.º e 24.º que consagram os mesmos princípios e regras do anterior documento concordatário entre a Santa Sé e a República Portuguesa. E deste modo, logo no § 1 do art. 24.º, diz-se expressamente o seguinte:

– “Nenhum templo, edifício, dependência ou objecto afecto ao culto católico pode ser (...) ocupado, (...) ou destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, a não ser mediante acordo prévio com a autoridade eclesiástica competente e por motivo de urgente necessidade pública”... E isto para nem invocarmos aqui as normas dispostas no art. 7.º da mesma Concordata, exigindo que Portugal assegure “as medidas necessárias à protecção dos lugares de culto (...), para evitar o uso ilegítimo de práticas ou meios católicos”!


 Colocado assim o problema nos moldes que a nós primeiro e essencialmente nos interessou despoletar, ou seja no devido quadro institucional e político-cultural da Diocese e do Governo Regional – bem entendido, com as inerentes hierarquias e tutelas (assumidas?) e em cujas sedes, neste caso, cúmplice e impunemente imputáveis, não estão a ser acautelados nem respeitados nenhuns imperativos jurídicos e regras político-administrativas (fazendo-se até, imagine-se, uma abusiva e agiota exploração monetária da Irmandade Franciscana!) –, restará de seguida aprofundar, sistemática, didáctica e criticamente, a razoabilidade programático-cultural, a adequabilidade simbólico-espacial e a dedutível legitimidade da realização arbitrária de alguns tipos de actividade naquele espaço de culto activo e não despido de memória religiosa nem alienado de imaginário devocional católico, como é fundamental sinalizar sempre.

– Esta é a assim a segunda questão de fundo a merecer análise aprofundada, por quanto aí também se reclama de abalizada compreensão antropológico-cultural (dir-se-ia mesmo ética e cientificamente sólida, além de competentemente museológica), até para fins de coerente e respeitosa fidelidade às exigências teórico-práticas de um outro entendimento civilizacional e axiológico que queira e saiba respeitar e promover a comunidade açoriana, na medida do possível com qualidade, prudência e sensatez, sem malévolas esquadrias (intencionais véus e aventais...) de irresponsáveis, reincidentes e despudoradas investidas materiais ou figurativas, cuja violência simbólica e niilista é muito mais grave e planeada do que possa parecer!

4. [A 2.ª edição deste texto, tal como publicado em Azores Digital e RTP-Açores, incluiu este parágrafo, entretanto publicado separadamente no jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 20.09.2014), com o título "As Mãozinhas de Cera"].

 Mesmo ao fechar do meu texto que o DI publica amanhã, recebi notícia de que a Igreja (Ouvidoria da ilha Terceira...) decidira pronunciar-se, em termos incisivos, sobre o momentoso problema da programação lúdica e artístico-dançante “de ventre” e demais contorcidos pontos da agenda político-cultural do Museu de Angra. 

Todavia, para além do pertinente conteúdo dessa louvável e firme deliberação dos padres diocesanos, deve salientar-se ter sido o seu “voto de protesto e repúdio” dirigido directamente ao presidente do Executivo regional, facto que é revelador de cepticismo face à restante hierarquia e às várias tutelas (governamentais, político-institucionais e logísticas) ali comprometidas! 

Entretanto chegou-nos o documento da magnífica iniciativa do CDS-PP (Félix Rodrigues), ao entregar na ALRA, com “carácter de urgência”, um minucioso e certeiro Requerimento sobre o mesmo intrincado e acobertado imbróglio. Assim sendo, e por aquilo que agora podemos avaliar em detalhe, tais posições – e outras que se espera venham a lume! –, devem ser conhecidas, divulgadas e integralmente respondidas em toda a sua justificada importância, tanto mais quanto o assunto ganhou já dimensão nacional. 

– Ora perante tudo isto, acanhados e negligentes silêncios (silenciamentos?) governamentais, político-partidários e episcopais, sem exigíveis e decorrentes responsabilizações, demissões ou remissões, atingirão as raias de autênticos escândalos e cumplicidades intoleráveis, não fosse esta uma boa ocasião para apurar-se até onde irão a força ou insignificância de tanto prócere e apparatchik desta governança e seus centros e (des)mandos de poder, quando antes, tão enfatuadamente, os mesmos (quais Acácios ou Calistos...), tanto apontavam empertigados dedinhos de cera à cabeça e aos pés alheios quanto o faziam ao alugável e incoerente ventre dos seus prezados desejos, sentenciando sempre, mas de cátedra, sobre préstimos, virtudes e vícios da Autonomia – quais servos de avental na copa, vestais de templo ou meninas raptadas em serralho... –, para, ao final, merecerem apenas poisos de fachada na galeria histórico-cultural desta “choldra”, como dizia o nosso Eça! 
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Em RTP-Açores:
http://tv2.rtp.pt/acores/index.php?article=37598&visual=9&layout=17&tm=41;

Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2723:





















“Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 20.09.2014):



























e “Diário Insular” 
(Angra do Heroísmo, 21.09.2014):




























"As Mãozinhas de Cera"
em "Diário Insular" (Angra do Heroósmo, 20.09.2014):