segunda-feira, junho 20, 2016


Uma exigência de Angra
ou Salomão e a Torah
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Recebi de uma amiga terceirense, a residir em S. Miguel, uma ficcional cartinha de opinião satírico-política destinada a várias amizades e parentelas açorianas comuns e já divulgada publicamente no “Correio dos Açores” (CA) de domingo passado, com um picante, compreensível e crítico espírito de cumplicidade corisca... 

O assunto, opinado no “Diário Insular” de sábado último, prende-se com um desejo ardente, que por estes quentes dias sanjoanínicos se levantou inflamadamente bairrista, dramaticamente reivindicando, em nome de uma arrazoada e insólita “complementaridade entre ilhas e testemunhos” (sic), versus o sempre temido “concentracionismo” regional (micaelense?), a vinda (ida ou regresso?) para a ilha Terceira de uma Torah que supostamente fora da família Abohbot (durante anos residente na cidade de Angra do Heroísmo)!


– A história é conhecida, mas – ao que sabemos – deverá ainda vir a ser bem mais elucidada pelo Dr. José de Almeida Mello, historiador e respeitado director da muito notável e estimável Sinagoga de Ponta Delgada...


 É evidente, como se dizia no CA, que a questão, embora estando para além do agora extemporaneamente reclamado, vale também a pena ser retomada sem subterfúgios, tanto mais quanto foi por lá defendida a estupenda ideia de (re)meter imediatamente a dita Torah para os depósitos e guarda da abstrusa nova/velha Biblioteca Pública de Angra (obra lindeza dos sucessivos projectos, adjudicações, empreitadas, dinheiros e prazos sucessivamente descambados e denunciados pelo Tribunal de Contas (1), para além das generalizadas avaliações negativas, duvidosas ou reprovadoras da sua arquitectura, estética e volumetria, implantação na malha urbana citadina, previsão de custos futuros de funcionamento, funcionalidade e manutenção, etc.:


 – Coisas todas mais do que polémicas, como é sabido e a cartinha no CA também acentuava, mas sem sequer chegar a fazer referência ao resto das vergonhas que por aí pairam, à má sombra e rédea solta da mediocridade político-institucional instalada a quase todos os níveis e interesses corporativos ou de classe, e bem assim em praticamente todo o remanescente da paisagem monumental, industrial, comercial, turística, associativa e patrimonial terceirense em geral (e angrense em particular), desde a política aeroportuária e universitária aos Celeiros e ao Hospital velho; da Pronicol à Estalagem da Serreta e os noveis empreendimentos no turismo; das casas arruinadas ou abandonadas no centro da cidade aos impasses estruturais e sociais com o “cerrado grande” das Lajes e a Praia da Vitória (crises ainda no adro...), e até com a heróica e psicologicamente compensatória beleza da neo-estatuária planetária e suas afins resoluções culturais em Angra, desde o artístico e velho curral estilizado nas Portas de S. Pedro às alfandegárias portinhas do mar e da marina, passando pelas rotundas das Avenidas, entre belas amarrações de rede e pedregulho, possantes atributos da nossa proverbial taurinidade (civilizacionalmente hegemónica...) e  um atónito Álvaro Martins Homem, roído pelos ventos das glorietas esquecidas deste terra, no pedestal da sua secular e nobre capitania de antanho, para ali a esfarelar-se não muito longe da (sonhada pelo IHIT, mas adiada?) estátua evocativa da gesta dos nossos Corte-Reais pelo nosso Canto da Maia... – suplantado agora, também esse até, por aquela réplica de figura gâmica em apressado chão raso no famigerado Pátio da Alfândega e rodeado, por estes dias e noites, de paritárias tascas e tasquinhas com caracóis, bifanas, cerveja e animados selfies, à laia de peça de arte efémera provincianamente retirada de algum carro de desfile ou quadro alegórico, em cenário popular e castiço para um idêntico Portugal dos pequeninos nautas e dos alegretes brasões ilhéus.

E mais, digo – voltando ao assunto principal! – que tudo aquilo foi mesmo ali apontado no CA com fundamento sociológico e institucional bastante, que subscrevo aliás, tendo sido perpetrado, novamente, como infeliz e recorrentemente acontece, perante o silêncio (cobarde, cúmplice e demissionário?) de certas (ditas) “elites” (?) locais, há anos e anos em lugares de medíocre, submisso ou cabisbaixo Poder político-social e partidário, (in)acção institucional, comodismo histórico-cultural e alienação decisória...


 – Ora é por essas e outras razões (a tempo devidamente tratadas e sempre reabordáveis) que concordei logo com a citada proposta (nascida há uma dezena de anos e que também ouvi reafirmar, e identicamente retomei junto de tanta boa gente açoriana) sobre a legitimada, propícia e adequada criação nos Açores de um Centro de Estudos Judaicos, a sediar (por direito e merecimentos éticos, culturais e espirituais próprios!), na Sinagoga Sahar Hassamain (carinhosa, promissora e tão exemplarmente recuperada e reaberta em S. Miguel, com os inexcedíveis zelos e empenhos, entre outros, dentro e fora do Arquipélago (no País e nos Estados Unidos), de Almeida Mello e da Câmara Municipal de Ponta Delgada, conforme testemunhei em diversas ocasiões aqui mesmo (2) , e como aquela “corisca”, nossa amiga e correspondente no “Correio dos Açores”, mostrou ter ouvido e aquiescido também...).



E é por tudo isso, finalmente ainda, que volto a discordar hoje, à margem de qualquer tipo de bairrismo serôdio (incoerente, inconsequente, tardio ou em lei e letra mortas de qualquer alcance sério), daquela inusitada, abusiva, injusta e descarada reivindicação – apenas caprichosa (revanchista e invejosamente?) museológico-arquivística, bem merecedora, por esse lado, de outra mais amadurecida sentença à Salomão... – de (v)ir-se a arrecadar em Angra a famosa Torah (vulgarmente apelidada “de Rabo de Peixe”) que está hoje, devidamente preservada e acessível, na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, após uma série de peripécias que, esperemos, hão-de ser sistematicamente clarificadas e esclarecidas em breve, para descanso de consciência e proveito autêntico, generoso e transparente de todos os competentes e habilitados estudiosos e amantes das heranças e destinos do Judaísmo no Mundo e entre nós, e bem assim dos genuínos e verdadeiros Amigos da nossa derradeira e honrosamente salva Sinagoga açoriana.
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 21.01.2016):