CARTA NOVÍSSIMA
para Daniel de
Sá
(1944-2013)
1. Estava a contar os dias que faltavam para nos encontrarmos de novo, porém
ainda por cá onde tanto demandámos e pensámos os Novíssimos da Ilha, e por
entre tantas palavras, sonhos e arroubos, alguns apenas nominalistas, outros
escatológicos, visionários ou retóricos como os do nosso amado Padre António
Vieira, – quem sabe se ele lá contigo nesta hora, ou tu com ele, fora desta
temporalidade, noutro púlpito resistente e perpétuo, ou na Luz do Corpo Místico
que ele, apocalíptico, também paradigmaticamente evocou, à beira do Abismo aonde
toda a Terra treme, clama e desponta, na aurora do Dia Novíssimo, para a Última
Resposta…
… Estava eu a desfiar esse rosário de expectativas
– ia a dizer-te –, meu caro Daniel, para querer continuar os nossos diálogos, quando
me chegou de rompante a notícia da tua súbita e derradeira partida para o mais
fundo, distante e todavia próximo dos silêncios!
– E num instante, então, agora, assim, tão
devagar no sobressalto, perdemos ambos a acalentada confiança que tão fraternalmente
tinhas expressado naquela bela narrativa do teu último périplo terceirense,
quando dizias – naquele modo que os dois bem em cumplicidade antiga e na
verdade logo percebemos e acordámos – gostar de “conversar longamente com o Eduardo Ferraz da Rosa. Da sua escrita e da
sua amizade com Nemésio.
“Da
escrita, perguntar-lhe se ele exercita nela conscientemente, ou por acaso, o
que me parece ser um exemplo prático da Fenomenologia de Husserl. É que eu leio
o que o Eduardo escreve, e crio uma ideia do que as palavras significam. Mas
depois volto às palavras para verificar se essa ideia de facto lhes
corresponde. E, parafraseando aquela que, por amor e necessidade, é a pessoa
mais indispensável da minha vida, dir-lhe-ia que, se Nemésio tivesse estudado
mais, não teria tido tempo para aprender tanto. Não nos haveria deixado,
portanto, um livro quase esquecido, uma torrente de cultura, como é o ‘Jornal
do Observador’. Nem, provavelmente, o ‘Mau Tempo no Canal’, porque, fosse ele
mais aplicado nos estudos e mais paciente com os professores, e não iria parar
à Horta para obter um diploma com a mesma classificação do de João de Deus na
Universidade”…
Ora
é para isso, e como se estivéssemos os dois finalmente sentados frente a frente
e a ver o nosso mesmo Mar, que tão gratamente quis recolher, evocar e citar
neste dia as tuas palavras, Daniel, porém logo também para devolver-tas com outras,
as minhas, de outrora – mas agora para sempre relidas e refeitas, ou
futuríveis, quem sabe afinal? – que te enviei há anos, deste mesmo lugar da
Terceira, mas de um tempo outro, no derradeiro e ventoso Outono que atravessaste.
Todavia, não tenho a certeza de algum dia (não) as leres, ou (sim) as receberes
no ressurrecto modo do Mistério que
nenhuma Fenomenologia, como bem detectaste, do Homem terreno – aqui neste frágil
e contingente destino do pulvis (…) et in
pulverem reverteris – poderá alguma vez explicar, ou sequer compreender
(a não ser, pode ser, sob o modo de alguma crença ou da Fé que ambos
partilhamos...).
– E aqui vai pois, meu caro Daniel,
o que repito, praticamente sílaba a sílaba, e torno a querer dizer-te hoje, identicamente
como desse passado Janeiro de 1995, no Suplemento
Açoriano de Cultura que o Vamberto Freitas empenhadamente coordenava no
“Correio dos Açores”, para o mesmo Futuro Absoluto (que já ali o era eternamente):
2. Para a tua ilha do nosso Arcanjo, como Ruy Galvão
de Carvalho sempre acentuava na datação propiciadora de um lugar de luz para a guarda da
Palavra vai a última carta que te escrevo.
– Estou aqui em Angra, mas é quase como se não tivesse chegado a partir de onde vim, daquela morada, terra e templo de Reminiscência Absoluta – afinadas estas por uma dimensão existencial que já foi legitimada e assumida em longo processo crítico e horizonte semântico e metafísico – compreendes? –, digo, daquela Praia minha, da mesma ou análoga à que Vitorino Nemésio, tão significativa e paradigmaticamente sempre chamou de “nossa mãe”, dizendo-a desse modo por relação ao sentido fundamental, matricial a genésico da sua Poética, da sua Filosofia e da sua Fé…
Ora acontece que é por causa dessas
categorias que te mando novamente
hoje estas palavras fraternas. Refiro-me, como terás já apreendido, ao núcleo de significação mais essencial
que aquelas figuras ou metáforas retêm, e que hoje se me tornou a relevar e
revelar de repente ainda mais em novo fulgor
e relevância de verdade, ao ser-me chamada a atenção para um espantoso e
pequeníssimo lapso tipográfico que a tua bela e humaníssima missiva então
continha.
