Da Alma ao Supraceleste
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Pode
parecer metafísico o título desta Crónica – talvez entre poético,
antropológico-filosófico, cosmológico e teológico, quando não (ou precisamente)
porque o poderíamos ter recolhido ao deambularmos entre revisitações de
memória, discursos e colóquios nos jardins e pátios da Academia e do Liceu da
velha Grécia, ou então nos saborosos Comentários
de S. Tomás às obras do Estagirita, ou até mesmo, já ao fechar do Século XVIII,
calcorreando kantianas avenidas de Konisberg ao bater das horas no puro cômputo
da Razão crítica, fossem aqui evocados patronos tão afeitos e dados a coisas
como as que estão no Fédon, no Banquete, na República, no Timeu, no De Anima, no De Caelo et Mundo ou na Allgemeine
Naturgeschichte und Theorie des Himmels... –, mas não!
– A frase de abertura de hoje conjuga apenas numa expressão o título de duas fabulosas Crónicas com que abre (“Sobre a alma”) e fecha (“O Lugar Supraceleste”) o belíssimo livro O Lugar Supraceleste de Frederico Lourenço, publicado há pouco pela Cotovia (Lisboa, 2015).
Nascido em 1963, este notável classicista e professor da Universidade de Coimbra – tradutor premiado da Ilíada e da Odisseia – é também autor, entre outros, dos ensaios reunidos em Grécia Revisitada, da antologia Poesia Grega de Álcman a Teócrito, do romance Pode Um Desejo Imenso, dos contos de A Formosa Pintura do Mundo e do também recente O Livro Aberto: Leituras da Bíblia.
– “À semelhança de muitas outras pessoas que vivem
sós e, por esse motivo, passam a maior parte do seu tempo tendo os próprios
pensamentos como principal companhia, tenho-me tornado nos últimos anos um
cismador meditabundo diariamente dedicado a remoer sozinho ideias, leituras,
manias, reminiscências e projecções fantasiosas sobre o futuro. Pode ser que se
dê o caso de me pôr a falar sozinho em voz alta, mas por enquanto a escrita
ainda surge aos meus olhos como o melhor canal de extravasamento para este tipo
de cogitação supranumerária: pois há um momento em que o ‘disco’ mental está
cheio e é preciso deslocar de lá a acumulação de cismações, de modo a criar
espaço para novos pensamentos e para novos caminhos de reflexão.
E depois, percorrendo então temas, acontecimentos,
vivências, audições, gestos e hábitos do quotidiano, representações,
relacionamentos pessoais e familiares, etc., retoma sempre o autor uma permanente reflexão como retorno a si e aos seus concomitantes actos
de escrita, ele que tanto se fundiu
e recriou traduzindo as linguagens e
os sentidos das palavras tecidas no
tear dos outros, ou entretecidas, sem retroversão possível, nas rocas, fusos e
fios da nossa Língua, e no singular mundo existencial que a nossa radical
finitude incarnada marca para o Bem e para o mal, tanto no que dizemos como no
que silenciamos, ou tanto no que apenas
esperamos que nos eleve a uma Verdade Outra, talvez a Única capaz de nos
redimir do Tempo e das cruzes dos nossos caminhos esquivos, desesperados ou
somente misteriosos:
– “A palavra ‘texto’ evoca pela sua etimologia a ideia de tecelagem, pelo que é frequente a analogia entre o escritor e o tecelão. (...) A vida faz sentido? Refiro-me em concreto à minha. É uma pergunta que me coloco desde sempre. Estarei aqui por alguma razão definida?”.
A estas, como a muitas outras questões que o seu
livro testemunha ou levanta, Frederico Lourenço responde (procura animar...) com a mente e com o coração, com
Goethe e ainda com Schopenhauer, por entre o desejo e a contemplação (“porque a
lua é apenas objecto de contemplação, nunca objecto de desejo”):
– “É por isso – escreve assim o autor, aliás numa indisfarçável tonalidade simultaneamente kantiana e agostiniana... – que a contemplação da beleza inalcançável das estrelas nos acalma e eleva, ao passo que nos descentra e inquieta a contemplação da beleza teoricamente alcançável de corpos não celestes. Pensemos, em concreto, num corpo bem terrestre que momentaneamente nos atrai, mas que as circunstâncias tornam mais inalcançável do que a estrela mais remota da última galáxia. Que inquietação...”. Supraceleste!?
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NOTA:
Uma primeira versão deste texto foi publicada em "Diário Insular"
(Angra do Heroísmo, 28.11.2015):
RTP-Açores:
http://www.rtp.pt/acores/comentadores/eduardo-ferraz-da-rosa/da-alma-ao-supraceleste_48839:
e Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=3082: