quinta-feira, novembro 03, 2016


ENTREVISTA 
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Nova Instrução da Igreja levanta questões
muito complexas sobre a Ressurreição

– A Santa Sé acaba de publicar uma Instrução sobre Sepulturas, Cremação e Cinzas dos Defuntos. Como situa e que resumo faz desse texto?

Eduardo Ferraz da Rosa (EFR) - A Instrução Ad resurgendum cum Christo (“Para ressuscitar com Cristo”) provém da CDF (Congregação para a Doutrina da Fé), tendo sido aprovada em 02.03.2016, assinada pelo Papa Francisco (18.03) e publicada em 15 de Agosto último (sintomática e significativamente coincidindo com a data da Festividade da Assunção de Maria...).

O texto pretende, em primeiro lugar, retomar – “a fim de repôr”, sublinha... – as razões doutrinais e pastoraisda preferência a dar à sepultura dos corpos e, ao mesmo tempo, das normas sobre o que diz respeito à conservação das cinzas no caso da cremação”.


– Quais os pressupostos e constatações deste documento?

EFR - A Instrução parte logo de uma série de constatações de facto, sendo o seu motivo central o reconhecimento da Cremação ter vindo a estar cada vez mais difundida “em muitas Nações”, com a propagação de “novas ideias contrastantes da fé da Igreja” e demais comportamentos, ritos e “concepções erróneas sobre a morte” (como sejam o aniquilamento definitivo da pessoa, a fusão com a Mãe natureza, a reincarnação, a desejada libertação do corpo, de permeio com equívocos panteístas, naturalistas ou niilistas, etc.), ali apontados para depois serem associados a formas julgadas pouco idóneas “para exprimir a fé e a esperança na ressurreição corporal”, ao contrário – aqui repetido pelo magistério eclesiástico – da preferível e preferida Inumação (isto é, da sepultura integral na terra dos compostos orgânicos humanos falecidos), o que – ainda segundo a doutrina reafirmada – “responde adequadamente à piedade e ao respeito devido aos corpos dos fiéis defuntos”, favorecendo “a memória e a oração”, e “a veneração dos mártires e santos”!


– Nestes pressupostos, em conformidade e coerência internas, digamos assim, adianta a Instrução que, exceptuando motivos “de tipo higiénico, económico ou social”, é sempre preterida a Cremação (conquanto não condenada de modo absoluto), sendo porém interditas a dispersão (“no ar, na terra ou na água, ou, ainda em qualquer outro lugar”), a divisão ou arrecadação doméstica, e outros aproveitamentos e práticas “inconvenientes ou supersticiosas” das cinzas dos mortos, como “a conservação das cinzas cremadas sob a forma de recordação comemorativa em peças de joalharia ou em outros objectos, tendo presente que para tal modo de proceder não podem ser adoptadas razões de ordem higiénica, social ou económica a motivar a escolha da cremação”. 

Todavia temos também ali um outro conjunto de questões intencionalmente interligadas no mesmo discurso alusivo e no sobreposto contexto justificativo das matérias aludidas...



– Como caracteriza essas questões?

EFR – Diria que esse argumentário compactua, uniformizando em linearidades implícitas alguns universos de crença ou fé com formulações dogmáticas, sentidos hermenêuticos e exegéticos nem sempre compatíveis ou convergentes, dedutíveis ou historico-criticamente concordantes, tanto mais quanto os subentende e exprime, sobretudo nas passagens doutrinárias e segundo categorias conceptuais disputáveis tanto no âmbito da Teologia quanto no domínio disciplinar próprio da Filosofia (particularmente da Antropologia Filosófica...).

– E isto é especialmente notório quando, um pouco abruptamente, a partir dali, não somente se avalia ou propõe modelos de exéquias, ritos ou ofícios de cerimonial funerário e litúrgico, mas também comportamentos objectivos e subjectivos, valores religiosos, morais e motivacionais, hábitos devocionais, orantes e memoriais dos católicos enlutados, segundo um esquema bastante apriorístico e dedutivo (quase tautológico...), de entendimento, expectativa e esperança na Ressurreição.



– Que problemáticas específicas levanta este Documento, no que concerne à Teologia e à Filosofia?

EFR - A “Instrução” Ad resurgendum cum Christo levanta, veicula e rodeia antigas, complexas e controversas questões histórico-doutrinais, socioculturais, civilizacionais, simbólicas e religiosas, não só e desde sempre teológica e filosoficamente fundamentais, conhecidas, reflectidas, disputadas e hoje cada vez mais disputáveis, quanto, especialmente desde o século XIX, vieram as mesmas a tornar-se progressivamente reportáveis e associadas às transformações ideológicas, políticas, psicológicas, científicas e técnicas que tem reconfigurado imaginários e paradigmas identitários, individuais e colectivos de pessoas e instituições (nomeadamente das várias igrejas, crenças, credos, culturas e civilizações):

– No caso da Igreja Católica (e também das igrejas Ortodoxas e Protestantes), evidentemente, para além dos preceitos e códigos jurídicos, uma simples revisão sequencial e comparativa dos delineamentos papais, sinodais e episcopais (nem sempre uniformes nem lineares) revelaria isso mesmo, bastando atender aos pronunciamentos doutrinais face ao Modernismo e à Secularização; à Industrialização, à Epidemiologia, ao Urbanismo e à Demografia; à Globalização; às crises sociais, económicas e sanitárias; ao pluralismo político, social, ético e das mentalidades, etc. 


O tema cedo despertou regulamentação canónica, como no Concílio de Braga (563), e veio até a ser causa de excomunhão por Bonifácio VIII (em 1300), etc., por aí adiante, de modo que só em 1917, 1963 e 1969 o assunto foi retomado com novas orientações, respectivamente no Direito Canónico, nas recomendações da CDF e nas Regras Exequiais. Relembro porém que os bispos americanos, em 1997, conseguiram um indulto papal de modo a poderem celebrar missas de Requiem perante as cinzas dos seus defuntos...

De resto, o problema da Cremação, desde o Hinduísmo, o Budismo e as Civilizações Clássicas do Ocidente até à nossa contemporaneidade, pode ser estudado perante díspares quadros de visão do mundo, sociedade e destino dos homens e dos povos, em relação com os elementos naturais e cósmicos, devendo ser sempre perspectivado por relação, aceitação e repúdio, de motivos tradicionais ou conjunturais, histórico-culturais, religiosos ou sobrenaturais, normativos e penais (civis e canónicos), nomeadamente com a ocidentalização do Cristianismo entre os séculos V e VIII (Carlos Magno criminalizou-a em 789); durante a Peste Negra, no século XVII; com a Revolução Francesa e o Iluminismo; nos alvores do Liberalismo, da propaganda e do proselitismo maçónicos (v.g. em Itália, frente ao Vaticano...); no século XIX (especialmente em Inglaterra, Estados Unidos e Holanda), e – enfim – nos espaços ideológicos, simbólicos, totalitários e concentracionários cimentados pelos totalitarismos do século XX. E a situação é ainda hoje variada nos países anglo-saxónicos e latinos, no Norte e no Sul, na Ásia e na África...



– Quais as principais formulações críticas que encontra nesta Instrução?

EFR - Sem dúvida, primeiramente, as da Corporalidade e da Ressurreição, que – essas, sim – são de nuclear e maior importância ontológica, epistemológica, escatológica e ética, constituindo por isso objecto próprio e específico da reflexão filosófico-antropológica, teológica e metafísica, sem deixarem de ser assunto de natureza exegética, revelacional e bíblica (amiúde dogmaticamente moldadas...). 

Todavia, a Instrução não sendo um tratado teológico, permite e devia potenciar um debate aprofundado sobre todo o seu conteúdo, sem escamotear que permanecem ali indissociavelmente presentes e reflectidas categorias transcendentais e enunciados básicos da Cristologia, da Economia da Salvação, da História dos Dogmas e da Inteligência da Fé... E julgo mesmo que na vigente conjuntura socio-religiosa e cultural, esse desafio deveria ser assumido, e o mesmo trabalho realizado em consequência...


– E apesar de não ser este o lugar mediático mais adequado para uma consolidada abordagem desta questão, que tem tanto de problema como de mistério, quero em todo o caso acentuar que, se ou quando feita à margem ou na ignorância das legitimadas categorias próprias da Filosofia (v.g. da Escolástica) e da Teologia, a desejável compreensão destas questões será absolutamente lacunar e pouco mais que um fait-divers de curiosidades banais...

Ora, também por isso, é que esta Instrução, remetendo, como é reconhecido, para a facetada Piam et constantem (de 05.08.1963) e para o Vaticano II, em simultâneo com sintomáticas referências (algo contraditórias e forçadas, diga-se) para o De cura pro mortuis gerenda de S. Agostinho e para o De resurrectione carnis de Tertuliano, parece querer ignorar os termos críticos de toda a diversa (contemporânea e antiga) reflexão teológica e antropológica no campo da Escatologia!


– E nem era preciso passar, entre outros bem conhecidos, pelos notáveis contributos do nosso dilecto Karl Rahner; bastava reler o cardeal Josef Ratzinger, de quem o card. Gerhard Müller é aliás discípulo (e de cuja obra é especialista e divulgador), enquanto jocosamente vai verbalizando que às vezes “tem de corrigir” o actual Sumo Pontífice em “questões de dogma”, precisando que o Papa Francisco não é um “teólogo profissional”... E talvez não seja!

Mas ele, o actual Prefeito da CDF (antigo Santo Ofício), pelos vistos e lidos, também não aparenta lá ser um filósofo muito profundo e sistemático... 
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Entrevista ao jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo), efectuada no dia 28 de Outubro último e publicada na edição de 03.11.2016: