sábado, maio 30, 2015


A Correspondência de Fradique Mendes
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Eça, Canónico e Crítico


1. Há livros e autores aos quais sempre se volta, por dever e cumprimento de ofício ou pelo simples prazer de leitura e busca de quase infinitas reconfigurações para as suas tessituras de sentido, como propunha Barthes. E depois, tais obras, por tudo aquilo que exprimem, e mais podem manifestar, fazer descobrir ou revelar – tanto para estudiosos particulares e leitores reais como na formação dos cânones histórico-literários (veja-se Bloom e Borges...) – constituem peças de Cultura e de Pensamento (conquanto diversificadas e até problematizáveis temática, ideológica e estilisticamente...) daquele património chamado (e construído civilizacional e individualmente) como clássico, assim sendo guardado, transmitido e revisitável na vida das comunidades e nos tempos interiores ou íntimos dos leitores, como bem propôs Italo Calvino.


 Ora no caso que tenho hoje em vista é precisamente isso que acontece com um Autor e com um livro ao qual de modo cíclico retornamos, ou não fossem eles um Escritor clássico, no âmbito canónico da Literatura Portuguesa e Universal, e uma obra aberta, como a definia Eco, que exige também “características estruturais” que estimulam e ao mesmo tempo regulam “a ordem das suas interpretações”:

– Refiro-me ao nosso Eça de Queirós e à sua Correspondência de Fradique Mendes, livro acabado de publicar pela INCM (2014) em mais um precioso volume da Edição Crítica das Obras do imortal autor de Os Maias, O Crime do Padre Amaro, A Capital!, O Primo Basílio, O Mandarim, Alves & C.ª, A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras, etc. (estando algumas destas já editadas e outras projectadas nesta notável, única e qualificada série tão empenhadamente coordenada por Carlos Reis).



2. Inserida nas actividades do Centro de Literatura Portuguesa/FCT da Universidade de Coimbra, esta edição foi preparada por Carlos Reis, Irene Fialho e Maria João Simões, abrindo com uma “Nota prefacial” onde é explicitado o objectivo de um trabalho que foi efectuado com vista a facultar um texto “em muitos aspectos consolidado, relativamente ao que eram as edições que até agora dispúnhamos”, tanto mais quanto se trata de “um daqueles títulos que Eça de Queirós não chegou a publicar em vida, facto que arrasta consideráveis problemas e inseguranças”, desde logo por decorrerem do facto de estarmos em presença de “um texto semipóstumo, que foi projectado e em boa parte organizado pelo próprio Eça”, mas que “contou com outras intervenções, logo depois do desaparecimento do seu autor” e na sequência, ainda por cima, de ter sido “a escrita e a publicação original destes textos (...) acidentada e sobretudo dispersa”, com uma evidente história marcada por “reescritas”, “emendas” e até lamentáveis “oscilações de critério editorial” (subtil mas incisivamente, denunciadas aqui...).



– Esta edição crítica (que é também antológica de Poemas primevos e Cartas fradiquistas habitualmente desenquadradas) começa com um minucioso ensaio sobre A Correspondência de Fradique Mendes, onde os organizadores retomam reflexões não só sobre a génese e evolução da sua figura e estilística quanto também sobre o “cânone queirosiano”, o “estatuto ontológico de Fradique” e “uma certa fortuna cultural” da obra de Eça, após o que procedem a uma análise estrutural, comparativa e selectiva das diversas presenças e ausências, manuscritos e espólios do consagrado escritor, nomeadamente do “manuscrito Salema Garção” (adquirido pela Biblioteca Nacional em 2004 e catalogado como BN Esp. E1/310), posto em elucidativo confronto e cotejo com versões anteriores das Cartas, com os manuscritos Alberto de Serpa e Menéres Campos, para além, como não podia deixar de ser, das versões originárias vindas a público na Gazeta de Notícias, em O Repórter e na Revista de Portugal.



