sexta-feira, maio 20, 2016


Um Arquivo Secreto,
Romanesco e Escandaloso
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Publicada pela Editora Esfera do Caos (Lisboa, 2011), a obra Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa – Documentação, conforme referi na altura aqui no "Diário dos Açores" (17.12.2011) – disponível em http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2011/12/do-fascinio-dos-arquivos-secretos-do.html e ainda recentemente retomei no "Diário Insular" (18.12.2015) – reúne peças sumariadas do Fundo da Nunciatura de Lisboa, patentes no  “Arquivo Secreto do Vaticano”  e relativas ao período da Expansão Portuguesa (ao qual podemos chamar de “primeira globalização do Cristianismo na sua forma confessional católica desde a modernidade”). Sob coordenação de José Eduardo Franco (JEF), todo esse excepcional Repertório constituía logo, e mais – como então salientei –  tem vindo a constituir indispensável instrumento para quem quiser estudar o Catolicismo em Portugal e no Mundo: – Assim, ler essas fontes documentais, identicamente salientava JEF, é encetar “uma aventura de compreensão que deve ser, em primeiro lugar, a missão da construção da história como revisitação do passado, guiada por uma insistente interrogação”.



– Ora do Tomo I dessa obra, originalmente relativo à Costa Ocidental de África e Ilhas Atlânticas, acaba de fazer-se, como Volume Extraordinário do N.º 65 (2015) do Boletim Eclesiástico dos Açores, um Suplemento (485 páginas) propriamente relativo aos Açores (1691-1919). A edição-selecta, intitulada A Diocese de Angra no Arquivo Secreto do Vaticano, integra – lamentavelmente sem qualquer Índice remissivo... – 6115 entradas (datas-limite: 14.08.1813-11.08.1915), nelas constando, como subscreve o seu Director (Hélder Fonseca Mendes), “matéria abundante que roça o romanesco e até o escândalo. Tudo com nomes de pessoas concretas marcadas pelo conflito interior de quem numa altura da vida toma um compromisso para sempre, mas depois altera-se a vontade, e às vezes, com o amadurecimento ou a falta dele dão origem a um conflito exterior entre os direitos da liberdade individual e as normas que a limita. As transformações sociais também transparecem no caminho que leva ao laicismo e ao secularismo.

“Os conflitos entre Bispos e o Cabido também transparecem. É impressionante a quantidade de energias que se gasta em torno de quezílias internas (...). A mobilidade nas ilhas com a entrada de estrangeiros leva a que aumente o número de pedidos de dispensa de disparidade de culto. As igrejas reformadas entram em acção também nos Açores”.


– A imagem da sociedade açoriana e da Igreja que aqui está, com os seus prelados, clérigos, religiosos, etc., tal como torna a ressaltar da releitura de A Diocese de Angra no Arquivo Secreto do Vaticano nem sempre é muito lisonjeira, deplorando, por exemplo, o Bispo D. Estêvão, em 1644, “a falta de ministros com qualidades suficientes para pregarem a palavra divina, apontando como causas para esta situação a imoralidade de alguns, a decadência de conhecimentos teológicos e educação eclesiástico-religiosa”, a par de “irregularidades praticadas nas Ordens”, “desacatos”, “roubos”, “públicos(s) escândalo(s) em concubinato(s)”, freiras “enclausuradas no distrito de Angra (...) vivendo a maioria irregularmente e algumas em grande escândalo, encontrando-se situações semelhantes em S. Miguel e na Horta”, por entre autos e libelos, acusações, seduções, fugas, prisões, anátemas confessionais (v.g. antiprotestantes e antijudaicos...), excomunhões, censuras, conluios institucionais, etc., etc.

De resto, já em Outubro de 2011, por ocasião da apresentação da edição integral referida, D. Manuel Clemente (actual Cardeal Patriarca de Lisboa) logo salientou a importância,   recursos e potencialidades que uma obra desta natureza continha, com a particularidade – para nós indicativa, como escrevi antes – de se ter debruçado sobre a problemática conflitual (para ele dilecta e da qual é reputado especialista) do liberalismo, do primeiro republicanismo, do movimento católico português e das suas paradigmáticas configurações, ecos e ilustrações nas nossas ilhas, para tanto respigando, um exemplo documental de “sete anos antes da revolução liberal”, onde um prelado já dava notas de um outro tempo, que então chegava, ao referir “apreciar a religiosidade das pessoas do campo em oposição à cidade, onde diz que residem os libertinos e os maçons”, e bem assim com muitas outras e preciosas informações e pistas que ali variada e abundantemente constam... E isto mesmo fora ainda salientado por Arnaldo Espírito Santo (coordenador, com Manuel Saturino Gomes, do primeiro tomo da referida obra) ao escrever o seguinte:

– “Tomemos como caso notável a história regional e local das comunidades açorianas. Das centenas de pedidos de dispensa de impedimentos canónicos do matrimónio entre familiares, consanguíneos e afins, ressalta a verificação de que era restrito, no século XVII, o número de famílias do arquipélago, em grande parte descendentes daquelas que iniciaram o povoamento das ilhas. A prática religiosa é intensa. A enquadrar as comunidades urbanas e com uma grande inserção entre elas, exercem o seu fascínio os conventos e os institutos de várias famílias religiosas. Muitos e muitas acorrem a engrossar as suas fileiras. Seja por inadaptação ou por insatisfação, chovem os pedidos de mudança de lugar, uns alegando desejo de maior austeridade, outros denunciando dificuldades pontuais de convivência e conflitos pessoais. Uma abadessa solicita a exoneração do cargo; uma freira, já idosa, pretende licença para ter uma criada. A autoridade eclesiástica competente vai despachando conforme os casos, ora acedendo aos pedidos, ora recusando para não criar precedentes.

“Há matéria abundante que roça o romanesco. Uma freira foge do convento para Inglaterra com um marinheiro inglês. Outra salta o muro, dizem que com conivência do confessor. Um escândalo que fez correr rios de tinta e de documentos”…, e assim por diante, para encantadoras incursões e revisitações socio-históricas, públicas e privadas, culturais e existenciais, pelos caminhos do passado da vida nos Açores, no entrecruzamento de gentes, mentalidades e destinos do Mundo.

– Uma obra fascinante, portanto, torno a dizer, e plena de atractivos inter e pluridisciplinares, indispensável nas estantes pessoais e bibliotecas e arquivos regionais, para estudo, investigação e reprodutivo conhecimento crítico daquilo que fomos, e do muito que, de algum modo, ainda nos molda e condiciona hoje…


E depois, se a designação de “Arquivo Secreto do Vaticano” – aliás já acessível hoje até ao Pontificado de Bento XV (1914-1922) – inclina realmente o leitor para “um mundo subterrâneo, obscuro, perigoso, duvidoso, inacessível”, pode também criteriosamente contribuir com este Catálogo (cadastro...) “para que, de futuro, os investigadores, possam arquitectar e construir uma [outra?] História da Igreja nos Açores”, sem mitos ou novas mistificações, quiçá renovada espiritual e socialmente, e muito mais verdadeiramente fiel aos ensinamentos do seu Mestre... 
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 21.05.2016):