quinta-feira, maio 07, 2015


Duas Obras Admiráveis


1. Estava ali, um pouco esquecido entre a Bibliografia Açoriana, quando o reencontrei não muito longe de Os Hebraicos na Ilha Terceira de Pedro de Merelim (Angra do Heroísmo, 1966; reeditado em 1995), a que fiz referência em Crónica anterior (*) e a propósito, que retomo hoje, do brilho e projecção com que foi recentemente inaugurada a histórica Sinagoga de Ponta Delgada – Sahar Hassamain (“Porta dos Céus”) –, coroando-se assim de nobres aspirações e assegurando-se uma acrescida preservação da memória religiosa, socioeconómica e cultural do Povo Judeu nos Açores:

– Refiro-me ao belíssimo livro Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada, notável projecto e obra de História, Recuperação e Conservação da autoria e responsabilidade de José de Almeida Mello (então já rigoroso, promissor e premonitório – e realmente tão profético e visionário no seu aduzido trabalho – quanto dele os luminosos frutos testemunharam, agora a maior evidência, a riqueza das suas reais, comprovadas e imensas potencialidades, aliás exemplarmente reveladas a quando da mundialmente divulgada abertura desta Sinagoga, e da crescente e interessada vaga de visitantes que começaram e continuarão por certo a admirar tão assinalável herança da presença hebraica nos Açores (S. Miguel, Terceira, Graciosa e S. Jorge)!



2. Lançada em 2009 – numa mecenática edição da Publiçor (com os conhecidos empenhos beneméritos do seu administrador José Ernesto Resendes); muito bem impressa na Nova Gráfica; com excelentes e sugestivas Fotografias de José António Rodrigues (entre as quais as que ilustram este texto), e com esmerado Design Gráfico de Jaime Serra – esta Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada (graciosamente oferecida à mesma entidade e aos seus curadores para apoio aos desígnios do seu projecto e subsequente divulgação promocional), contou com um Prefácio do nosso estimado e saudoso amigo Dr. Alberto Sampaio da Nóvoa (ex-presidente do Supremo Tribunal Administrativo e Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores entre 1997 e 2003), onde justamente foi logo salientado o seu carácter de “obra plena de oportunidade, não só por estar em causa uma comunidade judaica, cujo legado cultural e religioso importa preservar e divulgar, mas também porque a recuperação da Sinagoga irá contribuir, sem dúvida, para o enriquecimento do valioso património cultural da cidade de Ponta Delgada”. E assim admiravelmente aconteceu por estes dias!


– Fundado em 1836 por Abraão Bensaúde, mas abandonado e degradado durante bastante tempo, aquele Templo e moradia de Rabino é o mais antigo do género em Portugal, tendo sido construído por judeus vindos estabelecidos ou regressados ao nosso Arquipélago no Século XIX, na sequência de expatriações e demandas que remontam ao Século XV.


3. Este livro, para além do Prefácio referido e da Introdução (na qual Almeida Mello nomeia e agradece aos seus diligentes Colaboradores) explicita depois métodos de investigação, processo de recolha, conteúdo, significado e historial dos materiais e objectos ali inventariados, abordando os seguintes temas e revelando documentos:

– Restauro e conservação na Europa; enquadramento espacial; resenha histórica da presença hebraica em Portugal e nos Açores; a Sinagoga e o seu lado humano; descrição do edifício e da Sinagoga, e dos seus (então) deteriorados estados; a sala de Culto; “inimigos vivos” (constatados aos milhares nas velhas ruínas: térmitas, ratos, ninhos, baratas, traças...) que povoavam aquele corrompido lugar; espólios (v.g. Toras e outros objectos de culto; um quadro dos fundadores da Sinagoga; candeeiros de tecto; a cadeira de Circuncisão; caixa de esmolas; papéis hebraicos e livros de culto); Comissões de recuperação e salvaguarda; a Sinagoga na Imprensa; Projecto de restauro e conservação; objectivos pretendidos e intervenções na Sinagoga. Após as conclusões, seguem-se Anexos (levantamento arquitectónico, plantas e escrituras várias), Bibliografia e uma Nota Biográfica do Dr. José de Almeida Mello (principal, competente e incansável coordenador executivo deste projecto, como já tive oportunidade de gratamente assinalar).


 4. Finalmente, esta obra – para além do seu evidente valor intrínseco como repertório documental, inventário patrimonial e verdadeiro manifesto em prol da recuperação daquele paradigmático monumento comunitário e símbolo religioso, sociohistórico e cultural dos Açores e do Povo de Israel –, vale também como a face primeira de um projecto cívico e de resistência memorial  (devidamente suportados por diversas e irmandas instituições regionais, nacionais, hebraicas e norte-americanas), tanto mais justificados todos, retroactiva e prospectivamente, quanto a obra feita e a palavra cumprida – ao contrário do que teria sido uma cedência comodista, cobarde ou apenas preguiçosa, quase como a de Jefté, segundo o Talmude lido por Elie Wiesel... –,  foram  um verdadeiro protesto cívico, teórico e prático, contra a indiferença e contra  desleixos,  ignorâncias e recorrentes ignomínias civilizacionais...


De resto, sem chegar a ter de relembrar nesta ocasião, com Gershom Scholem e outros, todo o insuspeitado alcance intelectual – desde História, Literatura, Arte e Filosofia das Religiões, até ao Pensamento Judaico e às suas marcas críticas na Cultura Europeia, e desde a Diáspora ao Sionismo, ao anti-Semitismo e ao Holocausto (Shoah)...–,  desta tão digna e dignificante restauração patrimonial, religiosa e cultural do Judaísmo e das suas múltiplas manifestações e heranças – para além, evidentemente, de  vertentes mais pragmáticas e estratégicas (desde a turística à arquitectónico-urbana e à político-cultural...) –, bem merece ser retido, também aqui, aquilo que Golda Meir, em Maio 1923, testemunhou e que Almeida Mello, em boa hora e sob reavivada estrela, no seu excepcional livro, emblematicamente transcreveu:

– “Lembro-me de ter percorrido a bonita cidadezinha (Ponta Delgada), apreciado o clima doce e a adorável e invulgar paisagem. Um aspecto curioso da nossa paragem foi que descobrimos uma pequena comunidade judaica sefardi [sefardita] (umas trinta pessoas ao todo) que era extremamente cumpridora. O rabi tinha morrido vários anos antes (...)”.


 Assim, e também por isso, é que é tão admirável, respeitável e promissor este reavido legado de gerações – esperanças e lamentos vindos do fundo enigmático dos tempos –, qual kipá levada de volta a casa, ou retomado tálit para a meditação e a humilde e longa espera do Messias.
________

(*) Cf. "As Heranças Hebraicas", em OS SINAIS DA ESCRITA:
_________________________

Publicado em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 09.05.2015):





























RTP-Açores:

























e Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2889:


























Outra versão: "Um Projecto Exemplar",
em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 09.05.2015):