sábado, maio 16, 2015



Um Açoriano no Orpheu

ou A Expatriação de Violante


1. Com os Açores revendo-se demasiado em triviais e rotineiros subprodutos político-culturais espelhados em liras de vulgar sonoridade, ou pasmados em adoração de navios, aviões, tasquinhas e toiros..., está-se comemorando este ano em Portugal e no Brasil o I Centenário do surgimento de Orpheu, cujo primeiro dos dois únicos Fascículos, então aparecidos, foi lançado no primeiro trimestre de 1915 (embora um terceiro, retomado por Arnaldo Saraiva, tenha acabado por chegar aos prelos, um pouco extemporaneamente, em 1984).


 – “Revista de Literatura”, de início em sintonia luso-brasileira, editada por António Ferro e propriedade de Orfeu, L.da, esta publicação, no seu N.º 1, tinha uma Direcção bicéfala (Luís de Montalvôr, em Portugal; Ronald de Carvalho, no Brasil), depois substituídos por Fernando Pessoa e Mário Sá-Carneiro.

Órgão do movimento chamado de Modernismo, nas páginas de Orpheu colaboraram, para além de Pessoa e Sá-Carneiro, Alfredo Guisado, Côrtes-Rodrigues e a sua Violante de Cysneiros, Almada Negreiros (com “Frizos”, em prosa), José Pacheco (autor do famoso desenho da capa inaugural), Ângelo de Lima, Eduardo Guimarães, Raul Leal e Santa Rita Pintor.


 – Confluência de várias sensibilidades pessoais e de diversos ideários e modelos estético-literários, nem sempre muito definidos e delimitados nas suas fronteiras estilísticas, perfis, formas, conteúdos temáticos e imaginários accionados (Modernismo, Simbolismo, Futurismo, Sensacionismo, Paúlismo...), tinham todavia em comum aqueles escritores e artistas da chamada Geração do Orpheu uma declarada e turbulenta intenção anti-tradicionalista (logo vincada em Pessoa, na sequência dos diferendos com Pascoaes e A Águia), muito marcados que estavam aqueles jovens por ascendências europeístas, anti-saudosistas, anti-românticas, “vanguardistas”, “progressistas” e parisienses (mais dramaticamente vividas por Sá-Carneiro), manifestamente iconoclastas, poeticamente recriadoras e de afrontamento social e estético, todas afinal assumidas ou inovadoramente experimentadas num Portugal e numa Europa cujas sombras finisseculares e crises decadentistas tomavam novas projecções, contornos e proporções naqueles (a)celerados anos que antecederam – e depois herdaram e consumaram... – (i)memoráveis catástrofes da Guerra, auroras e declínios filosóficos, literários, existenciais e psíquicos, a par dos mecânicos rodopios das velozes rodas de ferro, fogo e aço da moderna Civilização Europeia e do seu Progresso (fatal progressão!) em direcção aos Abismos da matéria, do espírito e do mundo que estavam já ali em trágica gestação e cujos gemidos, visões e delírios ecoavam nas esotéricas tertúlias portuguesas...


2. Ora é neste contexto civilizacional e histórico-cultural, e neste grupo literário-artístico que se integrará o nosso Armando Côrtes-Rodrigues – “Transcendências nublóticas, metafísicas raras, [...] Bizantinos jardins, onde a tarde agoniza”..., com a sua Violante de Cyneiros (2.º Número de Orpheu) –, esse poeta, amigo, correspondente e confidente maior e íntimo de Pessoa, que mais tarde reconheceria terem então os seus projectos constituído “inesperada primavera literária, que alarmou o convencionalismo pacato em que dormitavam as letras daquela época”...




De resto, assim mesmo recordará depois o escritor micaelense, numa assaz curiosa sinalização da sua posterior conversão insularmente reconfigurada:

“Entenda-se por Primavera, não uma quadra de serenidade florida, que irrompe de um dia para o outro em terras do continente, mas antes uma desvairada estação como a nossa, destas Ilhas, de sol radioso ou de céu cinzento, de mistura com chuvadas grossas, brumas, granizo e vento, todo o destempero de um inverno que estrebucha, por o forçarem a acordar de vez e a ir-se embora”.


E depois – mais evoca o escritor açoriano –, a revista Orpheu “trazia na capa, em desenho de José Pacheco, uma mulher nua, de cabelos soltos, entre dois grandes círios, altos e acesos. A má língua dos cafés, atenta sempre a tudo o que se passa, logo a apelidou de ‘Enterro da Arte’! Afinal o enterro redundou em apoteose estrondosa de indignação e protesto”... –, enfim, tal qual lhe dissera um eufórico Pessoa, em carta de 4.4.1915:

– “Somos o assunto do dia em Lisboa; sem exagero lhe digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente – mesmo extraliterária – fala do Orpheu”...


 E de tal modo o alvoroço fora, como chocadamente escrevia “A Capital” ao remeter aquelas coisas e os seus excêntricos autores para os pavilhões artísticos de Rilhafoles (quais produtos e casos de “paranóia” de “indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro dos manicómios”), que “O Século Cómico” afiançava ficar a avaliação de tais “maluquices” para outro ensejo, caso alguns dos redactores das críticas literárias conseguissem “ler o folheto até ao fim sem percalço de maior” e tanto mais quanto já então quatro deles, “ao tentarem a empresa, recolheram ao hospital com terríveis indícios de alienação; [e] dois outros faleceram de apoplexia fulminante às primeiras letras”!

3. Mas é claro que o Orpheu representava e foi simbólica e mentalmente muito mais do que tudo isso.

– E nele, embora com um bastante diferenciado percurso literário, ético e espiritual (que deixaremos para outra ocasião abordar), lugar importante, por múltiplas razões, ocupa Côrtes-Rodrigues, – aliás, não há muito tempo, tão ridícula, desatenta ou ignorantemente naturalizado ou repatriado como “madeirense” por uma turma de “representantes” da nossa contemporânea nação (entre os quais um eleito pelos Açores!), na Assembleia da República, no dia 8.3.2008, como vale a pena rever para crer:

De facto, num “Voto de Pesar” pela morte de um grande historiador da Cultura Portuguesa (Joel Serrão), diz-se que a sua primeira obra foi uma edição “das cartas de Pessoa ao poeta madeirense (sic) Armando Cortes Rodrigues, colaborador da revista Orpheu”.


 E a fantástica Proposta (*), depois aprovada por unanimidade, tinha sido previamente subscrita e apresentada ao selecto Parlamento luso, então presidido por Jaime Gama, pelos senhores deputados Guilherme Silva (PSD), Hugo Velosa (PSD), Ricardo Rodrigues (PS), Jorge Strecht (PS), Sónia Sanfona (PS), Diogo Feio (CDS-PP), Correia de Jesus (PSD) e Luís Fazenda (BE), assim sendo que, por entre mediocridades de formação e outras leviandades na função, lá aqueles paúlicos deputados do reino e ilhas adjacentes – “No seio negro e profundo/ Da noite, em treva dormindo”... – expatriaram o nosso bem lembrado Armando Côrtes-Rodrigues e a sua querida Violante...

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Publicado em "Diário dos Açores", 
(Ponta Delgada, 16.05.2015):



























Azores Digital:

























e RTP-Açores:
























Outra versão em "Diário Insular", 
(Angra do Heroísmo, 16.05.2015):