De facto, na mensagem a que me
estou referindo, e na qual generosamente e mais uma vez com igual Amizade e
certeira e rigorosa Exegese disciplinar, tiveste a viva memória e a afectuosa e
intencional lembrança de me descobrires e nomeares num parágrafo e entre
aqueles (outros) vultos que são da verdadeira e unicamente grande estirpe e
condição que (a todos) nos poderia e deveria unir e reunir in gente, lá resvalou o alfabeto (que não a gramática!) de vogal em
vogal, como ao nosso Nemésio, de vaga em vaga
vocálica…, de uma a outra delas, e então de um “o” penúltimo se acercou a
prosa de um “e” mais original no andamento da declinação prototípica, e assim
de mão se chegou a mãe, e eu (em abençoado destino suplementar), de contraparente,
amigo e discípulo, me vi baptizado em Irmão
de sangue verdadeiro!
– Feliz corrente de composição que
a tanta proximidade de natureza e semântica acabou por deixar resumir a
ideia…
Surpreso, pois, na maravilha de sentido que um lapso
técnico de gesto no teclado foi capaz de gerar (e tão verosímil em seu segredo e maiêutica ocultação foi,
que nenhuma outra revisão se mostrou ciosa ao ponto de a invejar em golpe de
correcção!), – não resisti, neste inesperado contexto, ao encantado impulso de
te mandar, com devida e maior estima, este ramalhete de escrita, alinhadas e
alinhavadas as minhas próprias letras para testemunho de gratidão pelas tuas
pessoais, bondosas e lisonjeiras referências às minhas humildes demandas
ensaísticas, filosóficas e literárias.
3. Cá se realizou o Outono Vivo, mas tal como muito bem vislumbraste da outra vez, na
autêntica proximidade espiritual que
às vezes só mesmo uma virtuosa e conjuntural distância garante e sela para o mais gratificante futuro absoluto (como, nas mesmas e
todavia outras maiúsculas de grandeza escatológica o nosso Karl Rahner
tematizou, como sabes…), também nestas aventuras de encontro e reencontro é bom
que se perdoe “alguma coisinha”, porquanto, com certeza, mesmo a Terceira, “lá
por ser de Jesus, não é por força em tudo virtuosa apenas”…
– Tenho tenha pena de lá não teres
estado! E agora, maior é ela ainda quando leio que sentes e dizes mesmo, na
solidão confessada, não quereres cair
na lamúria.
É que – entendes? – cá por esta “Treceira de Jasus”, com os seus pretensos ou supostos donos e proverbiais padrinhos e puxadores de dança e contradança vária, em tanta corrida, passo e queda se quedarem alguns infelizes, diletantes e aduladores, que já nem ao nível do chão vão, antes de lá e amiúde dele nem conseguem levantar-se, no que aliás seguem em razão inversa às dos conceitos predicáveis do Sermão da Caída…
Mas seja lá como for, ou não seja,
também agora te quero afiançar das minhas saudades da tua Maia e desse calor
tão franco e mais reanimador, e tão diverso e tão nobre, ao menos na esperança
e na sua inteireza singela de pão e mesa e caldo de tanto ideal e persistente
sonho fraterno…
– Lembro-me muito bem de tudo isso,
de novo aqui, longe da mão da porta e do sentido-mãe das ruas e das casas, e da
minha casa na Praia, e do rosto materno e definido das pessoas e das coisas, mas
ainda mais hoje, depois do tempo e do espaço, das mães universais que lá e cá (como de facto e na genuína solidez da
Vida e do Amor, em todo o lado) sempre nos hão-de fazer pensar, sentir e agir, crescendo interiormente para o mais que
importa e vale!
A
terminar, saúdo-te, de novo, na certeza de um dia poder acolher-te pessoalmente
na nossa real Praia da Vitória. Aí hei-de mostrar-te, por minha própria mão, responsabilidade,
olhar e coração, aqueles recantos de Nemésio e da Praia-Pátria Açoriana e
universal de sempre que só é conhecida e reconhecível por aqueles que a amam e
compreendem; ou vice-versa, tanto faz, porque, como tu também sabes, entre o
paciente amor da Sabedoria e a sabedoria paciente do Amor, talvez não valha a
pena acentuar mais nenhum daqueles usuais, às vezes pérfidos e rasteiros,
esquemas de dualismo racional, poético e ético, – todos eles em que, tantas e
escusadas vezes, por entre fúteis e crispadas letras, se perdem as palavras
sapientes e se desencontram os afectos e os espíritos, por melhores que sejam
as literaturas e o que delas há-de restar!
Sem mais, por aqui agora me deixo também ficar sem lamúria mas grande tristeza, para procurar continuar a aprender com tudo e com todos, enviando-te um grande e definitivo abraço firme e fraterno, e pedindo-te que aceites todo o respeito e a minha admiração, ao ver-te partir para onde, junto aos nossos todos juntos, esperarás certamente por nós, na Saudade do Futuro.
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Em “DA” (“Diário dos Açores”, Ponta Delgada, 29.05.2013);
Visualização e Download aqui:
“Os Sinais da Escrita”:
RTP-Açores:
e Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2364&tipo=col.