A Semântica dos Afectos
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1. Na primeira apreciação ao resultado das Presidenciais, o
secretário-geral do PCP fez afirmações que tiveram o condão de provocar comentários
repetidos em cadeia e juízos interpretativos por uma enfiada de pressurosos “analistas”,
jornalistas em praça, historiadores com tarimba e preceptores do espaço
público, a par de articulistas e politiqueiros de quadrantes menores.
– Disse Jerónimo: “Nós podíamos
apresentar um candidato ou uma candidata assim mais engraçadinha
(...). Em que fosse fácil, com um discurso
ajeitadamente populista (...), aumentar o número de votos. São opções e eu
não quero criticá-las. Mas (...) nós partimos sempre para estes combates, onde
se travam combates de ideias, combates
com ideias políticas, com princípios”.
Ora onde de facto se referiu “candidato”
ou “candidata” (embora com a
adjectivação caindo apenas no singular feminino) muitos quiseram ouvir as finezas e os trejeitos criticados (bem notórios no identificável pendor populista, ilusionista e até circense de
certas actuações histriónicas mas sem substância...) como se visando o BE,
apesar do franco sorriso, entre surpreendido
e embaraçado, de Edgar, talvez a sonhar, em indubitável esperança, com aqueles horizontes sérios – quem disse que “impossíveis”? – de vida e sociedade novas, que ele, sincero mas visionário, recolheu e citou
de Ernst Bloch, sem que ninguém o tivesse sequer retido e relevado nos púlpitos
do PCP...
– Ao menos Catarina, Marisa e Mariana,
inteligentes e graciosas, mostraram enxergar os (reais) alvos, sem que tivesse
sido necessário a um calejado e sofrido Jerónimo vir desculpar-se, humilde no
recuo e na elucidação semântica daquele seu inusitado sentido de humor...
2. É claro que no meio de todas as gramáticas da desgraça que o PCP arrecadou neste combate – e que,
depois daquela improvisada, dúbia, desajeitada e ao final pouco engraçada argumentação de Jerónimo, o Comité Central do seu
partido viria precisar em termos mais sociopoliticamente objectivos e de
análise inter-partidária... –, não pode deixar de reconhecer-se que, para a
vitória do candidato Marcelo, em muito contribuiu a divisão gerada (quando não promovida...)
entre e pelos diferentes sectores da chamada “esquerda”, a começar
(evidentemente!) pelo PS.
– E de facto, cindido entre grupos e facções,
tendências ideológicas (amiúde sem réstia de perspectiva ou consistência
estratégica, teórica, prática e ética), oscilando ao sabor de intriga e
vinganças de grupelhos tácticos (com
manobras de navalhada à esquina dos seus permanentes e recorrentes interesses
pessoais, profissionais e de carreirismo institucional), o PS mostrou-se incapaz de definir, assumir e assegurar
uma posição clara perante as várias candidaturas e candidatos, à espera que uma
distante e mirabolante “segunda volta” lhe permitisse então, em salto oportunista
e hipócrita, ir cavalgar o cavalinho, jumento ou mula da vitória, deixando, até
aí, lavadas as mãos, com o sacrifício dos outros entregues às sortes e roletas
da arena político-eleitoral, no encarniçamento da refrega (mesmo que entre
“camaradas” e confrades, velhos cúmplices ou recentes e supostas irmandades de
ideal “de esquerda democrática”, quiçá apelidadas de “socialistas”)!
Todavia, cabe notar em abono da
verdade, que nem todos os próceres do PS se comportaram levianamente assim, e
muitos alinharam visivelmente com candidaturas (formalmente ou por herança e
discurso históricos) vindas da área da Esquerda, como foi o caso de César
perante e com Sampaio da Nóvoa – pessoa íntegra
(aliás tal como Edgar, Marcelo e Marisa!), que reuniu adesões autênticas,
sinceras e coerentes, mas que calculou mal os condicionalismos ancestrais, “timings”, projectos e programas dos
seus nobres ideais e ideários de Justiça e de Liberdade, obviamente,
avaliando mal (digo, sobreavaliando)
o estofo ético-político de alguns dos
seus debuxados “compagnons de route”, como penosamente se viu no início, a meio
e, com pequeno interregno penúltimo, na própria noite dos fatídicos desenlaces, onde alguns, antes tão “convictos apoiantes”
(?), logo meteram a viola no armário do Largo do Rato, escondendo-se com as encolhidas
caudas entre as acostumadas pernas, pisgando-se, rasteiros e lépidos, para os
distantes e balofos cadeirões, cobertores e confortáveis rotinas de secretária,
cama e mesa, com as suas genuínas motivações e individualíssimas crenças
“democráticas e socialistas”...
3. Naturalmente que neste desde cedo previsível quadro, a caminhada de Marcelo tinha de fazer-se com
segurança, naturalidade vencedora e indesmentível mérito, apesar das incertezas e oscilações da sua
personalidade política, das afinidades e hipotecas partidárias (que conseguiu
alijar ou obscurecer), mas também com notável capacidade empática (mediaticamente catalisada anos e anos a
fio), e (enfim...) com uma espécie de carisma
ou aura popular (a vários títulos
sociologicamente indicativa e sintomática) que lhe advém,
conjugadamente, por berço, família, escola, estatuto académico, docência universitária,
cultura, percurso social-democrata, catolicismo (algo beato, mas não
clericalista), talento jornalístico, inteligência, auto-confiança, e até com o
tal à-vontade mágico que lhe
consentiram, todos em conjunto, ser simultaneamente engraçadinho no teatro de
massas, fazer micro-retórica neutra,
ser ajeitadamente populista,
comunicativo e consensualista, para fechar em apoteose e encenar entradas triunfais, assumindo solenes poses de estadista, como naquela
messiânica representação de sacralidade emblemática na Faculdade de
Direito de Lisboa, onde nem É a Hora
pessoana faltou!
– Tão populista, efectivamente, e engraçado
este novo Presidente que, conseguindo ir à tarde à Festa do Àvante, poderá, se quiser, na noite do mesmo dia, tentar
reavivar (actualizar e renovar na
continuidade...) antigas lições jurídico-constitucionais e conversas
mediático-familiares do seu homólogo padrinho, apesar das óbvias e profundas
diferenças entre os tempos e modos de
ambos e do País, porém sem esquecer as potenciais
semelhanças e os impasses históricos da profunda
crise em que a vida portuguesa, europeia e internacional estão mergulhadas,
com a recorrente mediocridade e cobardia
da classe política e das instituições vigentes duplamente condicionando a
próxima década do Mundo para o bem e para
o mal, com as promessas e os limites revertíveis
das nossas específicas (des)graças concretas, (des)afectos e (i)mutáveis semânticas,
já reactivados hoje e mais ainda a partir do Carnaval...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 02.02.2016):