quarta-feira, junho 22, 2016

Um despeito de Angra
ou Salomão e a Torah
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Ao ler o que Maduro-Dias sentenciou no DI do passado sábado, foi como se estivesse a ouvi-lo exclamar – “Ah é? Pois então que passem mas é a Torah para cá!”.

O assunto opinado (1) aqui, como se compreende, prende-se com um desejo ardente, que por estes quentes dias sanjoanínicos se levantou inflamadamente bairrista, dramática e paradigmaticamente reivindicando – em nome de uma arrazoada e insólita “complementaridade entre ilhas e testemunhos” versus o amiúde fantasmaticamente agitado e temido “concentracionismo” regional (micaelense?) – a vinda (ida ou regresso?) para a Terceira de uma Torah que supostamente fora da família judaica Abohbot (durante anos residente na cidade de Angra do Heroísmo).


– A história em si é mais ou menos conhecida, porém, ao que sabemos, deverá ainda vir a ser bem mais elucidada pelo Dr. José de Almeida Mello, historiador e respeitado director da muito notável e estimável Sinagoga de Ponta Delgada...

Ora é evidente que a questão – tal como nos interessa realmente – estando para além do agora extemporaneamente reclamado, mas não o escusando, vale também a pena ser retomada sem subterfúgios em mais amplo debate, tanto mais quanto foi por lá defendida a estupenda ideia de (re)meter imediatamente a dita Torah para os depósitos e guarda da abstrusa nova/velha Biblioteca Pública de Angra – obra lindeza de consecutivos projectos, adjudicações, empreitadas, dinheiros e prazos sucessivamente descambados e denunciados por fim pelo próprio Tribunal de Contas (2) –, para além das generalizadas avaliações negativas, duvidosas ou reprovadoras da sua arquitectura, estética e volumetria, implantação na malha urbana citadina, previsão de custos futuros de funcionamento, funcionalidade e manutenção, etc.:



– Tudo coisas mais do que polémicas, como é sabido, mas que importa não deixar de contextualizar, mesmo sem ser preciso avançar muito para sistematizar desta feita o resto das vergonhas que por aí pairam à má sombra e rédea solta da mediocridade político-institucional instalada (a quase todos os níveis e interesses corporativos, de classe e partido), e bem assim vegetando em praticamente todos os remanescentes domínios da paisagem monumental, industrial, comercial, turística, associativa e patrimonial terceirense em geral (e angrense em particular), desde as seculares políticas aeroportuárias e universitárias aos Celeiros e ao Hospital (ao velho e ao novo); da Pronicol e da Estalagem da Serreta aos noveis empreendimentos sazonais no turismo; das lavouras e casas arruinadas, devolutas ou abandonadas, aos impasses estruturais e sociais (como os do “cerrado grande” das Lajes e da Praia da Vitória, ainda no adro), e das artimanhas estatísticas (inesperadamente avalizadas...), sem discriminação técnico-política de pressupostos e conclusões, até à heróica e psicologicamente compensatória beleza da neo-estatuária planetária e suas afins resoluções culturais em Angra....




E como se não bastasse o que acima se percorreu, também agora – com laivos de artística performance rudimentar à mistura –, lá temos outros honrosos emblemas, desde o artístico e arcaico curral estilizado nas Portas de S. Pedro às alfandegárias portinhas do mar e da marina, passando pelas rotundas das Avenidas, entre belas amarrações de rede e pedregulho, possantes atributos da nossa proverbial taurinidade (civilizacionalmente hegemónica?) e um atónito Álvaro Martins Homem roído pelos ventos das glorietas esquecidas desta terra no pedestal da sua secular e nobre capitania de antanho (sozinho para ali, a esfarelar-se...), não muito longe da em tempos sonhada pelo IHIT, mas adiada, estátua evocativa da gesta dos nossos Corte-Reais pelo nosso Canto da Maia, suplantado este também, ao nível de certas cachimónias locais, por aquela réplica de figura gâmica em apressado chão raso no famigerado Pátio da Alfândega, rodeada que está, nestes dias e noites de festarola de arromba, por paritárias tascas e geminadas tasquinhas, veraneantes de permeio e turistas em convivência cosmopolita, num arraial de happenings artísticos com caracóis, bifanas, cerveja e frenéticos selfies, em redor da esplêndida representação que nem à laia de peça de arte efémera provincianamente tivesse sido retirada de algum carro de desfile ou alegórico quadro, para cenário estético-popular, castiço e idêntico ao de um Portugal de pequeninos nautas, ilustradas baronesas e alegretes barões falidos mas cheios de bazófia de confraria bairrista, sempre por aqui muito ornada de retórico, vazio e gratuito ressentimento sibilino...






– E mais, digo – voltando ao assunto principal, para concluir – é que determinadas “reivindicações” terceirenses, provindas às vezes e esporadicamente também de certas (ditas) “elites” (?) locais, há anos e anos em lugares de medíocre, submisso ou cabisbaixo Poder político-social e partidário, só tem levado a (in)acção institucional, comodismo histórico-cultural e alienação decisória, coabitando a maior parte do tempo com silêncios e alinhamentos confrangedores (sabe-se lá até se tecidos de cobardias, conivências e ambições inconfessáveis...).

Ora é por essas e outras razões que concordei com uma proposta (nascida aliás há uma dezena de anos, e que retomei junto de tanta boa gente açoriana) sobre a legitimada, propícia e adequada criação nos Açores de um Centro de Estudos Judaicos, a sediar (por direito e merecimentos éticos, culturais e espirituais próprios!), na Sinagoga Sahar Hassamain (carinhosa, promissora e exemplarmente recuperada e reaberta em S. Miguel, com os inexcedíveis zelos e empenhos, dentro e fora do Arquipélago (no País e nos Estados Unidos), de Almeida Mello e da Câmara Municipal de Ponta Delgada (3)!



– E é por tudo isso, finalmente ainda, que volto a discordar hoje, à margem e contra qualquer tipo de bairrismo serôdio (incoerente, inconsequente, tardio ou em lei e letra mortas), daquela inusitada e abusiva reivindicação de (v)ir-se a arrecadar em Angra a famosa Torah (vulgarmente apelidada “de Rabo de Peixe”), que está hoje preservada e acessível na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada após uma série de peripécias que, esperemos, hão-de ser sistematicamente clarificadas e esclarecidas em breve, para descanso de consciência e proveito autêntico, generoso e transparente de todos os competentes e habilitados estudiosos e amantes das heranças e destinos do Judaísmo no Mundo e entre nós, e bem assim dos genuínos e verdadeiros Amigos da nossa derradeira e honrosamente salva Sinagoga açoriana.


 De resto e na verdade, muitas vezes a substituição de uma letra por outra, como no Talmude, pode fazer toda a diferença de sentido, por entre vícios de princípio ou recalcamentos de berço... Tal como do respeito pelos justos direitos (e sérios deveres!) da gente difere aquele despeito apenas movido por uma má fé rasteira e por esganiços que não compadecem ninguém, antes sendo merecedores, para além de desprezo, de uma outra amadurecida, racional e afectiva sentença à Salomão...
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(1) - A propósito deste assunto e de uma abordagem satírico-política e ficcional na Secção "Maria Corisca" do jornal "Correio dos Açores" (Ponta Delgada, 19.06.2016), veja-se o texto "Uma Exigência de Angra", aqui:
http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2016/06/uma-exigencia-de-angra-ou-salomao-e.html


(3) - Ver em "As Heranças Hebraicas":
e "Duas Obras Admiráveis":

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Publicado em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 22.06.2016):




























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