sexta-feira, dezembro 19, 2014


As Patologias da Impunidade _____________________________________________________________


Enquanto conceito ou intuição, a Impunidade tem vigência em múltiplos campos do saber, do pensamento e das práticas sociais, podendo estar tão presente na reflexão filosófica, psicológica, jurídica e ética quanto inserir-se imediatamente na esfera empírica dos usos, costumes, linguagens e comportamentos quotidianos.


– Na verdade, como ideia ou sentimento, tal fenómeno confunde-se com essas duplamente (in)discerníveis e/ou (im)perceptíveis manifestações e suas assumidas ou oclusivas persistências, numa série de domínios quase sempre à margem ou em contradição com princípios fundamentais (tais aqueles de valor, responsabilidade, isenção, prudência e até carácter), desse modo digladiando-se Razão e irracionalidade, Verdade e mentira, Inteligência e estupidez, Dignidade e baixeza, Hombridade e deslealdade, Veracidade e difamação, conquanto possa a mesma ficar também sob alçada legal ou ética como fuga ou infracção à Lei (seja ela positiva ou moral).


Por outro lado, intimamente ligado com o conceito de Impunidade está o de Imputabilidade, sendo que tal como o de imputação, ambos tem a mesma raiz e não podem ser dissociados, tal como salienta Manuel Cavaleiro Ferreira, que acrescenta:

– “No seu significado tradicional, imputação é o juízo pelo qual se considera alguém como agente de uma acção, a qual constitui, por isso, facto seu (feito pelo agente, pela sua vontade); conexionando o agente com a sua acção, concomitantemente facilita a delimitação da sua culpabilidade e da sua responsabilidade”...


E logo a seguir, o mesmo professor de Direito, no respeitante às causas da inimputabilidade (que aqui sobremaneira nos interessa aflorar, como e pelo que se deduzirá adiante), esclarece:

– “O nominalismo dos conceitos, favorecido por se ter perdido a conexão real do facto com o seu agente (a imputação), é patente na exigência de verificação da imputabilidade (ou capacidade de culpa) no momento de perpetração do facto”. (...) Consciência do facto e da ilicitude do facto são elementos constitutivos do dolo, como o seu não conhecimento devido à omissão culpável da vontade é elemento da culpa ou negligência”...
  

Ora lugares propícios ao exercício da Impunidade (amiúde confundida, embora mal, com imunidade, conforme uma vasta literatura jurídica e filosófica reflecte para clarificar os seus âmbitos, distintos, de juízo e de protecção por e para irresponsabilidade ou irresponsabilização), são os parlamentos políticos e as usanças e governanças institucionais, onde, por via da vigência de categorias cínicas, reiteradamente misturam-se a salvaguarda de legítimos direitos e garantias (liberdade de expressão crítica, denúncia fundamentada e defesa pessoal) com toda uma panóplia de recursos cobardes e desresponsabilizadores (aliados afins das mais descaradas cartas de alforria que imaginar se possa para fins de logro, corruptela de factos e testemunhos, atentados à inteireza das coisas e à justeza dos actos, sendo até que, em certos casos, já assentes em critérios do foro clínico e psico-patológico, chega-se a reclamar uma pessoal inimputabilidade conveniente, – pecha à qual nem sequer os médicos escapam quando se contaminam de política cega e gaga, para nela, sem deontologia nem vergonha, quais mutantes fanáticos, incompetentes e vesgos, perdurarem como inócuos gerentes da Saúde Pública), como se tem visto neste nosso anestesiado e doentio meio, apesar do uso de tantos estetoscópios de precisão (que todavia não encaixam, não soam nem esclarecem diagnóstico lúcido em orelhas tão moucas...).





De resto, também aqui, onde muitos conflitos de interesses ocorrem... – digo, no campo da específica e concreta actuação político-partidária, executiva, parlamentar e administrativa – dos médicos e de outros ditos “profissionais” da saúde, valem as reflexões de João Lobo Antunes, sendo que, “pese embora a belicosa resistência da classe médica, a verdade é que, cada vez mais, outros intervenientes no campo da saúde reclamam para si um papel cada vez mais activo na avaliação profissional [aqui política] dos médicos. Tal escrutínio é exercido quer de uma forma informal, como sucede com os media, cada vez mais atentos às questões da saúde, ou com organismos com maior ou menor poder regulamentador e disciplinar, quer instituições estatais, quer privadas, sendo estas últimas sobretudo entidades pagadoras de serviços”...



– E, claro, também pelos cidadãos, contribuintes e eleitores que, embora muitas vezes defraudados e enganados pelas infectadas máquinas políticas, ainda podem, com o seu voto e/ou com as suas justas reivindicações sociais e denúncias cívicas, fazer mudar os mantos e as cumplicidades (leia-se as batas e as luvas partidárias) com que tantos se cobrem mutuamente nos esconsos corredores dos hospitais e nos gabinetes do Poder!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 20.12.2014):



























Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2792:



























e RTP-Açores (no prelo).

Primeira versão em "Diário Insular",
Angra do Heroísmo, 20.12.2014: