sexta-feira, novembro 27, 2015


Da Alma ao Supraceleste

__________________________________________________________________


Pode parecer metafísico o título desta Crónica – talvez entre poético, antropológico-filosófico, cosmológico e teológico, quando não (ou precisamente) porque o poderíamos ter recolhido ao deambularmos entre revisitações de memória, discursos e colóquios nos jardins e pátios da Academia e do Liceu da velha Grécia, ou então nos saborosos Comentários de S. Tomás às obras do Estagirita, ou até mesmo, já ao fechar do Século XVIII, calcorreando kantianas avenidas de Konisberg ao bater das horas no puro cômputo da Razão crítica, fossem aqui evocados patronos tão afeitos e dados a coisas como as que estão no Fédon, no Banquete, na República, no Timeu, no De Anima, no De Caelo et Mundo ou na Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels... –, mas não!

– A frase de abertura de hoje conjuga apenas numa expressão o título de duas fabulosas Crónicas com que abre (“Sobre a alma”) e fecha (“O Lugar Supraceleste”) o belíssimo livro O Lugar Supraceleste de Frederico Lourenço, publicado há pouco pela Cotovia (Lisboa, 2015).

Nascido em 1963, este notável classicista e professor da Universidade de Coimbra – tradutor premiado da Ilíada e da Odisseia – é também autor, entre outros, dos ensaios reunidos em Grécia Revisitada, da antologia Poesia Grega de Álcman a Teócrito, do romance Pode Um Desejo Imenso, dos contos de A Formosa Pintura do Mundo e do também recente O Livro Aberto: Leituras da Bíblia.



– Confessadamente sem ser obra de Filosofia ou de Teologia – diríamos nós, ao modo abstruso e pretensamente “académico” dos maçudos tratados delas (porquanto, ou melhor, porque delas o autor diz não ter “competência”, talvez porque a tenha de outro mais autêntico modo que é não tê-lo daquele trejeito) –, começa Frederico Lourenço por falar-nos da sua própria alma e do corpo que nela amigavelmente co-existe, na “limpidez autêntica da verdade, [como] em todos os nossos actos, gestos e palavras”, e assim em Deus, no Divino, na Música, na Pintura, no Amor, na Poesia, na Filiação e na Paternidade, na Dança, na Oração, etc., e em todos os superiores “patamares sucessivos” daquela sublime e iniciática experiência aprofundada que é afinal a da nossa humanidade no que ela tem e é de essencial e excelso, apesar e para além do que nela resta de maligno ou maléfico, como exemplarmente dizia o seu dilecto Schopenhauer perante o sofrimento animal ou animado dos seres vivos, face à crueldade desalmada do homem ainda sublunar...




As Crónicas reunidas em O Lugar Supraceleste foram inicialmente inseridas, entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2015, na “plataforma muito sui generis que é o Facebook”, explica Frederico Lourenço no seu Prefácio e esta obra que abre sob um aforismo do “fascinante” Livro Azul do nosso também predilectíssimo Wittgenstein (“O processo de falarmos connosco mesmos pode ser substituído por falarmos em voz alta ou então pela escrita”), nos seguintes termos:


– “À semelhança de muitas outras pessoas que vivem sós e, por esse motivo, passam a maior parte do seu tempo tendo os próprios pensamentos como principal companhia, tenho-me tornado nos últimos anos um cismador meditabundo diariamente dedicado a remoer sozinho ideias, leituras, manias, reminiscências e projecções fantasiosas sobre o futuro. Pode ser que se dê o caso de me pôr a falar sozinho em voz alta, mas por enquanto a escrita ainda surge aos meus olhos como o melhor canal de extravasamento para este tipo de cogitação supranumerária: pois há um momento em que o ‘disco’ mental está cheio e é preciso deslocar de lá a acumulação de cismações, de modo a criar espaço para novos pensamentos e para novos caminhos de reflexão.



“Transferir as minhas meditações do espaço fechado da minha mente para o espaço aberto de um livro acessível à leitura e crítica alheias foi uma viagem especial (...). Desses textos – que representam aquilo que actualmente vou pensando sobre a minha vida passada, sobre filosofia, música, literatura, sexo e outras coisas soltas – escolhi aqueles de que mais gosto e cuja leitura me pareceu poder interessar a um leque mais amplo de leitores”.




E depois, percorrendo então temas, acontecimentos, vivências, audições, gestos e hábitos do quotidiano, representações, relacionamentos pessoais e familiares, etc., retoma sempre o autor uma permanente reflexão como retorno a si e aos seus concomitantes actos de escrita, ele que tanto se fundiu e recriou traduzindo as linguagens e os sentidos das palavras tecidas no tear dos outros, ou entretecidas, sem retroversão possível, nas rocas, fusos e fios da nossa Língua, e no singular mundo existencial que a nossa radical finitude incarnada marca para o Bem e para o mal, tanto no que dizemos como no que silenciamos, ou tanto no que apenas esperamos que nos eleve a uma Verdade Outra, talvez a Única capaz de nos redimir do Tempo e das cruzes dos nossos caminhos esquivos, desesperados ou somente misteriosos:

– “A palavra ‘texto’ evoca pela sua etimologia a ideia de tecelagem, pelo que é frequente a analogia entre o escritor e o tecelão. (...) A vida faz sentido? Refiro-me em concreto à minha. É uma pergunta que me coloco desde sempre. Estarei aqui por alguma razão definida?”.



A estas, como a muitas outras questões que o seu livro testemunha ou levanta, Frederico Lourenço responde (procura animar...) com a mente e com o coração, com Goethe e ainda com Schopenhauer, por entre o desejo e a contemplação (“porque a lua é apenas objecto de contemplação, nunca objecto de desejo”):

– “É por isso – escreve assim o autor, aliás numa indisfarçável tonalidade simultaneamente kantiana e agostiniana... – que a contemplação da beleza inalcançável das estrelas nos acalma e eleva, ao passo que nos descentra e inquieta a contemplação da beleza teoricamente alcançável de corpos não celestes. Pensemos, em concreto, num corpo bem terrestre que momentaneamente nos atrai, mas que as circunstâncias tornam mais inalcançável do que a estrela mais remota da última galáxia. Que inquietação...”. Supraceleste!?

________________

Em "Diário dos Açores" (01.12.2015):



























NOTA: 
Uma primeira versão deste texto foi publicada em "Diário Insular" 
(Angra do Heroísmo, 28.11.2015):