MEMÓRIAS E EVOCAÇÃO DE BENTO XVI
E DO TEÓLOGO JOSEPH RATZINGER (3)
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Na
minha Conferência de 2006 sobre a obra Introdução ao Cristianismo de
Joseph Ratzinger – referida na primeira parte deste artigo –, depois de anotar
e comentar o conteúdo dos respectivos “Prefácios” às reedições de 2000 e de
1969, e à primeira edição (de 1967), todos constantes da publicação (Lisboa,
Principia, 2005) que então apresentámos em Angra do Heroísmo, depois do
acompanhamento das esclarecedoras, sugestivas e interdisciplinares perspectivas
da “Introdução”, e assim antes de fazer incidir a exposição e a análise
individualizada a todas as fórmulas, formulações, realidades e categorias
religiosas e teológicas do Credo ou Declaração da Fé (também
chamado “Símbolo Apostólico”) – tratadas nas 1.ª, 2.ª e 3.ª Partes Centrais do
livro (sobre Deus, Cristo, o Espírito e a Igreja), e nesta última especialmente
sobre o fundamental, complexo mas importante parágrafo 2 do capítulo II, cujo
tema havíamos estudado, mais crítica e aprofundadamente, por relação à
problemática conjunta e articulada entre a Antropologia Filosófica e a
Escatologia propriamente dita (aliás motivo
de grande e natural atenção por parte de Ratzinger, que lhe dedicaria não
só uma outra e inteira obra autónoma e sistemática, como havia assinado, a par
de Rahner e Schmitt, os verbetes sobre aquele complexo assunto na Sacramentum
Mundi, sob a direcção do primeiro daqueles seus colegas teólogos).
Postas
assim as coisas, tratou-se de expor e debater as múltiplas questões sobre as
quais a Introdução ao Cristianismo se debruçava, nomeadamente, como
recordo, a situação actual da Fé em Deus e em Cristo; os conceitos do Divino e
a dimensão Mística; a crise da Teodiceia após Auschwitz; o Logos, a Criação e a
Cristologia, enfim, as dificuldades hodiernas do discurso crente e do
próprio estatuto dos teólogos (quando não dos filósofos e do homem
comum…), nos inseguros terrenos da Fé, do “poder aflitivo da incredulidade
presente” dentro da própria vontade de crer e dos limites “da
compreensão moderna da realidade” (alicerçada, segundo Ratzinger, após o
declínio da Escolástica, nas guinadas da subjectividade cartesiana e da razão
kantiana, do historicismo e do cientismo materialista, até ao contemporâneo
pensamento técnico).
–
Ora foi também a este propósito que Ratzinger recorreu à famosa parábola
profética do clown circense de Kierkegaard, tantas vezes retomada por
outros (de Harvey Cox a Leonardo Boff) perante os sucessivos incêndios
societários e ecológicos nas insensatas cidades e campos dos homens, que só a
alienação desavisada das massas, dos rebanhos e (também!) dos seus “pastores”
(entre eles os de uma clerezia envergonhada e mal formada, tão zurzida pelo
autor…), foi capaz de acolher, rindo e sofrendo nas suas próprias tendas,
templos e areópagos.
Perante
este decadente e deprimido quadro socio-religioso, individual e institucional,
mental e moral (um “oceano de incertezas”) , desenha o futuro Papa Bento XVI as
grandes sendas alternativas para uma autêntica e profunda reafirmação da Fé,
assente na (re)conversão, na consciência dialógica aberta a uma esfera da
realidade que acolhe e segue um “anseio de absoluto” que está inscrito na
dinâmica estrutura fundamental, antropológica e metafísica do próprio
sujeito, ou seja, como ele escreve, na consciência espiritual incarnada, isto
é, na existência humana.
O
teólogo de Introdução ao Cristianismo é também um humanista culto,
bastante versado nas Humanidades, nas Artes e nas Letras, sendo inúmeras as
suas bem evidentes vivências e domínio da Música – veja-se, por exemplo, não só
as suas clássicas preferências musicais quanto a sua notável reflexão (declaradamente
herdeira e seguidora de Guardini) sobre a Antropologia da Imagem Sacra, a Arte
Religiosa, a Teologia Litúrgica, o Canto e a Prece, enfim, sobre a própria “lírica
eclesial”.
–
Autor de uma muito vasta obra, bem reveladora da sua Cultura e da amplitude do
seu Pensamento, tanto nos tratados ou ensaios académicos quanto na
discursividade dialogante das suas sempre esclarecedoras e conhecidas
Entrevistas, nas Alocuções e Catequeses, no seu conhecimento da Patrística
(Padres e Doutores da Igreja), com destaque para os seus dilectos S. Boaventura
(cuja Teologia da História estudou a fundo) e S. Agostinho (cuja dimensão
existencial lhe foi sempre decisiva), e bem assim nas suas Encíclicas, Joseph
Ratzinger foi na verdade um marco intelectual superior na galeria dos Papas.
Sendo
verdade que nem toda a sua obra teológica e pastoral, e a sua acção doutrinal receberam
apoio ou congratulação unânime na Igreja e fora dela – especialmente pelo seu
papel, determinações e orientações concretas como Prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé, nem por isso se lhe pode fazer acusação de incoerência,
intransigência conceptual absoluta ou incompetência de fundamentação argumentativa,
mesmo nos pronunciamentos mais controversos…
Uma
palavra final quero deixar hoje no que se refere mais concretamente, apesar da
grande qualidade das suas obras teológicas, quer à actuação de Ratzinger como
Prefeito da Fé e como Papa, quer às alegadas omissões a propósito dos
escândalos de pedofilia na Igreja, insistentemente agitados hoje, porquanto, uns
e outros recorrentemente repisados, nalguns casos o foram e são com menor ou
temerário juízo de acusação estratégica, sem provas (que sempre devem ser
apuradas para merecida repressão, castigo e penas; e noutros, o foram e são com
evidente desconhecimento de causa e matéria textual, quando não de ignorância,
leviandade, ou mera incompetência disciplinar.
–
E depois, no domínio duplamente ilícito e pecaminoso dos provados abusos
sexuais, como poderia crer-se que encobriria factos e crimes ignóbeis e
escandalosos desse jaez, quem, tanto civilmente e “considerando a gravidade dessas culpas e a resposta muitas vezes
inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas”, sobre eles e elas escreveu, por exemplo, a “Carta
Pastoral aos Católicos da Irlanda”!?
Escrevo
e termino este texto na véspera do funeral e última despedida de Joseph
Ratzinger/Bento XVI, relendo e retendo uma parte do seu Testamento, aí
constatando novamente a coerência do seu
Pensamento Teológico, Filosófico e Ético, condicente com a nobreza Espiritual
da sua Alma e do seu Coração:
– “A todos
aqueles que de algum modo tenha cometido um erro, peço perdão de coração.
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