sábado, maio 30, 2015


A Correspondência de Fradique Mendes
____________________________
Eça, Canónico e Crítico


1. Há livros e autores aos quais sempre se volta, por dever e cumprimento de ofício ou pelo simples prazer de leitura e busca de quase infinitas reconfigurações para as suas tessituras de sentido, como propunha Barthes. E depois, tais obras, por tudo aquilo que exprimem, e mais podem manifestar, fazer descobrir ou revelar – tanto para estudiosos particulares e leitores reais como na formação dos cânones histórico-literários (veja-se Bloom e Borges...) – constituem peças de Cultura e de Pensamento (conquanto diversificadas e até problematizáveis temática, ideológica e estilisticamente...) daquele património chamado (e construído civilizacional e individualmente) como clássico, assim sendo guardado, transmitido e revisitável na vida das comunidades e nos tempos interiores ou íntimos dos leitores, como bem propôs Italo Calvino.


 Ora no caso que tenho hoje em vista é precisamente isso que acontece com um Autor e com um livro ao qual de modo cíclico retornamos, ou não fossem eles um Escritor clássico, no âmbito canónico da Literatura Portuguesa e Universal, e uma obra aberta, como a definia Eco, que exige também “características estruturais” que estimulam e ao mesmo tempo regulam “a ordem das suas interpretações”:

– Refiro-me ao nosso Eça de Queirós e à sua Correspondência de Fradique Mendes, livro acabado de publicar pela INCM (2014) em mais um precioso volume da Edição Crítica das Obras do imortal autor de Os Maias, O Crime do Padre Amaro, A Capital!, O Primo Basílio, O Mandarim, Alves & C.ª, A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras, etc. (estando algumas destas já editadas e outras projectadas nesta notável, única e qualificada série tão empenhadamente coordenada por Carlos Reis).



2. Inserida nas actividades do Centro de Literatura Portuguesa/FCT da Universidade de Coimbra, esta edição foi preparada por Carlos Reis, Irene Fialho e Maria João Simões, abrindo com uma “Nota prefacial” onde é explicitado o objectivo de um trabalho que foi efectuado com vista a facultar um texto “em muitos aspectos consolidado, relativamente ao que eram as edições que até agora dispúnhamos”, tanto mais quanto se trata de “um daqueles títulos que Eça de Queirós não chegou a publicar em vida, facto que arrasta consideráveis problemas e inseguranças”, desde logo por decorrerem do facto de estarmos em presença de “um texto semipóstumo, que foi projectado e em boa parte organizado pelo próprio Eça”, mas que “contou com outras intervenções, logo depois do desaparecimento do seu autor” e na sequência, ainda por cima, de ter sido “a escrita e a publicação original destes textos (...) acidentada e sobretudo dispersa”, com uma evidente história marcada por “reescritas”, “emendas” e até lamentáveis “oscilações de critério editorial” (subtil mas incisivamente, denunciadas aqui...).



– Esta edição crítica (que é também antológica de Poemas primevos e Cartas fradiquistas habitualmente desenquadradas) começa com um minucioso ensaio sobre A Correspondência de Fradique Mendes, onde os organizadores retomam reflexões não só sobre a génese e evolução da sua figura e estilística quanto também sobre o “cânone queirosiano”, o “estatuto ontológico de Fradique” e “uma certa fortuna cultural” da obra de Eça, após o que procedem a uma análise estrutural, comparativa e selectiva das diversas presenças e ausências, manuscritos e espólios do consagrado escritor, nomeadamente do “manuscrito Salema Garção” (adquirido pela Biblioteca Nacional em 2004 e catalogado como BN Esp. E1/310), posto em elucidativo confronto e cotejo com versões anteriores das Cartas, com os manuscritos Alberto de Serpa e Menéres Campos, para além, como não podia deixar de ser, das versões originárias vindas a público na Gazeta de Notícias, em O Repórter e na Revista de Portugal.



3. Não tem faltado – porém nem tanto quanto seria de desejar da nossa cultivada academia lusa, do publicismo culturalista e das suas revistas especializadas ou de mera divulgação, e do tão letrado jornalismo cultural luso... – elogios criteriosos e construtivas apreciações a este meritório projecto editorial (de alcance luso-brasileiro), onde para além de Carlos Reis e das suas Colaboradoras neste volume, merecem referência Elena Soler, Ana Peixinho, Maria Helena Santana e Maria do Rosário Cunha, para além do excepcional desempenho de Fagundes Duarte – e nisto numa significativa linhagem de estudos e estudiosos açorianos sobre Eça (Alberto Machado da Rosa, Pedro da Silveira, Machado Pires, Frank Sousa, etc.), como salientei em O Risco das Vozes (2006) e em “Insularidade, Modernidade e Figuras dos Açores em Eça de Queirós” (2012), – a quem coube a dificílima incumbência de preparar a edição crítica de A Capital!, mas que mais tem produzido – com o grande especialista queirosiano que é Carlos Reis – uma reflexão teórico-crítica sobre o mesmo trabalho crítico subjacente às textualidades e às edições histórico-críticas, numa linha de análise e compreensão não só estritamente formal, filológico-textual ou estilístico-gramatical quanto hermenêutica (e assim aplicável a outros domínios e registos discursivos, conceptuais e poéticos, tais o da Filosofia e aos demais da Linguagem e da Teoria da Literatura, da Língua, da História, da Linguística e até da Tradução).




– É claro que especialmente no caso do Eça de A Correspondência de Fradique Mendes, por todas as razões que aí criticamente confluem e pelas específicas potencialidades interpretativas da obra e do seu autor, do seu pensamento e das suas complexas, intrincadas e pluridisciplinares facetas, horizontes e contextos (existenciais, histórico-literários, sociopolíticos, estéticos, psicológicos e filosóficos), também por via deste regresso a essa figura semi-ficcional, semi ou proto-heteronímica (onde narrador, personagens e personificações se entremeiam...), mais se acentuam traços, heranças e vigências de uma espécie de recorrente Modernidade, ainda criticamente nossa (Cesário e Pessoa, Mário Cláudio, Agualusa e Saramago...), como se tem procurado pensar, repensar e (des)construir na aura e das “auréolas mais refulgentes” desse “homem genial” que Eça, dele  e com Fradique – isto é, de si próprio e ao(s) outro(s) de si... –, e a nós também, “vincam a alma – e jamais esquecem”!

_________________

Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 30.05.2015):



























Azores Digital:




























Eça, Clássico e Crítico
_________________________________________________________________



Há livros e autores aos quais sempre se volta, por dever e cumprimento de ofício ou pelo simples prazer de leitura e busca de reconfigurações para as suas tessituras de sentido. E depois, tais obras, por tudo aquilo que exprimem, e sempre e mais podem manifestar, fazer descobrir ou revelar, constituem peças de Cultura e de Pensamento daquele património clássico que assim vai sendo guardado, transmitido e revisitável na vida das comunidades e nos tempos interiores ou íntimos dos leitores. Ora no caso que tenho em vista é precisamente isso que acontece com um Autor e um livro ao qual de modo cíclico retornamos, ou não fossem eles um Escritor clássico, no âmbito canónico da Literatura Portuguesa e Universal, e uma obra aberta...

– Refiro-me ao nosso Eça de Queirós e à sua Correspondência de Fradique Mendes, livro acabado de publicar (2014) numa edição preparada por Carlos Reis, Irene Fialho e Maria João Simões. – Ora não tem faltado elogios criteriosos e construtivas apreciações teoréticas, filológicas e formais a este meritório projecto da INCM, onde, para além de Carlos Reis e das suas Colaboradoras neste volume, merecem referência Elena Soler, Ana Peixinho, Maria Helena Santana e Rosário Cunha, para além do excepcional desempenho de Fagundes Duarte a quem coube a dificílima incumbência de estruturar a edição crítica de A Capital! (mas que mais tem produzido – com o grande e maior especialista queirosiano que é Carlos Reis – uma reflexão teórico-crítica sobre o mesmo trabalho crítico subjacente às textualidades e às suas edições histórico-críticas).

É claro que especialmente no caso do Eça de Fradique Mendes, também por via deste regresso a essa figura semi-ficcional, semi ou proto-heteronímica mais se acentuam os traços, heranças e vigências de uma espécie de recorrente Modernidade, ainda criticamente nossa contemporânea (Cesário e Pessoa, Mário Cláudio, Agualusa e Saramago...), como se tem procurado pensar, repensar e (des)construir desse “homem genial” cujas “auréolas mais refulgentes”, como ele(s) escrevem, “vincam a alma – e jamais esquecem”!
_____________

Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 30.05.2015):