Os Ditados do Tempo
em Fernando Aires
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Numa feliz iniciativa da
editorial Opera Omnia (Guimarães, 2015), chegou-nos recentemente o livro Era uma vez o Tempo – Diário (1982-2010)
de Fernando Aires.
Prefaciada por Eugénio Lisboa –
com posfácio de José Leon Machado e coordenação de Maria João Ruivo Sousa
Franco –, esta volumosa obra reúne os Diários
(I a VI) daquele escritor nascido e falecido em Ponta Delgada (1928-2010),
estimado professor, jornalista e cronista que também publicou uma novela (A Ilha de Nunca Mais, 2000), contos – Histórias do Entardecer, 1988, “Prémio
Nunes da Rosa 1988”; Memórias da Cidade
Cercada (1995) – e ensaios – v.g. José
do Canto – Subsídios para a História Micaelense (1820-1898); Faria e Maia e Antero (1961); Afonso Chaves (1982); Alice Moderno – A Mulher e a Obra
(1985), e Delinquência e Emigração em S.
Miguel na 1.ª metade do séc. XIX (1988).
– Com ligeireza tem às vezes a diarística (de facto nem sempre formal
ou modelarmente praticada de maneira equivalente) sido vista como género,
subgénero ou estilo menor (porque julgada demasiado “intimista”, “fechada” ou
“auto-referenciada”), enquanto narrativa
autobiográfica (que também é).
Porém, cronologicamente
sequenciado e pautado por registos de quotidianos singularmente experimentados,
temporalmente revividos, subjectivamente interiorizados e selectivamente
reflectidos, sempre os Diários, como salientaram Carlos Reis e Ana Cristina
Lopes nos seus estudos narratológicos – e assim tão apelativa e admiravelmente
se dá nesta excepcional obra –,
revelam uma complexa fragmentação
diegética e uma tendência para o
confessionalismo (aqui simultaneamente crítico, poético e vital), ambos
muito apelativos e exigentes...
– Tenho bem presente a delicada
figura, a sensível personalidade e a notável obra de Fernando Aires, com quem
partilhei saudosos espaços de convívio cultural e de docência na Universidade
dos Açores, e de quem releio hoje o que dele registaram amigos, colegas,
companheiros e críticos (Almeida Pavão, Vamberto Freitas, Urbano Bettencourt,
João de Melo, Nuno Costa Santos, Eduíno de Jesus, Assunção Monteiro, Adília
Araújo...).
George Monteiro, no JL de 11 de Maio de 1994, já havia
salientado que a obra de Fernando Aires se encontrava, na “muita boa companhia”
de outros “autores de diários, concebidos e produzidos para publicação”, e no
mesmo ano Eugénio Lisboa não hesitava em nomear o escritor micaelense, a par de
Torga, Manuel Laranjeira, Irene Lisboa, Florbela, Régio, Vergílio Ferreira e
Marcello Duarte Mathias, entre muitos outros certamente, como senhor de “um dos
mais belos e sensíveis diários em língua portuguesa”, acentuando também agora
no seu Prefácio:
– “A escrita deste diário é discreta
mas quase sempre sedutora, eficaz e, não raro, reveladora de um cúmulo da arte
de escrever. (...) Fernando Aires perscruta os segredos profundos da língua e
da escrita e fá-lo, por si próprio, sem se agachar nem a escolas nem a modas.
(...) O diário é rico de meditações, de percepções, de assombros que surgem no
decorrer dos dias e que o escritor vai registando com pathos variado. O efémero
da vida – o sic transit... surge de
quando em quando, ou porque morre um amigo, ou, simplesmente, porque a evidência
disso fulge inesperada e imperiosamente e magoa a alma assim visitada: ‘Se a
finalidade da vida é apenas e só, viver, oh, vida que tão depressa te cumpres
em cinza, pó e nada! Como dói a tua pressa em cada um que se cumpre e não
voltará jamais a cumprir-se. Jamais. Jamais’. Raul Brandão não andará longe”.

– A abrir este livro, em “Nótula
Biobibliográfica”, Maria João Ruivo Sousa, justamente assinala os percursos de
Fernando Aires (seu pai), sinalizando a sua ligação às tertúlias literárias e
jornalísticas de meados do século (com Eduíno de Jesus, Jacinto Soares de
Albergaria, Fernando de Lima, Eduardo Vasconcelos Moniz e outros condiscípulos,
“com quem viria a constituir, em 1946, o Círculo Literário Antero de Quental,
que, pela sua actividade literária, contribuiu para a divulgação do Modernismo
na ilha de S. Miguel:
“Os primeiros escritos deste
grupo começaram a circular na imprensa de Ponta delgada a partir de então,
primeiro na página literária do Diário
dos Açores, coordenada por Oliveira San-Bento, e na do Correio dos Açores, coordenada por Ruy Galvão de Carvalho e Diogo
Ivens, e logo depois no semanário A Ilha,
dirigido por José Barbosa. Fernando Aires publicou nesses jornais alguns
artigos e pequenos contos, assim como os primeiros parágrafos de um diário
íntimo”.

– Ora é por tudo isso (mesmo
atendendo ao conhecido património diarístico já existente) que estes Diários de Fernando Aires e as suas
fascinantes leituras geram, ou podem suscitar, prazer espiritual e marcam nova, genuína e ímpar presença “salpicada de humanidade e
ternura, paixão e compaixão” (como bem sentiu e exprimiu o Onésimo Almeida), seja por
quanto neles se entretece e concretiza de fino
discurso literário (dramaticamente dito, sincero, compartilhado, catártico,
metamórfico e redentor...), seja pelos específicos
mundos, incisos filosóficos, vivências histórico-culturais, memórias
geo-humanas, amores e projecções de uma ditada existência insulada, porém transcendentalmente
oceânica, na qual Vida, Morte, Passado, Destino e Esperança coabitam em
rostos, terras, águas e palavras feridas nos enigmas do Tempo presente e dulcificadas
na saudade do Porvir:

“Ponta Delgada, 18 de Dezembro de 1982: O Outono quase no fim. Um
céu liquefeito como certos olhos azuis rasos de água. A luz pousando na terra
sem ruído. Depois da manhã cheia de horas intermináveis e de gestos
obrigatórios, este sabor de vida. Este pão tostado ao calor da intimidade. Esta
migalha de tempo tantas vezes adiada.
(...) Lisboa,
13 de Maio de 1988: Só o que é fugaz conserva fascínio – assim como a vida
que, se não fosse a morte, não seria o desejo que é”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 02.04.2016):
Outras versões __________________________
Em "Azores Digital":
RTP-Açores:
e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 02.04.2016):