Uma Herança Sonhada
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Na arca de livros, papéis e
outras peças documentais e particulares de família que me coube em sonhada herança receber de meu
tio-bisavô Eduardo Ferraz de Meneses – nascido 70 anos antes de mim, ou seja em
1884 –, encontrava-se um Caderno com anotação de memórias, um pequeno Álbum com
fotos e postais, e um Maço (pacientemente alinhado e atado com cuidadoso nastro)
contendo diversos escritos seus (Bilhetes e Cartas), sendo alguns destes uma
cópia, por vezes reconhecível ou aparentemente em rascunho e outras esboçadas
versões, de textos enviados ou apenas hipoteticamente mandados e/ou supostamente
recebidos de amigos e familiares com quem se correspondeu ao longo desses anos
tão pessoalmente cruciais e historicamente decisivos como aqueles que
decorreram, e do modo como foram vividos por ele, desde a proclamação da
República até aos finais da II Grande Guerra e à sua própria morte prematura,
em 1947.
Todavia – para além daquelas
gravuras e dos muitos livros da sua rica e variada biblioteca particular
(romances, contos, novelas, biografias históricas, tratados filosóficos, médicos
e esotéricos, dois volumes com Instruções maçónicas, publicações científicas,
manuais técnicos de Metrologia, hagiografias, dicionários, etc. –, lá estava
ainda aquele tal fabuloso embrulho de
endereçadas e/ou recebidas missivas como o mais apelativo legado (talvez porque o seu misterioso conteúdo estivera sujeito durante longo tempo a total restrição de divulgação pública,
como que em quarentena...), – e tanto
assim que nem agora, cumprida a respectiva cláusula
testamental, poderão vir as respectivas peças a granjear integral
publicação (por prudencial dever de razão
futurível ou de reminiscência imaginária,
quando não por razões que o simples bom senso e a contenção de linguagem mais
aconselham...).
– Ora segundo fui apurando, tais
escritos (os que sobreviveram, pois muitos foram destruídos por ele próprio),
chegaram do ou foram enviados para o Brasil (Rio de Janeiro e Bahia),
Macau, Lisboa e Porto, mas também de outras ilhas (S. Miguel, Santa Maria, Faial,
S. Jorge e Flores), e da Terceira (v.g. a Agualva, de onde os meus ramos
maternos eram ambos originários; Angra; Porto Martim, onde vivia o seu amigo
Sousa Júnior, Cabo da Praia e Praia da Vitória, lugares que foram os
derradeiros da sua residência).
Mas a todos esses documentos meu
tio havia-os claramente arquivado e quase escondido
de olhares curiosos, furtivos ou indiscretos (quando não até denunciadores ou
comprometedores de pessoas, ideias e realidades, e bem a par de ficções e factos contemporâneos e
próprios daqueles sítios e do imaginário da nossa antiga Vila vilória...), e
certamente também sem possível conhecimento ou
expressamente manifestada vontade lógico-temporal
de vir a ser eu o fiel depositário de tudo isso (como se deduzirá das
cronologias implicadas nesta diegese e na dita epistolografia).
– E depois, não há a mínima
dúvida que fora intencional aquela reserva de segredos em tão recônditos
compartimentos da sua alma, como o prova o seu cuidadoso arrumo na mítica escrivaninha da nossa casa da
Praia, conforme um dia, quase a medo, por mão de minha avó, me foi dado desvendar
e conhecer em parte, mas com a promessa dessa dita herança, então apenas legado futuro
(ou seja, da mesma revelação a que me reporto aqui), sob compromisso de sigilo que honrei sempre, permanecer absolutamente inédita até à presente e propícia
data!
De resto, a existência do quadro
(in)temporal dessas memórias da Praia – excepção feita à evocada arca, e mais
ainda à restante epistolografia trazida agora a esta confidência narrativa – já
fora aliás por mim contada num texto sobre o “Café do Cipriano” que publiquei
no livro Heranças da Terra (Praia da
Vitória, 2000), quando ali o evoquei também num cenário de recordações para
inserção na galeria dos espaços e dos tempos simbólicos que cifram as nossas mais reais cartografias e temporalidades, assim:
– Em cima, em casa, minha avó
Maria ia costurando um vestido de noiva para a cidade, com a tia do tio
Domingos à janela do quarto grande rezando e olhando o nosso oratório
conventual, dividida entre o seu recato e um prezamento todo subtil na atenção
aos movimentos que chegavam da outra Loja aonde meu tio Eduardo ainda
experimenta o alambique, as suas curiosas iniciações
na dialéctica das operações homeopáticas e os afinos finais nas peças das suas
aferições camarárias.
Ali ao lado, na mesa da velha
escrivaninha, aguardava resposta a apostila versejada com que o seu amigo
Doutor Sousa Júnior o brindara, havia dias, lá na catedrática venda do Porto
Martim, em paga do encaixe pela provocadora multa de aposta feita à balança do
balcão, tal como aquele bisturiado texto que o nosso vizinho Armando Santos
(poeta de rasgo, primo de Nemésio), me havia de recriar, recitando,
absolutamente idêntico ao original, tantos anos depois, em Lisboa, também ele revolto no sonho das Ilhas, naquele
distante e sombrio bairro labiríntico da capital, de pé e teatral no banco
baixo da sua sala, como que visionário e no mais perfeito virtuosismo praiano:
– Ó meu amigo Eduardo, / Ó Ferraz da cambitola, / Vinte paus vão ter
contigo, / Idos da minha sacola! // São “ordes”, me dirás tu; / Sim, são “ordes”
mas do [...]. // Medidas, mando-te seis; / Às outras, tempo as levou...
A tão assombroso espólio desse
meu tio-bisavô – mais precioso do que as suas queirosianas bengalas de
verdadeiro e rijo pau-brasil encastoadas com românticas mãos de prata boémia...
–, valendo o texto neste século e a pena no passado, voltarei doravante
ocasionalmente, ao sabor destes cíclicos
tempos e das espantosas afinidades de destino que neles moram, como em dramático crepúsculo ou
esperançosa aurora – quem o saberá ao certo? – de outro ano de vida participada...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 12.12.2015):
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