quinta-feira, abril 14, 2016


Imaginário Presidencial 

e Mitos Portugueses


É sabido que o nosso recém-eleito Presidente da República sempre captou e cultivou, com predilecção comunicacional e talento estratégico, as múltiplas dimensões simbólicas das palavras e dos gestos, – selectiva e intencionalmente accionadas por ele desde há anos e nos mais diversos contextos pessoais e sociais, privados e públicos, individuais e institucionais... 


– E foi assim logo a partir das daquelas suas tão famosas análises no “Expresso” (naquilo que evidentemente tinham ou reflectiam de factos objectivos e empiricamente constatados, e no que entreteciam ou arquitectavam em e como hábeis construtos imaginativos...), modelos bem lembrados e que, pese embora a passagem dos tempos, modos e vontades, persistem ainda no seu natural e estudado jeitos de formar argumentário e gizar acção, exprimir crenças, formular valores e propor ideais. 

De resto, tal pendor simbólico-actuante de Marcelo Rebelo de Sousa – sobremaneira vindo a acentuar-se nos últimos tempos, nas suas atractivas prestações radiofónico-televisivas e no encaminhamento tendencial (às vezes tendencioso) dessas sugestivas e consensualizantes exibições e peças para um projecto político autónomo que, enfim e por fim, se concretizou na almejada e inquebrantável resolução da sua candidatura vitoriosa a Belém – tornou a revelar-se paradigmaticamente presente e vivo na suas inaugurais falas e movimentos como Chefe de Estado, nomeadamente na alocução à Assembleia da República durante a cerimónia de Tomada de Posse, nas pontuais declarações à Comunicação Social e nas seguintes visitas ao Vaticano/Santa Sé Santa Sé e a Espanha...


É claro que o recurso a teses, narrativas, dimensões figuradas e símbolos (muitos deles, quando não todos) dotados de ambivalência ou plurivalência de significado, nunca é isento de riscos, na medida em que essa selectiva escolha e o seus correspondentes manuseamentos estratégicos (eles próprios real ou potencialmente míticos ou até mesmo mistificantes...) pressupõem, veiculam e transportam uma particular e pré-determinada interpretação convencionada de factos e factores cuja suposta (sempre relativa ou correlativa) “verdade” (enquanto mensagem crítica e historicamente situada...) é variável, quando não, e por isso mesmo, internamente conflitual, ou intrinsecamente conflituante, nos respectivos conteúdos, vigências e alcances!


– Ora apesar do honroso e indubitável sentimento nacional, foi o caso das sucessivas invocações patrióticas (e das razões políticas?) de Ourique, Mouzinho (ainda recitado no discurso às Forças Armadas), Lobo Antunes, Torga e da Bula Manifestis probatum... Para além, naturalmente das cerimónias de deposição de flores nos túmulos de Camões e de Vasco da Gama, cujas conjugações de sentido e de significado com as primeiras ainda mais acentuam as suas mútuas relevâncias...
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Em "Diário dos Açores",
Ponta Delgada, 09.04.2016:






sexta-feira, abril 01, 2016


Os Ditados do Tempo
em Fernando Aires
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Numa feliz iniciativa da editorial Opera Omnia (Guimarães, 2015), chegou-nos recentemente o livro Era uma vez o Tempo – Diário (1982-2010) de Fernando Aires. 


Prefaciada por Eugénio Lisboa – com posfácio de José Leon Machado e coordenação de Maria João Ruivo Sousa Franco –, esta volumosa obra reúne os Diários (I a VI) daquele escritor nascido e falecido em Ponta Delgada (1928-2010), estimado professor, jornalista e cronista que também publicou uma novela (A Ilha de Nunca Mais, 2000), contos – Histórias do Entardecer, 1988, “Prémio Nunes da Rosa 1988”; Memórias da Cidade Cercada (1995) – e ensaios – v.g. José do Canto – Subsídios para a História Micaelense (1820-1898); Faria e Maia e Antero (1961); Afonso Chaves (1982); Alice Moderno – A Mulher e a Obra (1985), e Delinquência e Emigração em S. Miguel na 1.ª metade do séc. XIX (1988).



– Com ligeireza tem às vezes a diarística (de facto nem sempre formal ou modelarmente praticada de maneira equivalente) sido vista como género, subgénero ou estilo menor (porque julgada demasiado “intimista”, “fechada” ou “auto-referenciada”), enquanto narrativa autobiográfica (que também é).


 Porém, cronologicamente sequenciado e pautado por registos de quotidianos singularmente experimentados, temporalmente revividos, subjectivamente interiorizados e selectivamente reflectidos, sempre os Diários, como salientaram Carlos Reis e Ana Cristina Lopes nos seus estudos narratológicos – e assim tão apelativa e admiravelmente se dá nesta excepcional obra –, revelam uma complexa fragmentação diegética e uma tendência para o confessionalismo (aqui simultaneamente crítico, poético e vital), ambos muito apelativos e exigentes...