3. Não tem faltado – porém nem tanto quanto seria de desejar da nossa cultivada academia lusa, do publicismo culturalista e das suas revistas especializadas ou de mera divulgação, e do tão letrado jornalismo cultural luso... – elogios criteriosos e construtivas apreciações a este meritório projecto editorial (de alcance luso-brasileiro), onde para além de Carlos Reis e das suas Colaboradoras neste volume, merecem referência Elena Soler, Ana Peixinho, Maria Helena Santana e Maria do Rosário Cunha, para além do excepcional desempenho de Fagundes Duarte – e nisto numa significativa linhagem de estudos e estudiosos açorianos sobre Eça (Alberto Machado da Rosa, Pedro da Silveira, Machado Pires, Frank Sousa, etc.), como salientei em O Risco das Vozes (2006) e em “Insularidade, Modernidade e Figuras dos Açores em Eça de Queirós” (2012), – a quem coube a dificílima incumbência de preparar a edição crítica de A Capital!, mas que mais tem produzido – com o grande especialista queirosiano que é Carlos Reis – uma reflexão teórico-crítica sobre o mesmo trabalho crítico subjacente às textualidades e às edições histórico-críticas, numa linha de análise e compreensão não só estritamente formal, filológico-textual ou estilístico-gramatical quanto hermenêutica (e assim aplicável a outros domínios e registos discursivos, conceptuais e poéticos, tais o da Filosofia e aos demais da Linguagem e da Teoria da Literatura, da Língua, da História, da Linguística e até da Tradução).




– É claro que especialmente no caso do Eça de A Correspondência de Fradique Mendes, por todas as razões que aí criticamente confluem e pelas específicas potencialidades interpretativas da obra e do seu autor, do seu pensamento e das suas complexas, intrincadas e pluridisciplinares facetas, horizontes e contextos (existenciais, histórico-literários, sociopolíticos, estéticos, psicológicos e filosóficos), também por via deste regresso a essa figura semi-ficcional, semi ou proto-heteronímica (onde narrador, personagens e personificações se entremeiam...), mais se acentuam traços, heranças e vigências de uma espécie de recorrente Modernidade, ainda criticamente nossa (Cesário e Pessoa, Mário Cláudio, Agualusa e Saramago...), como se tem procurado pensar, repensar e (des)construir na aura e das “auréolas mais refulgentes” desse “homem genial” que Eça, dele  e com Fradique – isto é, de si próprio e ao(s) outro(s) de si... –, e a nós também, “vincam a alma – e jamais esquecem”!

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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 30.05.2015):



























Azores Digital:




























Eça, Clássico e Crítico
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Há livros e autores aos quais sempre se volta, por dever e cumprimento de ofício ou pelo simples prazer de leitura e busca de reconfigurações para as suas tessituras de sentido. E depois, tais obras, por tudo aquilo que exprimem, e sempre e mais podem manifestar, fazer descobrir ou revelar, constituem peças de Cultura e de Pensamento daquele património clássico que assim vai sendo guardado, transmitido e revisitável na vida das comunidades e nos tempos interiores ou íntimos dos leitores. Ora no caso que tenho em vista é precisamente isso que acontece com um Autor e um livro ao qual de modo cíclico retornamos, ou não fossem eles um Escritor clássico, no âmbito canónico da Literatura Portuguesa e Universal, e uma obra aberta...

– Refiro-me ao nosso Eça de Queirós e à sua Correspondência de Fradique Mendes, livro acabado de publicar (2014) numa edição preparada por Carlos Reis, Irene Fialho e Maria João Simões. – Ora não tem faltado elogios criteriosos e construtivas apreciações teoréticas, filológicas e formais a este meritório projecto da INCM, onde, para além de Carlos Reis e das suas Colaboradoras neste volume, merecem referência Elena Soler, Ana Peixinho, Maria Helena Santana e Rosário Cunha, para além do excepcional desempenho de Fagundes Duarte a quem coube a dificílima incumbência de estruturar a edição crítica de A Capital! (mas que mais tem produzido – com o grande e maior especialista queirosiano que é Carlos Reis – uma reflexão teórico-crítica sobre o mesmo trabalho crítico subjacente às textualidades e às suas edições histórico-críticas).

