sábado, dezembro 12, 2015


Uma Herança Sonhada
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Na arca de livros, papéis e outras peças documentais e particulares de família que me coube em sonhada herança receber de meu tio-bisavô Eduardo Ferraz de Meneses – nascido 70 anos antes de mim, ou seja em 1884 –, encontrava-se um Caderno com anotação de memórias, um pequeno Álbum com fotos e postais, e um Maço (pacientemente alinhado e atado com cuidadoso nastro) contendo diversos escritos seus (Bilhetes e Cartas), sendo alguns destes uma cópia, por vezes reconhecível ou aparentemente em rascunho e outras esboçadas versões, de textos enviados ou apenas hipoteticamente mandados e/ou supostamente recebidos de amigos e familiares com quem se correspondeu ao longo desses anos tão pessoalmente cruciais e historicamente decisivos como aqueles que decorreram, e do modo como foram vividos por ele, desde a proclamação da República até aos finais da II Grande Guerra e à sua própria morte prematura, em 1947.




Todavia – para além daquelas gravuras e dos muitos livros da sua rica e variada biblioteca particular (romances, contos, novelas, biografias históricas, tratados filosóficos, médicos e esotéricos, dois volumes com Instruções maçónicas, publicações científicas, manuais técnicos de Metrologia, hagiografias, dicionários, etc. –, lá estava ainda aquele tal fabuloso embrulho de endereçadas e/ou recebidas missivas como o mais apelativo legado (talvez porque o seu misterioso conteúdo estivera sujeito durante longo tempo a total restrição de divulgação pública, como que em quarentena...), – e tanto assim que nem agora, cumprida a respectiva cláusula testamental, poderão vir as respectivas peças a granjear integral publicação (por prudencial dever de razão futurível ou de reminiscência imaginária, quando não por razões que o simples bom senso e a contenção de linguagem mais aconselham...).


– Ora segundo fui apurando, tais escritos (os que sobreviveram, pois muitos foram destruídos por ele próprio), chegaram do ou foram enviados para o Brasil (Rio de Janeiro e Bahia), Macau, Lisboa e Porto, mas também de outras ilhas (S. Miguel, Santa Maria, Faial, S. Jorge e Flores), e da Terceira (v.g. a Agualva, de onde os meus ramos maternos eram ambos originários; Angra; Porto Martim, onde vivia o seu amigo Sousa Júnior, Cabo da Praia e Praia da Vitória, lugares que foram os derradeiros da sua residência).

Mas a todos esses documentos meu tio havia-os claramente arquivado e quase escondido de olhares curiosos, furtivos ou indiscretos (quando não até denunciadores ou comprometedores de pessoas, ideias e realidades, e bem a par de ficções e factos contemporâneos e próprios daqueles sítios e do imaginário da nossa antiga Vila vilória...), e certamente também sem possível conhecimento ou expressamente manifestada vontade lógico-temporal de vir a ser eu o fiel depositário de tudo isso (como se deduzirá das cronologias implicadas nesta diegese e na dita epistolografia).


 – E depois, não há a mínima dúvida que fora intencional aquela reserva de segredos em tão recônditos compartimentos da sua alma, como o prova o seu cuidadoso arrumo na mítica escrivaninha da nossa casa da Praia, conforme um dia, quase a medo, por mão de minha avó, me foi dado desvendar e conhecer em parte, mas com a promessa dessa dita herança, então apenas legado futuro (ou seja, da mesma revelação a que me reporto aqui), sob compromisso de sigilo que honrei sempre, permanecer absolutamente inédita até à presente e propícia data!

De resto, a existência do quadro (in)temporal dessas memórias da Praia – excepção feita à evocada arca, e mais ainda à restante epistolografia trazida agora a esta confidência narrativa – já fora aliás por mim contada num texto sobre o “Café do Cipriano” que publiquei no livro Heranças da Terra (Praia da Vitória, 2000), quando ali o evoquei também num cenário de recordações para inserção na galeria dos espaços e dos tempos simbólicos que cifram as nossas mais reais cartografias e temporalidades, assim:


– Em cima, em casa, minha avó Maria ia costurando um vestido de noiva para a cidade, com a tia do tio Domingos à janela do quarto grande rezando e olhando o nosso oratório conventual, dividida entre o seu recato e um prezamento todo subtil na atenção aos movimentos que chegavam da outra Loja aonde meu tio Eduardo ainda experimenta o alambique, as suas curiosas iniciações na dialéctica das operações homeopáticas e os afinos finais nas peças das suas aferições camarárias.

Ali ao lado, na mesa da velha escrivaninha, aguardava resposta a apostila versejada com que o seu amigo Doutor Sousa Júnior o brindara, havia dias, lá na catedrática venda do Porto Martim, em paga do encaixe pela provocadora multa de aposta feita à balança do balcão, tal como aquele bisturiado texto que o nosso vizinho Armando Santos (poeta de rasgo, primo de Nemésio), me havia de recriar, recitando, absolutamente idêntico ao original, tantos anos depois, em Lisboa, também ele revolto no sonho das Ilhas, naquele distante e sombrio bairro labiríntico da capital, de pé e teatral no banco baixo da sua sala, como que visionário e no mais perfeito virtuosismo praiano:


Ó meu amigo Eduardo, / Ó Ferraz da cambitola, / Vinte paus vão ter contigo, / Idos da minha sacola! // São “ordes”, me dirás tu; / Sim, são “ordes” mas do [...]. // Medidas, mando-te seis; / Às outras, tempo as levou...

A tão assombroso espólio desse meu tio-bisavô – mais precioso do que as suas queirosianas bengalas de verdadeiro e rijo pau-brasil encastoadas com românticas mãos de prata boémia... –, valendo o texto neste século e a pena no passado, voltarei doravante ocasionalmente, ao sabor destes cíclicos tempos e das espantosas afinidades de destino que neles moram, como em dramático crepúsculo ou esperançosa aurora – quem o saberá ao certo? – de outro ano de vida participada...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 12.12.2015):





























Primeira versão (parcial) em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12.12.2015):





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