 – Tenho bem presente a delicada figura, a sensível personalidade e a notável obra de Fernando Aires, com quem partilhei saudosos espaços de convívio cultural e de docência na Universidade dos Açores, e de quem releio hoje o que dele registaram amigos, colegas, companheiros e críticos (Almeida Pavão, Vamberto Freitas, Urbano Bettencourt, João de Melo, Nuno Costa Santos, Eduíno de Jesus, Assunção Monteiro, Adília Araújo...).


George Monteiro, no JL de 11 de Maio de 1994, já havia salientado que a obra de Fernando Aires se encontrava, na “muita boa companhia” de outros “autores de diários, concebidos e produzidos para publicação”, e no mesmo ano Eugénio Lisboa não hesitava em nomear o escritor micaelense, a par de Torga, Manuel Laranjeira, Irene Lisboa, Florbela, Régio, Vergílio Ferreira e Marcello Duarte Mathias, entre muitos outros certamente, como senhor de “um dos mais belos e sensíveis diários em língua portuguesa”, acentuando também agora no seu Prefácio:

– “A escrita deste diário é discreta mas quase sempre sedutora, eficaz e, não raro, reveladora de um cúmulo da arte de escrever. (...) Fernando Aires perscruta os segredos profundos da língua e da escrita e fá-lo, por si próprio, sem se agachar nem a escolas nem a modas. (...) O diário é rico de meditações, de percepções, de assombros que surgem no decorrer dos dias e que o escritor vai registando com pathos variado. O efémero da vida – o sic transit... surge de quando em quando, ou porque morre um amigo, ou, simplesmente, porque a evidência disso fulge inesperada e imperiosamente e magoa a alma assim visitada: ‘Se a finalidade da vida é apenas e só, viver, oh, vida que tão depressa te cumpres em cinza, pó e nada! Como dói a tua pressa em cada um que se cumpre e não voltará jamais a cumprir-se. Jamais. Jamais’. Raul Brandão não andará longe”.



– A abrir este livro, em “Nótula Biobibliográfica”, Maria João Ruivo Sousa, justamente assinala os percursos de Fernando Aires (seu pai), sinalizando a sua ligação às tertúlias literárias e jornalísticas de meados do século (com Eduíno de Jesus, Jacinto Soares de Albergaria, Fernando de Lima, Eduardo Vasconcelos Moniz e outros condiscípulos, “com quem viria a constituir, em 1946, o Círculo Literário Antero de Quental, que, pela sua actividade literária, contribuiu para a divulgação do Modernismo na ilha de S. Miguel:

“Os primeiros escritos deste grupo começaram a circular na imprensa de Ponta delgada a partir de então, primeiro na página literária do Diário dos Açores, coordenada por Oliveira San-Bento, e na do Correio dos Açores, coordenada por Ruy Galvão de Carvalho e Diogo Ivens, e logo depois no semanário A Ilha, dirigido por José Barbosa. Fernando Aires publicou nesses jornais alguns artigos e pequenos contos, assim como os primeiros parágrafos de um diário íntimo”.


– Ora é por tudo isso (mesmo atendendo ao conhecido património diarístico já existente) que estes Diários de Fernando Aires e as suas fascinantes leituras geram, ou podem suscitar, prazer espiritual e marcam nova, genuína e ímpar presença “salpicada de humanidade e ternura, paixão e compaixão” (como bem sentiu e exprimiu o Onésimo Almeida), seja por quanto neles se entretece e concretiza de fino discurso literário (dramaticamente dito, sincero, compartilhado, catártico, metamórfico e redentor...), seja pelos específicos mundos, incisos filosóficos, vivências histórico-culturais, memórias geo-humanas, amores e projecções de uma ditada existência insulada, porém transcendentalmente oceânica, na qual Vida, Morte, Passado, Destino e Esperança coabitam em rostos, terras, águas e palavras feridas nos enigmas do Tempo presente e dulcificadas na saudade do Porvir:


 Ponta Delgada, 18 de Dezembro de 1982: O Outono quase no fim. Um céu liquefeito como certos olhos azuis rasos de água. A luz pousando na terra sem ruído. Depois da manhã cheia de horas intermináveis e de gestos obrigatórios, este sabor de vida. Este pão tostado ao calor da intimidade. Esta migalha de tempo tantas vezes adiada.

(...) Lisboa, 13 de Maio de 1988: Só o que é fugaz conserva fascínio – assim como a vida que, se não fosse a morte, não seria o desejo que é”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 02.04.2016):



























Outras versões __________________________

Em "Azores Digital":

























RTP-Açores:




























e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 02.04.2016):