É claro que especialmente no caso do Eça de Fradique Mendes, também por via deste regresso a essa figura semi-ficcional, semi ou proto-heteronímica mais se acentuam os traços, heranças e vigências de uma espécie de recorrente Modernidade, ainda criticamente nossa contemporânea (Cesário e Pessoa, Mário Cláudio, Agualusa e Saramago...), como se tem procurado pensar, repensar e (des)construir desse “homem genial” cujas “auréolas mais refulgentes”, como ele(s) escrevem, “vincam a alma – e jamais esquecem”!
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 30.05.2015):







sábado, maio 23, 2015

As Tribos da Capital

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Os recentes acontecimentos de violência e destruição que ocorreram em Lisboa e Guimarães por ocasião das comemorações da conquista do campeonato português de futebol constituíram novamente manifestações de toda uma complexa situação social que ciclicamente aflora e explode um pouco por toda a parte (e entre nós também, como se verificou agora), com as consequências e os custos que todos conhecemos e que constituíram motivo de informação, transmissão ou cobertura mediáticas para grandes audiências, às quais não faltaram amplas perorações do habitual e interessado nacional-comentarismo mais ou menos passional e epidérmico que temos, num quadro quase idêntico àqueles que vem galvanizando a nação e preenchendo manchetes, paixões míticas e arroubos de patriotismos, regionalismos ou clubismos mais ou menos de substituição ou transferência, numa série de mecânicas do imaginário em consonância com euforias de alienadas massas, de modo totémico…





– Ora apesar de continuarmos a não exercer sobre tal fenómeno uma urgente e aprofundada reflexão, e de persistirmos em não procurar implementar as medidas que, mesmo que em parte ou pontualmente apenas, o prevenissem ou minorassem, o certo é que as tribos do futebol (como Desmond Morris lhes chamou num livro famoso, bem a par das temáticas por ele confluentemente abordadas no Zoo Humano e no Macaco Nu e louco...), o que vemos é instalar-se somente uma polémica política e securitária entre hostes partidárias, forças policiais e poderes autárquicos, qual deles procurando maiores dividendos ou passa-culpas que os desresponsabilizem desta barbárie real, simbólica, cívica e desportiva a que especialmente na capital a populaça ensandecida se entregou, instigada!



Porém o mal tem raízes profundas e vem de longe, pelo que deste neo-tribalismo sistémico aonde nos atolámos dificilmente nos livraremos dentro do sistema e dos valores que estão na sua própria génese, e na lógica inerente ao hibridismo decadentista que aliás o perpetuará sempre em cadeia, em todas as práticas do nosso quotidiano cultural e civilizacional, e nos espaços e discursos públicos e privados que nos cercam.   
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 23.05.2015):



















RTP-Açores:
"Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 23.05.2015):



























e Azores Digital
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2900:



sábado, maio 16, 2015



Um Açoriano no Orpheu

ou A Expatriação de Violante


1. Com os Açores revendo-se demasiado em triviais e rotineiros subprodutos político-culturais espelhados em liras de vulgar sonoridade, ou pasmados em adoração de navios, aviões, tasquinhas e toiros..., está-se comemorando este ano em Portugal e no Brasil o I Centenário do surgimento de Orpheu, cujo primeiro dos dois únicos Fascículos, então aparecidos, foi lançado no primeiro trimestre de 1915 (embora um terceiro, retomado por Arnaldo Saraiva, tenha acabado por chegar aos prelos, um pouco extemporaneamente, em 1984).


 – “Revista de Literatura”, de início em sintonia luso-brasileira, editada por António Ferro e propriedade de Orfeu, L.da, esta publicação, no seu N.º 1, tinha uma Direcção bicéfala (Luís de Montalvôr, em Portugal; Ronald de Carvalho, no Brasil), depois substituídos por Fernando Pessoa e Mário Sá-Carneiro.

Órgão do movimento chamado de Modernismo, nas páginas de Orpheu colaboraram, para além de Pessoa e Sá-Carneiro, Alfredo Guisado, Côrtes-Rodrigues e a sua Violante de Cysneiros, Almada Negreiros (com “Frizos”, em prosa), José Pacheco (autor do famoso desenho da capa inaugural), Ângelo de Lima, Eduardo Guimarães, Raul Leal e Santa Rita Pintor.


