segunda-feira, fevereiro 29, 2016


Um Truque Iconoclasta
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Independentemente de estimas intelectuais ou amizades por algumas das suas figuras e próceres – ou até da partilha pontual de leituras, causas marcantes e justificadamente “vanguardistas” –, foi com algum (mas não inédito) espanto – e, mais do que isso, com indeclinável desagrado e sentido de reprovação – que parte da opinião pública (ao menos aquela que observou a dita peça em pré-vaticinada colagem e expansão mediáticas) terá reagido ao novo cartaz congratulatório e propagandístico do Bloco de Esquerda (BE), com o qual se pretendia festejar o anelado fim da “discriminação na Lei da Adoção” por casais homossexuais, obtido por votação de reconfirmação no Parlamento a 10 do mês de Fevereiro (137 votos a favor, 73 contra e 8 abstenções), e depois promulgado (19.02) por Cavaco Silva, que havia vetado o diploma em 25 de Janeiro.

– Ora esse imaginativo reclamo do BE, para além das sub-reptícias mensagens que proclama e espaventosamente divulgaria até às pontas da sua icónica estrelinha cabeçuda, não se ficou por menos e não teve melhor fixação simbólica nem fraseado de juízo que juntasse ao seu manifesto a não ser a frase “JESUS TAMBÉM TINHA 2 PAIS”, iconoclastamente inserida ao lado de uma reprodução da figura de Jesus Cristo (segundo uma identificável figuração representativa do Coração de Jesus)...



Entretanto, para quem não percebesse nada da complexidade (apenas teológica!?) do tema exposto na dogmática fachada radical e no decorrente alcance do dito “fora-de-porta”, logo veio à liça em cunha uma abençoada deputadinha do BE, explicando à ignara massa dos crentes, teólogos e exegetas, e à (outra) sua estrelada trupe, que os “dois pais”, a que se refere o dito placar, são “o pai espiritual e o pai terreno” (sic) de Jesus de Nazaré!

Assim sendo, era só esperar para ver no que mais daria este caso de cartoon lisboeta (e não só), para regalo de imitantes menores do Vilhena, ensinança a leitores politico-religiosamente (des)avisados de Cunhal (sobre uns tais “pequeno-burgueses” de classe e mente), e a certos “compagnons de route” da cada vez mais dessacralizada geringonça que oxalá não dê com todos os pais e deserdados filhos e afilhados do Rato nas águas turva do Tejo...

– Ora agora, como era de esperar, vimos assistindo a uma verdadeira catadupa de reacções em cadeia, verificando-se mesmo uma certa radicalização de posições e de avaliações divididas, tanto no sentido de procurar justificar (quando não louvar!) o bloquista cartaz, quanto opondo-se-lhe frontalmente a partir de quadros de leitura e valores muito diversos, não apenas por observadores ou analistas independentes e à margem de filiações ou perfilhações religiosas, político-partidárias ou doutrinárias, mas também de figuras dirigentes ou destacadas no próprio campo político-ideológico (aliás não uniforme, nem consensual, nem unanimista) do BE.



E foi assim que pudemos presenciar desacordos de assumidos activistas da LGBT (Isabel Advirta); da “comunidade católica” gay portuguesa (José Leote: “A utilização do ícone católico está no mínimo deslocada. Somos defensores da construção de pontes...”), e prontas tomadas de posição (entre outras que muito sintomaticamente se manifestaram, enquanto alguns da mesma trupe permaneceram cumplicemente encabulados...), nomeadamente de militantes e/ou responsáveis do BE, como Marisa Matias e Francisco Louça, unânimes, apesar de tudo, em salientar o carácter (pelo menos) “inoportuno” (e porque não oportunista?), errado e equívoco desse manifesto, a par das atabalhoadas explicações de Catarina Martins que procurou descalçar a chinela de um pé auto-furado e claramente apanhado a trilhar o terreno escorregadio onde evidentemente se enfiara ou deixou que expeditos ideólogos, estrategas, artistas/cartoonistas, sociólogos culturais e militantes seus se metessem, pisando complexos domínios ignorados (ou então, pior ainda, se sobejamente conhecidos, insensata, abusiva e errantemente movidos em intencional tropelia simbólica ultrajante, ofensiva, vilipendiante e obviamente tanto mais imbecil quanto queria ter entrado, à desmiolada tripa forra, a dar-se brado mediático, até supostamente de pleno direito, segundo Louçã, em consequência de um simplista “conceito moderno de liberdade e de responsabilidade”, que arrogaria como natural “que se use, neste terreno de humor, símbolos religiosos”?!)...

– Por outro lado, apesar de alguns denunciados tiques de esporádico e insólito “ofendidismo ultramontano”, como escreveu Mário de Carvalho – expectáveis e por isso antecipadamente evitáveis, em todos os terrenos da barricada! –, não se fizeram esperar indignados (e fundamentados!) comentários nos OCS e Redes Sociais; discordâncias político-partidárias do CDS-PP e do PSD; silenciamentos indefiníveis (?) do PCP e do PS (embora Brilhante Dias tenha falado em divisionismo “infantil”), e – enfim – legítimas objecções firmes, pessoais e institucionais, por parte de católicos responsáveis e da Igreja Católica como D. António Marto, João Vila-Chã, Gonçalo Portocarrero de Almada, Anselmo Borges, Vaz Pinto, Teresa Toldy, Alexandre Franco de Sá e Manuel Barbosa (porta-voz da Conferência Episcopal), todos confluentemente classificando o famigerado e estulto cartaz de afrontoso para os crentes, “lamentável”, “injurioso”, “ridículo”, “sem gosto e inoportuno”, “de teor sexista”, “desrespeitoso para com as convicções dos outros”, etc., reforçando o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, para quem o cartaz do BE é “negativo”, “falseia uma verdade” e “desqualifica quem a propaga”, sendo que falsear uma verdade “é a pior das mentiras”!



O assunto, como se compreende claramente, é complexo e envolve múltiplas e delicadas dimensões políticas, sociais, filosóficas, religiosas, cívicas, simbólicas, jurídicas e éticas, todas muito para além de um afinal mero cartaz com truques de propaganda pouco inteligente, dúbia e viciada (além de provincianamente copiada de um deslocado slogan metodista da americana gender equality), mas que nem por isso deixa de merecer ser profunda e criticamente pensado a partir daquilo que, na sua (in)significância malévola e banal, revela e oculta...




– Infelizmente, porém, quanto à maioria dos Católicos e de muitos dos nossos crentes e clérigos, cuja coerência e exemplaridade evangélicas, coragem e integridade de vida cristã (e cultura teológica!) amiúde deixam muito a desejar, talvez nem tenham reconhecido, com específica precisão, na dita peça iconoclasta, uma esbatida figuração da imagem do Sagrado Coração de Jesus (“não só um símbolo, mas também uma espécie de compêndio de todo o mistério...”), e com certeza maior, ainda para cúmulo das palavras e dos gestos que correm nestes injustos e violentos dias de crise e alienado tempo civilizacional em que vivemos, nem terão sequer ouvido falar da bem memorável Haurietis Aquas...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 01.03.2016):




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Nota:
A primeira parte deste texto foi publicada no jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 27.02.2016) e em "O Sinais da Escrita" (http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2016/02/a-familia-do-cartaz-independentemente.html), tendo a respectiva sequência, aqui integralmente incluída, sido publicada separadamente também no mesmo jornal, em 01.03.2016):