quinta-feira, novembro 19, 2009

Verdade, História e Pastoral

1. Com uma fraterna e apelativa dedicatória, relembrando comuns tempos de autêntico companheirismo espiritual, intelectual e institucional em Lisboa, na nossa Universidade Católica Portuguesa e nos Centros de Cultura e de Estudos Europeus do Colégio Universitário Pio XII – do nosso saudoso e inesquecível Padre Joaquim António de Aguiar, C. M. F., Professor, Sacerdote e Académico a quem o País, a Igreja, a Educação e a Cultura em Portugal tanto devem –, um Amigo de longa data fez-me chegar há dias um pequeno pacote de livros, – generosa proposta para leitura, dizia ele, teologal e quase poeticamente, “nas tardes e noites que convidam ao estudo, à reflexão e à oração, à beira desses outonais ventos, vagas de mar encapelado e outros análogos vendavais que assolam as tuas ilhas postas como que em Presépio no Oceano, à Espera da Estrela da Redenção”!

– Ora do apelativo conjunto dos três títulos que integravam aquela preciosa oferta, constavam duas obras que aqui tenho hoje em escrivaninha, e que escolho para referência nesta Crónica na medida em que as respectivas autorias e temáticas se prendem directamente também com pessoas, ideais e vivências ligadas às instituições atrás referidas, para além do facto, que o meu correspondente companheiro aliás fez questão de recordar, de já aqui ter sido feita por mim uma primeira referência a um dos autores em vista e ao seu livro Portugal e os Portugueses (D. Manuel Clemente), precisamente no contexto indiciário de complementares e implicadas facetas abordadas pelo outro autor sugerido (João Seabra), e tanto mais sendo depois que aquelas temáticas, conforme então salientei, se revestiam logo “de evidente pertinência nesta fase difícil da vida nacional e em vésperas de nova efeméride republicana, aonde tantas problemáticas criticamente se cruzam e condicionam”…

2. Os livros a que me venho referindo são pois os seguintes: De João Seabra – O Estado e a Igreja em Portugal no início do Século XX - A Lei da Separação de 1911 (Edições Principia, 2009), e de D. Manuel Clemente – Um só propósito (Edições Pedra Angular, 2009), sendo o primeiro uma adaptação da Tese de Doutoramento em Direito Canónico na Pontifícia Universidade Urbaniana do nosso antigo Capelão na UCP, e o segundo uma colectânea de Homilias e Escritos Pastorais do actual Bispo do Porto (que enquanto estudante nos precedera, como antigo aluno, no Colégio Pio XII):

– São duas obras que vale a pena ler, criteriosa e criticamente, numa época fértil em meros jogos retórica e poder de conjuntura, intolerável escamoteamento de factos, futilidade de mensagens e vazio conhecimento e sabedoria, em que tantos se afadigam – como inocentes, com evidentes menoridades de preparação histórico-cultural, teórico-crítica, sociopolítica e até pastoral, ou como ressabiados úteis … –, em certas galas, paródias e arremedos comemorativos da implantação da República (às vezes até sob a capa reconhecível de aventais e toques de malhete de accionamento estratégico por sociedades ou seitas mais ou menos secretas…), e por demasiadas vezes muito mais interessados do que possa parecer no alinhamento ou no agenciamento doutrinal e ideologicamente (mal) urdido de visões parciais da História do que na procura da verdade possível e na recolha previdente das lições de uma época realmente trágica (no passado) e ainda comprometedora do presente e do futuro próximo, como se viu e mais verá…

Remetendo todavia hoje a apresentação da obra citada de D. Manuel Clemente para a sugestiva abordagem que dela fez António Barreto (e cujo texto integral está disponível em http://www.diocese-porto.pt/, ou no seu Blog Jacarandá, em http://o-jacaranda.blogspot.com/, onde curiosamente publicava no passado dia 15, uma foto relativa à Religiosidade e ao Vulcanismo das ilhas açorianas…), saliento aqui mais particularmente desta feita a pertinência histórica, sociológica e filosófica – mais precisamente para a História da Igreja, da Sociedade, do Direito e do Estado em Portugal – da tese de João Seabra, – que realmente escreve aqui um texto também acessível ao grande público e no qual também estão presentes a erudição e os pormenores sobre a época e as personagens, num contributo essencial e oportuníssimo para o debate sobre a liberdade religiosa e, indirectamente, sobre a chamada questão religiosa da Primeira República, quando a Lei da Separação do Estado das Igrejas foi promulgada em Portugal (20 de Abril de 1911) e a República, proclamada a 5 de Outubro de 1910, levava já seis meses de efervescente existência.

3. O trabalho, para além da Introdução e da Conclusão sinalizadoras das matérias tratadas e das respectivas envolvências históricas e decorrentes implicações na actualidade, está assim tematicamente direccionado em XIII Capítulos, cujas temáticas são:

– A situação jurídica da Igreja em Portugal durante a Monarquia liberal; A República anticlerical: as primeiras medidas do Governo Provisório; Descristianização da família: as leis do divórcio e do casamento civil, e o Código do Registo Civil; O pórtico da Lei da Separação: proclamação da liberdade, bases da perseguição; “Cultuais” e disciplina do culto, As “pensões eclesiásticas”; A expropriação dos bens eclesiásticos; Outras disposições “gerais e transitórias”, de perseguição à Igreja; A Lei da Separação como lei penal especial e regulamento disciplinar do clero; a burocracia da Lei da Separação; A Lei da Separação no tempo: a “República Velha” (1911-1917); A Lei da Separação no tempo: Sidónio Pais (1918), e A Lei da Separação no tempo: de Sidónio à Concordata.

Motivo de interesse e matéria para estudo documental e alargada reflexão histórica situada e comparada desta tese do Padre Doutor João Seabra são ainda os textos que o seu livro justificada e oportunamente reproduz como Anexos (e que de outro modo não estariam muito acessíveis para proveitosa – dir-se-ia mesmo cientificamente obrigatória! – consulta conjunta); a saber:

– A Lei da Separação do Estado das Igrejas; a Carta de um grupo de católicos de Lisboa; a Pastoral Colectiva do Episcopado Português ao Clero e fiéis de Portugal; o Protesto colectivo dos bispos portugueses contra o decreto de 20 de Abril de 1911, que separa o Estado da Igreja, e as Biografias dos nomes citados (onde não faltam, de resto, muitos dados relevantes, directa ou indirectamente, também e sobremaneira ainda para a História Moderna e Contemporânea dos Açores…).

E sendo assim, como a propósito do outro livro de D. Manuel Clemente que o meu Amigo me enviou e que atrás assinalei, com razão escrevia António Barreto – a quem, lá pelos idos anos de meados de 70 acompanhei nalguns périplos das primeiras respostas a certos e antigos desafios açorianos… –, as palavras que longamente cito e que partilho para proveito de todos nós, rodeados de literatura, política e doutrina à curta dimensão do pobre estilo, da medíocre exegese e da mimética violência de Caim:

– “Há décadas, talvez séculos, que a questão da intervenção da Igreja e dos sacerdotes na vida pública é discutida com intensidade. Já antes das revoluções liberais, mas sobretudo depois delas, era um tópico recorrente. Poderia pensar-se, por isso, que o problema está esclarecido. Não é verdade. É uma ‘eterna questão’. Uma verdadeira vexata quaestio, eternamente debatida, mas sem solução à vista. Em Portugal, volta sempre. (…) Consensuais parecem ser apenas duas ideias: a da separação da Igreja e do Estado; e a da não intervenção da Igreja em questões puramente partidárias. O que de nenhum modo esgota o debate. Quanto a este, o meu entendimento é o de que a Igreja deve intervir publicamente em tudo o que à condição humana diz respeito. Prefiro que o faça às claras, diante de todos, do que nos corredores do poder ou nas antecâmaras do Príncipe, como foi muitas vezes o caso. Se assim for, a Igreja exige para si a liberdade que reconhece aos outros. Os cidadãos ficam a ganhar com isso. É absurdo pensar que a Igreja apenas se ocupa de religião. Qualquer que seja o seu Deus ou a sua concepção da vida eterna, é sempre na Terra, em sociedade, na República, na cidade, que os homens vivem as suas vidas.

“ (…) Muitos dizem que os religiosos, porque crentes, são os mais predispostos à intolerância. Quando, por exemplo, se fala de fundamentalismo, logo se pensa em religião, em muçulmanos, católicos, protestantes, evangelistas, judeus e outros. Digam a palavra fundamentalista e logo se dirá “religião”. É verdade que, entre os religiosos, há forças fundamentalistas geralmente inimigas da tolerância. Mas há uma outra verdade: entre os chamados laicos, entre os agnósticos e os ateus, o fundamentalismo reina também. Os intolerantes que conheço são tanto religiosos como agnósticos. Excluem-se com a mesma fúria e têm a certeza de que os outros estão sempre no erro. Há um fundamentalismo anti-religioso tão perturbador e tão fracturante das sociedades quanto os fundamentalismos religiosos.

“ (…) Ao dirigir-se a todos, crentes e não crentes, o sacerdote afirma que a sua missão não se limita ao rebanho, nem ao apostolado, nem ao proselitismo. Como noutras vocações e noutras profissões, os destinatários da missão do sacerdote são todos os seus concidadãos, crentes ou não crentes. Especialmente os fracos, os pobres e os frágeis. Não por razões teológicas, mas por razões humanas e sociais. É mesmo deles, em especial, que fala a Bíblia.

“Não sei o que Deus pensa desta interpretação do sacerdócio. Mas sei que faz bem aos homens. E que é um exemplo. Sei que a evangelização e o apostolado são, para muitos, o capítulo essencial dos termos de referência sacerdotal. Uma espécie de militância, na melhor tradição Paulista. Mas talvez o exemplo seja uma forma superior de sacerdócio.

“Na verdade, nem os Bispos escapam à contradição humana. Ao reflectir sobre a sua missão, a de sacerdote e Bispo, D. Manuel hesita entre o sentido restrito do apostolado dos cristãos, o sentido mais lato da evangelização e uma acepção mais larga ainda, a do testemunho a prestar perante todo o mundo. Neste último caso, dirige-se a todos, cristãos ou não, crentes ou não. Mas parece-me que, nessa contradição, as suas preferências vão com frequência para o último sentido. A sua missão é a de falar a todos, para todos, sem esperar utilitária ou orgulhosamente pela conversão. Eis por que lhe agradeço o seu livro”.

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* Originalmente publicado (20 de Novembro de 2009) em Jornal “A União” (“Directório de Colunistas”) em http://www.auniao.com/), e em "Diário dos Açores" ("Opinião"), em http://www.diariodosacores.pt/).