 – Confluência de várias sensibilidades pessoais e de diversos ideários e modelos estético-literários, nem sempre muito definidos e delimitados nas suas fronteiras estilísticas, perfis, formas, conteúdos temáticos e imaginários accionados (Modernismo, Simbolismo, Futurismo, Sensacionismo, Paúlismo...), tinham todavia em comum aqueles escritores e artistas da chamada Geração do Orpheu uma declarada e turbulenta intenção anti-tradicionalista (logo vincada em Pessoa, na sequência dos diferendos com Pascoaes e A Águia), muito marcados que estavam aqueles jovens por ascendências europeístas, anti-saudosistas, anti-românticas, “vanguardistas”, “progressistas” e parisienses (mais dramaticamente vividas por Sá-Carneiro), manifestamente iconoclastas, poeticamente recriadoras e de afrontamento social e estético, todas afinal assumidas ou inovadoramente experimentadas num Portugal e numa Europa cujas sombras finisseculares e crises decadentistas tomavam novas projecções, contornos e proporções naqueles (a)celerados anos que antecederam – e depois herdaram e consumaram... – (i)memoráveis catástrofes da Guerra, auroras e declínios filosóficos, literários, existenciais e psíquicos, a par dos mecânicos rodopios das velozes rodas de ferro, fogo e aço da moderna Civilização Europeia e do seu Progresso (fatal progressão!) em direcção aos Abismos da matéria, do espírito e do mundo que estavam já ali em trágica gestação e cujos gemidos, visões e delírios ecoavam nas esotéricas tertúlias portuguesas...


2. Ora é neste contexto civilizacional e histórico-cultural, e neste grupo literário-artístico que se integrará o nosso Armando Côrtes-Rodrigues – “Transcendências nublóticas, metafísicas raras, [...] Bizantinos jardins, onde a tarde agoniza”..., com a sua Violante de Cyneiros (2.º Número de Orpheu) –, esse poeta, amigo, correspondente e confidente maior e íntimo de Pessoa, que mais tarde reconheceria terem então os seus projectos constituído “inesperada primavera literária, que alarmou o convencionalismo pacato em que dormitavam as letras daquela época”...




De resto, assim mesmo recordará depois o escritor micaelense, numa assaz curiosa sinalização da sua posterior conversão insularmente reconfigurada:

“Entenda-se por Primavera, não uma quadra de serenidade florida, que irrompe de um dia para o outro em terras do continente, mas antes uma desvairada estação como a nossa, destas Ilhas, de sol radioso ou de céu cinzento, de mistura com chuvadas grossas, brumas, granizo e vento, todo o destempero de um inverno que estrebucha, por o forçarem a acordar de vez e a ir-se embora”.


E depois – mais evoca o escritor açoriano –, a revista Orpheu “trazia na capa, em desenho de José Pacheco, uma mulher nua, de cabelos soltos, entre dois grandes círios, altos e acesos. A má língua dos cafés, atenta sempre a tudo o que se passa, logo a apelidou de ‘Enterro da Arte’! Afinal o enterro redundou em apoteose estrondosa de indignação e protesto”... –, enfim, tal qual lhe dissera um eufórico Pessoa, em carta de 4.4.1915:

– “Somos o assunto do dia em Lisboa; sem exagero lhe digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente – mesmo extraliterária – fala do Orpheu”...


 E de tal modo o alvoroço fora, como chocadamente escrevia “A Capital” ao remeter aquelas coisas e os seus excêntricos autores para os pavilhões artísticos de Rilhafoles (quais produtos e casos de “paranóia” de “indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro dos manicómios”), que “O Século Cómico” afiançava ficar a avaliação de tais “maluquices” para outro ensejo, caso alguns dos redactores das críticas literárias conseguissem “ler o folheto até ao fim sem percalço de maior” e tanto mais quanto já então quatro deles, “ao tentarem a empresa, recolheram ao hospital com terríveis indícios de alienação; [e] dois outros faleceram de apoplexia fulminante às primeiras letras”!

3. Mas é claro que o Orpheu representava e foi simbólica e mentalmente muito mais do que tudo isso.

– E nele, embora com um bastante diferenciado percurso literário, ético e espiritual (que deixaremos para outra ocasião abordar), lugar importante, por múltiplas razões, ocupa Côrtes-Rodrigues, – aliás, não há muito tempo, tão ridícula, desatenta ou ignorantemente naturalizado ou repatriado como “madeirense” por uma turma de “representantes” da nossa contemporânea nação (entre os quais um eleito pelos Açores!), na Assembleia da República, no dia 8.3.2008, como vale a pena rever para crer:

De facto, num “Voto de Pesar” pela morte de um grande historiador da Cultura Portuguesa (Joel Serrão), diz-se que a sua primeira obra foi uma edição “das cartas de Pessoa ao poeta madeirense (sic) Armando Cortes Rodrigues, colaborador da revista Orpheu”.


 E a fantástica Proposta (*), depois aprovada por unanimidade, tinha sido previamente subscrita e apresentada ao selecto Parlamento luso, então presidido por Jaime Gama, pelos senhores deputados Guilherme Silva (PSD), Hugo Velosa (PSD), Ricardo Rodrigues (PS), Jorge Strecht (PS), Sónia Sanfona (PS), Diogo Feio (CDS-PP), Correia de Jesus (PSD) e Luís Fazenda (BE), assim sendo que, por entre mediocridades de formação e outras leviandades na função, lá aqueles paúlicos deputados do reino e ilhas adjacentes – “No seio negro e profundo/ Da noite, em treva dormindo”... – expatriaram o nosso bem lembrado Armando Côrtes-Rodrigues e a sua querida Violante...

(*) :















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Publicado em "Diário dos Açores", 
(Ponta Delgada, 16.05.2015):



























Azores Digital:

























e RTP-Açores:
























Outra versão em "Diário Insular", 
(Angra do Heroísmo, 16.05.2015):


quinta-feira, maio 07, 2015


Duas Obras Admiráveis


1. Estava ali, um pouco esquecido entre a Bibliografia Açoriana, quando o reencontrei não muito longe de Os Hebraicos na Ilha Terceira de Pedro de Merelim (Angra do Heroísmo, 1966; reeditado em 1995), a que fiz referência em Crónica anterior (*) e a propósito, que retomo hoje, do brilho e projecção com que foi recentemente inaugurada a histórica Sinagoga de Ponta Delgada – Sahar Hassamain (“Porta dos Céus”) –, coroando-se assim de nobres aspirações e assegurando-se uma acrescida preservação da memória religiosa, socioeconómica e cultural do Povo Judeu nos Açores:

– Refiro-me ao belíssimo livro Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada, notável projecto e obra de História, Recuperação e Conservação da autoria e responsabilidade de José de Almeida Mello (então já rigoroso, promissor e premonitório – e realmente tão profético e visionário no seu aduzido trabalho – quanto dele os luminosos frutos testemunharam, agora a maior evidência, a riqueza das suas reais, comprovadas e imensas potencialidades, aliás exemplarmente reveladas a quando da mundialmente divulgada abertura desta Sinagoga, e da crescente e interessada vaga de visitantes que começaram e continuarão por certo a admirar tão assinalável herança da presença hebraica nos Açores (S. Miguel, Terceira, Graciosa e S. Jorge)!



2. Lançada em 2009 – numa mecenática edição da Publiçor (com os conhecidos empenhos beneméritos do seu administrador José Ernesto Resendes); muito bem impressa na Nova Gráfica; com excelentes e sugestivas Fotografias de José António Rodrigues (entre as quais as que ilustram este texto), e com esmerado Design Gráfico de Jaime Serra – esta Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada (graciosamente oferecida à mesma entidade e aos seus curadores para apoio aos desígnios do seu projecto e subsequente divulgação promocional), contou com um Prefácio do nosso estimado e saudoso amigo Dr. Alberto Sampaio da Nóvoa (ex-presidente do Supremo Tribunal Administrativo e Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores entre 1997 e 2003), onde justamente foi logo salientado o seu carácter de “obra plena de oportunidade, não só por estar em causa uma comunidade judaica, cujo legado cultural e religioso importa preservar e divulgar, mas também porque a recuperação da Sinagoga irá contribuir, sem dúvida, para o enriquecimento do valioso património cultural da cidade de Ponta Delgada”. E assim admiravelmente aconteceu por estes dias!


– Fundado em 1836 por Abraão Bensaúde, mas abandonado e degradado durante bastante tempo, aquele Templo e moradia de Rabino é o mais antigo do género em Portugal, tendo sido construído por judeus vindos estabelecidos ou regressados ao nosso Arquipélago no Século XIX, na sequência de expatriações e demandas que remontam ao Século XV.


3. Este livro, para além do Prefácio referido e da Introdução (na qual Almeida Mello nomeia e agradece aos seus diligentes Colaboradores) explicita depois métodos de investigação, processo de recolha, conteúdo, significado e historial dos materiais e objectos ali inventariados, abordando os seguintes temas e revelando documentos:

– Restauro e conservação na Europa; enquadramento espacial; resenha histórica da presença hebraica em Portugal e nos Açores; a Sinagoga e o seu lado humano; descrição do edifício e da Sinagoga, e dos seus (então) deteriorados estados; a sala de Culto; “inimigos vivos” (constatados aos milhares nas velhas ruínas: térmitas, ratos, ninhos, baratas, traças...) que povoavam aquele corrompido lugar; espólios (v.g. Toras e outros objectos de culto; um quadro dos fundadores da Sinagoga; candeeiros de tecto; a cadeira de Circuncisão; caixa de esmolas; papéis hebraicos e livros de culto); Comissões de recuperação e salvaguarda; a Sinagoga na Imprensa; Projecto de restauro e conservação; objectivos pretendidos e intervenções na Sinagoga. Após as conclusões, seguem-se Anexos (levantamento arquitectónico, plantas e escrituras várias), Bibliografia e uma Nota Biográfica do Dr. José de Almeida Mello (principal, competente e incansável coordenador executivo deste projecto, como já tive oportunidade de gratamente assinalar).


 4. Finalmente, esta obra – para além do seu evidente valor intrínseco como repertório documental, inventário patrimonial e verdadeiro manifesto em prol da recuperação daquele paradigmático monumento comunitário e símbolo religioso, sociohistórico e cultural dos Açores e do Povo de Israel –, vale também como a face primeira de um projecto cívico e de resistência memorial  (devidamente suportados por diversas e irmandas instituições regionais, nacionais, hebraicas e norte-americanas), tanto mais justificados todos, retroactiva e prospectivamente, quanto a obra feita e a palavra cumprida – ao contrário do que teria sido uma cedência comodista, cobarde ou apenas preguiçosa, quase como a de Jefté, segundo o Talmude lido por Elie Wiesel... –,  foram  um verdadeiro protesto cívico, teórico e prático, contra a indiferença e contra  desleixos,  ignorâncias e recorrentes ignomínias civilizacionais...


De resto, sem chegar a ter de relembrar nesta ocasião, com Gershom Scholem e outros, todo o insuspeitado alcance intelectual – desde História, Literatura, Arte e Filosofia das Religiões, até ao Pensamento Judaico e às suas marcas críticas na Cultura Europeia, e desde a Diáspora ao Sionismo, ao anti-Semitismo e ao Holocausto (Shoah)...–,  desta tão digna e dignificante restauração patrimonial, religiosa e cultural do Judaísmo e das suas múltiplas manifestações e heranças – para além, evidentemente, de  vertentes mais pragmáticas e estratégicas (desde a turística à arquitectónico-urbana e à político-cultural...) –, bem merece ser retido, também aqui, aquilo que Golda Meir, em Maio 1923, testemunhou e que Almeida Mello, em boa hora e sob reavivada estrela, no seu excepcional livro, emblematicamente transcreveu:

– “Lembro-me de ter percorrido a bonita cidadezinha (Ponta Delgada), apreciado o clima doce e a adorável e invulgar paisagem. Um aspecto curioso da nossa paragem foi que descobrimos uma pequena comunidade judaica sefardi [sefardita] (umas trinta pessoas ao todo) que era extremamente cumpridora. O rabi tinha morrido vários anos antes (...)”.


 Assim, e também por isso, é que é tão admirável, respeitável e promissor este reavido legado de gerações – esperanças e lamentos vindos do fundo enigmático dos tempos –, qual kipá levada de volta a casa, ou retomado tálit para a meditação e a humilde e longa espera do Messias.
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(*) Cf. "As Heranças Hebraicas", em OS SINAIS DA ESCRITA:
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Publicado em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 09.05.2015):





























RTP-Açores:

























e Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2889:


























Outra versão: "Um Projecto Exemplar",
em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 09.05.2015):