sexta-feira, junho 17, 2016


Uma Alegoria pedestre
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A implantação da estátua evocativa de Vasco da Gama (obra do artista Duker Bower) no ataviado Pátio da Alfândega de Angra do Heroísmo tem gerado curiosidade, humorismo e atracção mediática, tanto mais quanto o seu solene e aparatoso descerramento foi inserido nas Comemorações do 10 de Junho.


Tradicionalmente concebidas, promovidas e ordenadas aquelas cerimónias do Dia de Portugal pelo Representante da República nos Açores, desta feita porém foram os eventos nelas constantes diluídos (subordinados?) a uma programação sensivelmente acoplada a acções autárquicas encenadas, à excepção da Recepção na Madre de Deus, em áreas ou facilidades municipais (Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, e Convento de S. Francisco de Angra, para além do controverso átrio fronteiriço às proverbiais portinhas do mar e escadarias da marina da cidade de Angra do Heroísmo).

– Lembrar-se-ão disso, indiferentes ou cabisbaixos, os institutos locais e os partidos amorfos? Todavia e apesar de tudo, não há mal nenhum nessas parcerias socioculturais, ou em outras confluências de vário interesse análogo e mútuo proveito, porquanto assim em pragmática cooperação potenciam-se recursos, protagonismos e flamâncias...


Quanto à escultura do irmão de Paulo da Gama – enterrado este desde 1499 numa capela da igreja de Nossa Senhora da Guia (anexa ao Museu de Angra) e representado aquele em postura de animado caminhar (após o seu historiado desembarque, provavelmente na zona circundante da Prainha) –, remontava (conforme na altura o “Diário dos Açores” de 1 de Abril noticiou) o respectivo projecto já a 2013, oferta pródiga, meritória e empenhada, de Victor Baptista, um imigrante açor-americano de sucesso, entretanto agraciado com o grau de Comendador da Ordem de Mérito e que já havia brindado Portugal com a oferta de uma estátua do futebolista Eusébio.


 – Ora independentemente de retomarmos mais tarde este multifacetado tema, registe-se que as primeiras discordâncias ou reservas sobre aquela promissora ideia (quase perdulária e minorada presentemente, enquanto concretização material e implante in situ) – a par de um denunciado alheamento de uma outrossim exigível avaliação crítica e de coerente reflexão estético-arquitectural (v.g. sobre que critérios para marcação e inscrição física e simbólica em espaços públicos e urbanos de objectos e narrativas memoriais com potencial de impacto imaginário e honorífico, didactismo crível, encenação cívica e mediação interactiva!), prendem-se duplamente com a muito discutível fixação em raso da dita figura alegórica naquele lugar, como há dias fez deduzir, em Editorial, o jornal terceirense “Diário Insular”, ao lobrigar que, devido a tão “precário assentamento no chão, a não haver comedimento (e os excessos potenciais são mais que muitos agora que se aproximam as Sanjoaninas), podemos um dia destes acordar com a estátua vergada de joelhos”...


 Na verdade, tratar daquele tão incauto e provinciano modo um ícone tão glorioso (como se fosse peça retirada de um carro de desfile ou de um quadro alegórico sanjoanínico...), feito elemento meramente decorativo e de arte fantasista e efémera, e posto ali à acessível mão do disparo de selfies turisteiros ou das poses mais ou menos infantis de grupos e caravanas em alegre passeio e folia (para mais tarde se recordarem todos dos brasões da nossa mundial e patrimonial Angra, popularizada então como angra e ancoradouro de um brejeiro e regressivo Portugal de pequeninos, com motivos açóricos de honras perdidas, complexos de centralidade oceânica e presunções de grandeza antiga... –, não lembraria nem aos cortesãos de outras paragens, noutras ilhas de encanto e maravilha, ou de pesadelo exótico, lá por quaisquer Quíloas, Mombaças ou Sofalas que tivessem sido para aqui transplantadas, para contentamento de caciques balofos, conselheiros medíocres, castiços bairristas ou cidadãos já apenas sazonalmente folgazões!


 – Mas agora, que às Musas alheias de antanho somente agradeça “o nosso Gama/ O muito amor da pátria, que as obriga/ A dar aos seus, na lira, nome e fama/ De toda a ilustre e bélica fadiga”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 18.06.2016):



























Azores Digital:

Primeira versão em "Diário Insular",
Angra do Heroísmo, 18.06.2016: