Uma exigência de Angra
ou Salomão e a Torah
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Recebi de uma amiga terceirense,
a residir em S. Miguel, uma ficcional cartinha de opinião satírico-política
destinada a várias amizades e parentelas açorianas comuns e já divulgada
publicamente no “Correio dos Açores” (CA)
de domingo passado, com um picante, compreensível e crítico espírito de cumplicidade corisca...
O assunto, opinado no “Diário Insular”
de sábado último, prende-se com um desejo ardente, que por estes quentes dias
sanjoanínicos se levantou inflamadamente bairrista, dramaticamente
reivindicando, em nome de uma arrazoada e insólita “complementaridade entre
ilhas e testemunhos” (sic), versus o
sempre temido “concentracionismo” regional (micaelense?), a vinda (ida ou regresso?)
para a ilha Terceira de uma Torah que supostamente fora da família Abohbot (durante anos
residente na cidade de Angra do Heroísmo)!
– A história é conhecida, mas –
ao que sabemos – deverá ainda vir a ser bem mais elucidada pelo Dr. José de Almeida
Mello, historiador e respeitado director da muito notável e estimável Sinagoga
de Ponta Delgada...
É evidente, como se dizia no CA, que a questão, embora estando para além do agora extemporaneamente reclamado,
vale também a pena ser retomada sem subterfúgios, tanto mais quanto foi por lá
defendida a estupenda ideia de (re)meter
imediatamente a dita Torah para os depósitos e guarda da abstrusa nova/velha
Biblioteca Pública de Angra (obra lindeza
dos sucessivos projectos, adjudicações, empreitadas, dinheiros e prazos
sucessivamente descambados e denunciados pelo Tribunal de Contas (1), para além das
generalizadas avaliações negativas, duvidosas ou reprovadoras da sua
arquitectura, estética e volumetria, implantação na malha urbana citadina,
previsão de custos futuros de funcionamento, funcionalidade e manutenção, etc.:

– Coisas todas mais do que polémicas,
como é sabido e a cartinha no CA
também acentuava, mas sem sequer chegar a fazer referência ao resto das
vergonhas que por aí pairam, à má sombra e rédea solta da mediocridade
político-institucional instalada a quase todos os níveis e interesses
corporativos ou de classe, e bem assim em praticamente todo o remanescente da
paisagem monumental, industrial, comercial, turística, associativa e
patrimonial terceirense em geral (e angrense em particular), desde a política
aeroportuária e universitária aos Celeiros e ao Hospital velho; da Pronicol à
Estalagem da Serreta e os noveis empreendimentos no turismo; das casas
arruinadas ou abandonadas no centro da cidade aos impasses estruturais e
sociais com o “cerrado grande” das Lajes e a Praia da Vitória (crises ainda no
adro...), e até com a heróica e psicologicamente
compensatória beleza da neo-estatuária planetária e suas afins resoluções culturais
em Angra, desde o artístico e velho curral estilizado nas Portas de S. Pedro às
alfandegárias portinhas do mar e da
marina, passando pelas rotundas das Avenidas, entre belas amarrações de rede e
pedregulho, possantes atributos da nossa proverbial taurinidade (civilizacionalmente
hegemónica...) e um atónito Álvaro
Martins Homem, roído pelos ventos das glorietas esquecidas deste terra, no
pedestal da sua secular e nobre capitania de antanho, para ali a esfarelar-se
não muito longe da (sonhada pelo IHIT, mas adiada?) estátua evocativa da gesta
dos nossos Corte-Reais pelo nosso Canto da Maia... – suplantado agora, também
esse até, por aquela réplica de figura gâmica em apressado chão raso no famigerado Pátio da Alfândega e rodeado, por estes
dias e noites, de paritárias tascas e tasquinhas com caracóis, bifanas, cerveja
e animados selfies, à laia de peça de
arte efémera provincianamente retirada de algum carro de desfile ou quadro
alegórico, em cenário popular e
castiço para um idêntico Portugal dos
pequeninos nautas e dos alegretes brasões ilhéus.
E mais, digo – voltando ao
assunto principal! – que tudo aquilo foi mesmo ali apontado no CA com fundamento sociológico e institucional bastante, que subscrevo
aliás, tendo sido perpetrado, novamente, como infeliz e recorrentemente
acontece, perante o silêncio (cobarde, cúmplice e demissionário?) de certas (ditas)
“elites” (?) locais, há anos e anos em lugares de medíocre, submisso ou
cabisbaixo Poder político-social e partidário, (in)acção institucional, comodismo
histórico-cultural e alienação decisória...

– Ora é por essas e outras razões
(a tempo devidamente tratadas e sempre reabordáveis) que concordei logo com a citada
proposta (nascida há uma dezena de anos e que também ouvi reafirmar, e
identicamente retomei junto de tanta boa gente açoriana) sobre a legitimada, propícia e adequada criação
nos Açores de um Centro de Estudos
Judaicos, a sediar (por direito e
merecimentos éticos, culturais e espirituais próprios!), na Sinagoga Sahar Hassamain (carinhosa,
promissora e tão exemplarmente recuperada e reaberta em S. Miguel, com os
inexcedíveis zelos e empenhos, entre outros, dentro e fora do Arquipélago (no País
e nos Estados Unidos), de Almeida Mello e da Câmara Municipal de Ponta Delgada,
conforme testemunhei em diversas ocasiões aqui mesmo (2) , e como aquela
“corisca”, nossa amiga e correspondente no “Correio dos Açores”, mostrou ter
ouvido e aquiescido também...).

E é por tudo isso, finalmente
ainda, que volto a discordar hoje, à
margem de qualquer tipo de bairrismo
serôdio (incoerente, inconsequente, tardio ou em lei e letra mortas de qualquer alcance sério), daquela inusitada,
abusiva, injusta e descarada reivindicação
– apenas caprichosa (revanchista e invejosamente?) museológico-arquivística,
bem merecedora, por esse lado, de outra mais amadurecida sentença à Salomão...
– de (v)ir-se a arrecadar em Angra a famosa Torah (vulgarmente apelidada “de
Rabo de Peixe”) que está hoje, devidamente preservada e acessível, na
Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, após uma série de peripécias que,
esperemos, hão-de ser sistematicamente clarificadas e esclarecidas em breve,
para descanso de consciência e proveito autêntico, generoso e transparente de todos os competentes e habilitados estudiosos e amantes das heranças e
destinos do Judaísmo no Mundo e entre nós, e bem assim dos genuínos e verdadeiros
Amigos da nossa derradeira e honrosamente salva Sinagoga açoriana.
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 21.01.2016):