A Correspondência de Fradique Mendes
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Eça, Canónico e Crítico
1. Há livros e autores aos quais sempre se volta, por dever e cumprimento de ofício ou pelo
simples prazer de leitura e busca de
quase infinitas reconfigurações para as suas tessituras de sentido, como
propunha Barthes. E depois, tais obras, por tudo aquilo que exprimem, e mais
podem manifestar, fazer descobrir ou revelar – tanto para estudiosos
particulares e leitores reais como na formação dos cânones histórico-literários (veja-se Bloom e Borges...) –
constituem peças de Cultura e de Pensamento (conquanto diversificadas e até
problematizáveis temática, ideológica e estilisticamente...) daquele património chamado (e construído
civilizacional e individualmente) como clássico,
assim sendo guardado, transmitido e revisitável na vida das comunidades e nos tempos
interiores ou íntimos dos leitores,
como bem propôs Italo Calvino.
Ora no caso que tenho hoje em
vista é precisamente isso que acontece com um Autor e com um livro ao qual de
modo cíclico retornamos, ou não fossem eles um Escritor clássico, no âmbito canónico
da Literatura Portuguesa e Universal, e uma obra
aberta, como a definia Eco, que exige também “características estruturais”
que estimulam e ao mesmo tempo regulam “a ordem das suas
interpretações”:
– Refiro-me ao nosso Eça de
Queirós e à sua Correspondência de
Fradique Mendes, livro acabado de
publicar pela INCM (2014) em mais um precioso volume da Edição Crítica das Obras do imortal autor de Os Maias, O Crime do Padre
Amaro, A Capital!, O Primo Basílio, O Mandarim, Alves & C.ª,
A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras, etc. (estando algumas
destas já editadas e outras projectadas nesta notável, única e qualificada série
tão empenhadamente coordenada por Carlos Reis).
2. Inserida nas actividades do Centro de Literatura Portuguesa/FCT
da Universidade de Coimbra, esta edição foi preparada por Carlos Reis, Irene
Fialho e Maria João Simões, abrindo com uma “Nota prefacial” onde é explicitado
o objectivo de um trabalho que foi efectuado com vista a facultar um texto “em
muitos aspectos consolidado, relativamente ao que eram as edições que até agora
dispúnhamos”, tanto mais quanto se trata de “um daqueles títulos que Eça de
Queirós não chegou a publicar em vida, facto que arrasta consideráveis
problemas e inseguranças”, desde logo por decorrerem do facto de estarmos em
presença de “um texto semipóstumo, que
foi projectado e em boa parte organizado
pelo próprio Eça”, mas que “contou com outras intervenções, logo depois do
desaparecimento do seu autor” e na sequência, ainda por cima, de ter sido “a
escrita e a publicação original destes textos (...) acidentada e sobretudo
dispersa”, com uma evidente história marcada por “reescritas”, “emendas” e até
lamentáveis “oscilações de critério editorial” (subtil mas incisivamente,
denunciadas aqui...).
– Esta edição crítica (que é
também antológica de Poemas primevos
e Cartas fradiquistas habitualmente desenquadradas) começa com um minucioso
ensaio sobre A Correspondência de
Fradique Mendes, onde os organizadores retomam reflexões não só sobre a génese e evolução da sua figura e
estilística quanto também sobre o “cânone queirosiano”, o “estatuto ontológico
de Fradique” e “uma certa fortuna cultural” da obra de Eça, após o que procedem
a uma análise estrutural, comparativa e selectiva
das diversas presenças e ausências, manuscritos e espólios do consagrado
escritor, nomeadamente do “manuscrito Salema Garção” (adquirido pela Biblioteca
Nacional em 2004 e catalogado como BN
Esp. E1/310), posto em elucidativo confronto e cotejo com versões
anteriores das Cartas, com os
manuscritos Alberto de Serpa e Menéres Campos, para além, como não podia deixar
de ser, das versões originárias
vindas a público na Gazeta de Notícias,
em O Repórter e na Revista de Portugal.
3. Não tem faltado – porém nem tanto quanto seria de desejar da
nossa cultivada academia lusa, do publicismo culturalista e das suas revistas especializadas ou de mera divulgação, e do tão letrado jornalismo
cultural luso... – elogios criteriosos e construtivas apreciações a este
meritório projecto editorial (de alcance luso-brasileiro), onde para além de
Carlos Reis e das suas Colaboradoras neste volume, merecem referência Elena
Soler, Ana Peixinho, Maria Helena Santana e Maria do Rosário Cunha, para além
do excepcional desempenho de Fagundes Duarte – e nisto numa significativa
linhagem de estudos e estudiosos açorianos sobre Eça (Alberto Machado da Rosa,
Pedro da Silveira, Machado Pires, Frank Sousa, etc.), como salientei em O Risco das Vozes (2006) e em “Insularidade,
Modernidade e Figuras dos Açores em Eça de Queirós” (2012), – a quem coube a
dificílima incumbência de preparar a edição crítica de A Capital!, mas que mais tem produzido – com o grande especialista
queirosiano que é Carlos Reis – uma reflexão
teórico-crítica sobre o mesmo trabalho
crítico subjacente às textualidades e às edições histórico-críticas, numa linha de análise e compreensão não
só estritamente formal, filológico-textual ou estilístico-gramatical quanto hermenêutica (e assim aplicável a outros
domínios e registos discursivos, conceptuais e poéticos, tais o da Filosofia e aos
demais da Linguagem e da Teoria da Literatura, da Língua, da História, da
Linguística e até da Tradução).
– É claro que especialmente no
caso do Eça de A Correspondência de
Fradique Mendes, por todas as razões
que aí criticamente confluem e pelas específicas
potencialidades interpretativas da
obra e do seu autor, do seu pensamento e das suas complexas, intrincadas e pluridisciplinares facetas, horizontes e
contextos (existenciais, histórico-literários, sociopolíticos, estéticos,
psicológicos e filosóficos), também por via deste regresso a essa figura semi-ficcional,
semi ou proto-heteronímica (onde narrador, personagens e personificações se
entremeiam...), mais se acentuam traços, heranças e vigências de uma espécie de
recorrente Modernidade, ainda criticamente nossa (Cesário e Pessoa,
Mário Cláudio, Agualusa e Saramago...), como se tem procurado pensar, repensar
e (des)construir na aura e das “auréolas
mais refulgentes” desse “homem genial” que Eça, dele e com Fradique – isto é, de si próprio e ao(s) outro(s)
de si... –, e a nós também, “vincam a alma – e jamais esquecem”!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 30.05.2015):
Azores Digital:
e RTP-Açores:
http://www.rtp.pt/acores/comentadores/eduardo-ferraz-da-rosa/eca-canonico-e-critico_47000:
http://www.rtp.pt/acores/comentadores/eduardo-ferraz-da-rosa/eca-canonico-e-critico_47000: