terça-feira, fevereiro 02, 2016


A Semântica dos Afectos
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1. Na primeira apreciação ao resultado das Presidenciais, o secretário-geral do PCP fez afirmações que tiveram o condão de provocar comentários repetidos em cadeia e juízos interpretativos por uma enfiada de pressurosos “analistas”, jornalistas em praça, historiadores com tarimba e preceptores do espaço público, a par de articulistas e politiqueiros de quadrantes menores.
  
 O pomo da indignação, como é sabido, de tão zelosos cavalheiros-guardiães e feminis-guardiãs da “honra” feminina – em coro de proverbial e simétrico “anti-machismo” – foram as palavras que transcrevo e sublinho, até porque apareceram amiúde truncadas, quando não arbitrariamente sinonimizadas para intencionais apertões de sentido, conforme calhou ao argumentário de tão desobrigados actores (decerto tenazes defensores de todos os direitos e deveres de todas as mulheres)!

– Disse Jerónimo: “Nós podíamos apresentar um candidato ou uma candidata assim mais engraçadinha (...). Em que fosse fácil, com um discurso ajeitadamente populista (...), aumentar o número de votos. São opções e eu não quero criticá-las. Mas (...) nós partimos sempre para estes combates, onde se travam combates de ideias, combates com ideias políticas, com princípios”.



Ora onde de facto se referiu “candidato” ou “candidata” (embora com a adjectivação caindo apenas no singular feminino) muitos quiseram ouvir as finezas e os trejeitos criticados (bem notórios no identificável pendor populista, ilusionista e até circense de certas actuações histriónicas mas sem substância...) como se visando o BE, apesar do franco sorriso, entre surpreendido e embaraçado, de Edgar, talvez a sonhar, em indubitável esperança, com aqueles horizontes sérios – quem disse que “impossíveis”? – de vida e sociedade novas, que ele, sincero mas visionário, recolheu e citou de Ernst Bloch, sem que ninguém o tivesse sequer retido e relevado nos púlpitos do PCP...

– Ao menos Catarina, Marisa e Mariana, inteligentes e graciosas, mostraram enxergar os (reais) alvos, sem que tivesse sido necessário a um calejado e sofrido Jerónimo vir desculpar-se, humilde no recuo e na elucidação semântica daquele seu inusitado sentido de humor...



2. É claro que no meio de todas as gramáticas da desgraça que o PCP arrecadou neste combate – e que, depois daquela improvisada, dúbia, desajeitada e ao final pouco engraçada argumentação de Jerónimo, o Comité Central do seu partido viria precisar em termos mais sociopoliticamente objectivos e de análise inter-partidária... –, não pode deixar de reconhecer-se que, para a vitória do candidato Marcelo, em muito contribuiu a divisão gerada (quando não promovida...) entre e pelos diferentes sectores da chamada “esquerda”, a começar (evidentemente!) pelo PS.

– E de facto, cindido entre grupos e facções, tendências ideológicas (amiúde sem réstia de perspectiva ou consistência estratégica, teórica, prática e ética), oscilando ao sabor de intriga e vinganças de grupelhos tácticos (com manobras de navalhada à esquina dos seus permanentes e recorrentes interesses pessoais, profissionais e de carreirismo institucional), o PS mostrou-se incapaz de definir, assumir e assegurar uma posição clara perante as várias candidaturas e candidatos, à espera que uma distante e mirabolante “segunda volta” lhe permitisse então, em salto oportunista e hipócrita, ir cavalgar o cavalinho, jumento ou mula da vitória, deixando, até aí, lavadas as mãos, com o sacrifício dos outros entregues às sortes e roletas da arena político-eleitoral, no encarniçamento da refrega (mesmo que entre “camaradas” e confrades, velhos cúmplices ou recentes e supostas irmandades de ideal “de esquerda democrática”, quiçá apelidadas de “socialistas”)!



Todavia, cabe notar em abono da verdade, que nem todos os próceres do PS se comportaram levianamente assim, e muitos alinharam visivelmente com candidaturas (formalmente ou por herança e discurso históricos) vindas da área da Esquerda, como foi o caso de César perante e com Sampaio da Nóvoa – pessoa íntegra (aliás tal como Edgar, Marcelo e Marisa!), que reuniu adesões autênticas, sinceras e coerentes, mas que calculou mal os condicionalismos ancestrais, “timings”, projectos e programas dos seus nobres ideais e ideários de Justiça e de Liberdade, obviamente, avaliando mal (digo, sobreavaliando) o estofo ético-político de alguns dos seus debuxados “compagnons de route”, como penosamente se viu no início, a meio e, com pequeno interregno penúltimo, na própria noite dos fatídicos desenlaces, onde alguns, antes tão “convictos apoiantes” (?), logo meteram a viola no armário do Largo do Rato, escondendo-se com as encolhidas caudas entre as acostumadas pernas, pisgando-se, rasteiros e lépidos, para os distantes e balofos cadeirões, cobertores e confortáveis rotinas de secretária, cama e mesa, com as suas genuínas motivações e individualíssimas crenças “democráticas e socialistas”...


3. Naturalmente que neste desde cedo previsível quadro, a caminhada de Marcelo tinha de fazer-se com segurança, naturalidade vencedora e indesmentível mérito, apesar das incertezas e oscilações da sua personalidade política, das afinidades e hipotecas partidárias (que conseguiu alijar ou obscurecer), mas também com notável capacidade empática (mediaticamente catalisada anos e anos a fio), e (enfim...) com uma espécie de carisma ou aura popular (a vários títulos sociologicamente indicativa e sintomática) que lhe advém, conjugadamente, por berço, família, escola, estatuto académico, docência universitária, cultura, percurso social-democrata, catolicismo (algo beato, mas não clericalista), talento jornalístico, inteligência, auto-confiança, e até com o tal à-vontade mágico que lhe consentiram, todos em conjunto, ser simultaneamente engraçadinho no teatro de massas, fazer micro-retórica neutra, ser ajeitadamente populista, comunicativo e consensualista, para fechar em apoteose e encenar entradas triunfais, assumindo solenes poses de estadista, como naquela messiânica representação de sacralidade emblemática na Faculdade de Direito de Lisboa, onde nem É a Hora pessoana faltou!


 – Tão populista, efectivamente, e engraçado este novo Presidente que, conseguindo ir à tarde à Festa do Àvante, poderá, se quiser, na noite do mesmo dia, tentar reavivar (actualizar e renovar na continuidade...) antigas lições jurídico-constitucionais e conversas mediático-familiares do seu homólogo padrinho, apesar das óbvias e profundas diferenças entre os tempos e modos de ambos e do País, porém sem esquecer as potenciais semelhanças e os impasses históricos da profunda crise em que a vida portuguesa, europeia e internacional estão mergulhadas, com a recorrente mediocridade e cobardia da classe política e das instituições vigentes duplamente condicionando a próxima década do Mundo para o bem e para o mal, com as promessas e os limites revertíveis das nossas específicas (des)graças concretas, (des)afectos e (i)mutáveis semânticas, já reactivados hoje e mais ainda a partir do Carnaval... 
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 02.02.2016):