Um Arquivo Secreto,
Romanesco e Escandaloso
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Publicada pela Editora Esfera do Caos
(Lisboa, 2011), a obra Arquivo Secreto do
Vaticano, Expansão Portuguesa – Documentação, conforme referi na altura
aqui no "Diário dos Açores" (17.12.2011) – disponível em http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2011/12/do-fascinio-dos-arquivos-secretos-do.html
e ainda recentemente retomei no "Diário Insular" (18.12.2015) – reúne peças sumariadas do Fundo
da Nunciatura de Lisboa, patentes no “Arquivo Secreto do Vaticano”
e relativas ao período da Expansão Portuguesa (ao qual podemos chamar
de “primeira globalização do Cristianismo na sua forma confessional católica
desde a modernidade”). Sob coordenação de José Eduardo Franco (JEF), todo esse excepcional
Repertório constituía logo, e mais – como então salientei – tem vindo
a constituir indispensável instrumento para quem quiser estudar o
Catolicismo em Portugal e no Mundo: – Assim, ler essas fontes documentais, identicamente salientava JEF, é encetar “uma
aventura de compreensão que deve ser, em primeiro lugar, a missão da construção
da história como revisitação do passado, guiada por uma insistente interrogação”.
– Ora do Tomo I dessa obra, originalmente relativo à Costa Ocidental de África e Ilhas Atlânticas, acaba de fazer-se, como
Volume Extraordinário do N.º 65
(2015) do Boletim Eclesiástico dos Açores,
um Suplemento (485 páginas) propriamente relativo aos Açores (1691-1919). A
edição-selecta, intitulada A Diocese de
Angra no Arquivo Secreto do Vaticano, integra – lamentavelmente sem
qualquer Índice remissivo... – 6115 entradas (datas-limite:
14.08.1813-11.08.1915), nelas constando, como subscreve o seu Director (Hélder
Fonseca Mendes), “matéria abundante que roça o romanesco e até o escândalo.
Tudo com nomes de pessoas concretas marcadas pelo conflito interior de quem
numa altura da vida toma um compromisso para sempre, mas depois altera-se a
vontade, e às vezes, com o amadurecimento ou a falta dele dão origem a um
conflito exterior entre os direitos da liberdade individual e as normas que a
limita. As transformações sociais também transparecem no caminho que leva ao
laicismo e ao secularismo.
“Os conflitos entre Bispos e o
Cabido também transparecem. É impressionante a quantidade de energias que se
gasta em torno de quezílias internas (...). A mobilidade nas ilhas com a
entrada de estrangeiros leva a que aumente o número de pedidos de dispensa de disparidade
de culto. As igrejas reformadas entram em acção também nos Açores”.
– A imagem da sociedade açoriana
e da Igreja que aqui está, com os seus prelados, clérigos, religiosos, etc.,
tal como torna a ressaltar da releitura de A
Diocese de Angra no Arquivo Secreto do Vaticano nem sempre é muito
lisonjeira, deplorando, por exemplo, o Bispo D. Estêvão, em 1644, “a falta de
ministros com qualidades suficientes para pregarem a palavra divina, apontando
como causas para esta situação a imoralidade de alguns, a decadência de
conhecimentos teológicos e educação eclesiástico-religiosa”, a par de
“irregularidades praticadas nas Ordens”, “desacatos”, “roubos”, “públicos(s)
escândalo(s) em concubinato(s)”, freiras “enclausuradas no distrito de Angra
(...) vivendo a maioria irregularmente e algumas em grande escândalo,
encontrando-se situações semelhantes em S. Miguel e na Horta”, por entre autos
e libelos, acusações, seduções, fugas, prisões, anátemas confessionais (v.g.
antiprotestantes e antijudaicos...), excomunhões, censuras, conluios
institucionais, etc., etc.
De resto, já em Outubro de 2011,
por ocasião da apresentação da edição integral referida, D. Manuel Clemente
(actual Cardeal Patriarca de Lisboa) logo salientou a importância, recursos
e potencialidades que uma obra desta natureza continha, com a
particularidade – para nós indicativa,
como escrevi antes – de se ter debruçado sobre a problemática conflitual (para ele dilecta e da qual é reputado
especialista) do liberalismo, do primeiro republicanismo, do movimento católico
português e das suas paradigmáticas configurações, ecos e ilustrações nas
nossas ilhas, para tanto respigando, um exemplo documental de “sete anos antes
da revolução liberal”, onde um prelado já dava notas de um outro tempo, que então chegava, ao referir “apreciar a
religiosidade das pessoas do campo em oposição à cidade, onde diz que residem
os libertinos e os maçons”, e bem assim com muitas outras e preciosas
informações e pistas que ali variada e abundantemente constam... E isto mesmo
fora ainda salientado por Arnaldo Espírito Santo (coordenador, com Manuel
Saturino Gomes, do primeiro tomo da referida obra) ao escrever o seguinte:
– “Tomemos como caso notável a
história regional e local das comunidades açorianas. Das centenas de pedidos de
dispensa de impedimentos canónicos do matrimónio entre familiares,
consanguíneos e afins, ressalta a verificação de que era restrito, no século
XVII, o número de famílias do arquipélago, em grande parte descendentes
daquelas que iniciaram o povoamento das ilhas. A prática religiosa é intensa. A
enquadrar as comunidades urbanas e com uma grande inserção entre elas, exercem
o seu fascínio os conventos e os institutos de várias famílias religiosas.
Muitos e muitas acorrem a engrossar as suas fileiras. Seja por inadaptação ou
por insatisfação, chovem os pedidos de mudança de lugar, uns alegando desejo de
maior austeridade, outros denunciando dificuldades pontuais de convivência e
conflitos pessoais. Uma abadessa solicita a exoneração do cargo; uma freira, já
idosa, pretende licença para ter uma criada. A autoridade eclesiástica
competente vai despachando conforme os casos, ora acedendo aos pedidos, ora
recusando para não criar precedentes.
“Há matéria abundante que roça o
romanesco. Uma freira foge do convento para Inglaterra com um marinheiro
inglês. Outra salta o muro, dizem que com conivência do confessor. Um escândalo
que fez correr rios de tinta e de documentos”…, e assim por diante,
para encantadoras incursões e revisitações socio-históricas, públicas e
privadas, culturais e existenciais, pelos caminhos do passado da vida nos
Açores, no entrecruzamento de gentes, mentalidades e destinos do Mundo.
– Uma obra fascinante, portanto, torno
a dizer, e plena de atractivos inter e pluridisciplinares, indispensável nas
estantes pessoais e bibliotecas e arquivos regionais, para estudo, investigação
e reprodutivo conhecimento crítico
daquilo que fomos, e do muito que, de algum modo, ainda nos molda e condiciona hoje…
E depois, se a designação de
“Arquivo Secreto do Vaticano” – aliás já
acessível hoje até ao Pontificado de Bento XV (1914-1922) – inclina
realmente o leitor para “um mundo subterrâneo, obscuro, perigoso, duvidoso,
inacessível”, pode também criteriosamente contribuir com este Catálogo (cadastro...) “para que, de futuro, os
investigadores, possam arquitectar e construir uma [outra?] História da Igreja
nos Açores”, sem mitos ou novas mistificações, quiçá renovada espiritual e socialmente, e muito mais verdadeiramente fiel aos ensinamentos do
seu Mestre...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 21.05.2016):