domingo, junho 20, 2010

Augusto Gomes: Uma Evocação de Memória à Porta da sua Casa

Em boa hora deliberou a Junta de Freguesia de Santa Luzia concretizar esta justa Homenagem a Augusto Gomes, inserindo-a – e bem! – numa série de outras iniciativas conhecidas, já programadas e anunciadas, e visando, todas elas, assinalar a vida e a obra de pessoas e instituições cuja existência esteve, ou está, de múltiplos, honrosos e exemplares modos, ligada a esta parcela da cidade de Angra do Heroísmo e aos seus patrimónios humanos, histórico-culturais e cívicos.

Deste unânime reconhecimento dá pois hoje sinal esta empenhada Junta de Freguesia, fazendo colocar uma Placa em sua Memória e Evocação, na presença associada – que também saúdo nesta cerimónia e nas que se vão seguir –, dos representantes das nossas principais autoridades camarárias e concelhias (Presidente da Assembleia Municipal, Dr. Ricardo Barros, e Presidente da Edilidade, Dr.ª Andreia Cardoso), do Rev. Mons. José de Lima, de parentes, amigos, vizinhos e demais amigos e companheiros presentes do homenageado.

A figura que hoje evocamos aqui – mesmo à porta da casa que durante tantos e tantos anos habitou, e que a muitos de nós também hospitaleiramente se abriu para amena cavaqueira, em tertúlia de Cultura e Gastronomia, ou apenas para múltipla e diversificada rememoração de outros tempos, linguagens e modos de viver da nossa terra e das suas gentes –, foi um honrado cidadão, um militar louvado e um exemplar e genuíno amigo da nossa Ilha Terceira e dos Açores:

– Comendador da Ordem de Mérito, Medalha de Mérito Militar, Medalha de Comportamento Exemplar (Grau Ouro), Medalha das Expedições e Medalha das Campanhas de África, Augusto Gomes, nascido em Angra do Heroísmo a 6 de Maio de 1921 e aqui falecido a 21 de Novembro de 2003, deixou-nos preciosos e incansáveis trabalhos de recolha, quase arqueológica, de comunitárias vivências e marcas socio-históricas constantes de uma produção de escrita vasta e variada, mormente em Conto, Teatro, Jornalismo, Crónica e Poesia, para além de uma significativa investigação de referência na área dos Estudos Etnográficos, culturais e populares açorianos, que hoje, bem a propósito e mais uma vez, merece ser recordada com carinho e adequado louvor.

Excepcional contista e apaixonante contador de pequenas grandes histórias do nosso passado – como anteriormente já tive oportunidade de referir –, com rostos, gestos, trejeitos, falas, cantos, olhares, indumentárias, crenças arcaicas e casticismos locais – tudo num paradigmático repositório societário de realidades, personagens individuais e actores institucionais que povoaram os nossos espaços públicos e os confinamentos reais dos nossos quotidianos e dos nossos imaginários mais ou menos circunscritos e privados –, Augusto Gomes dedicou-se também ao Teatro, como não podia deixar de ser em tão animada personalidade…

– E foi assim que ele próprio, homem de palcos e de viagens (com armas, binóculos, bagagens e lentes, por esse mundo de Deus fora e por essas paragens que foram de Portugal…), escreveu, encenou, ensaiou, dirigiu e representou as suas próprias Revistas (Em mangas de camisa, Alagado pingando, Talvez te enganes e Faz-me cócegas), noutras participando como actor (como em De vento em popa, Sabe-se lá e Fatias douradas, de Eduardo Melo), na peça Ao mar (de Manuel Coelho de Sousa), na opereta Glória ao Divino (de Frederico Lopes), ou ainda no seu próprio tentâmen operático regionalista de Amor campestre

Diligente estudioso das tradições e figuras da nossa memória colectiva, de manifestações teatrais, artísticas e gastronómicas populares, e da cultura oral e prática das nossas ilhas e das suas gentes, a tanto emprestou assim Augusto Gomes os seus talentos, verves literárias e ficções narrativas, servidos todos por uma grande capacidade de observação, fixação, reprodução e recriação de muitas das nossas raízes e heranças!

Jornalista de imprensa, membro da Gávea e colaborador da rádio (aqui manteve um rubrica, “À laia de conversa”, no programa Panorama do Rádio Clube de Angra), Augusto Gomes colaborou em quase toda a Comunicação Social açoriana, tendo sido Director do jornal “O Búzio” (órgão da Comissão de Apoio e Dinamização das Colectividades Culturais e Recreativas da Ilha Terceira), Chefe-de-Redacção da revista Ilha Terceira e do jornal “Kit-Bag” (na Beira, em Moçambique), e correspondente do “Correio dos Açores” (nos anos 50) e da revista Cooperação (anos 60). E por mim quero também recordar, com saudade nesta ocasião, a sua amável anuência ao convite que lhe fiz para participar no “Jornal da Praia” e em Diálogos, Suplemento de Cultura, Arte e Ciência que tive o gosto de dirigir no jornal “A União”.

– Em 1966, quando colaborava no jornal angolano “A Província”, foi o nosso escritor premiado (por um conto, depois publicado pela revista Mais Alto) nos Jogos Florais Castrenses de Luanda. Mas já em 1958, nas Comemorações Faialenses do Centenário de Florêncio Terra, havia ganho, com o conto “Perdoe pelo amor de Deus”, um Prémio no Concurso para Conto Regional, tendo sido distinguido, logo a seguir, na Ilha Terceira, com primeiros lugares nos lembrados Jogos Florais das Festas Sanjoaninas de Angra do Heroísmo, com os contos O Silêncio do Amor (1958), Ciúme (1959) e Mulheres (1960) …

A sua obra em livro, variada e muita sugestiva, continua a suscitar interesse e procura, dela constando os seguintes títulos:

Perdoe pelo Amor de Deus (com Prefácio de Manuel Coelho de Sousa), 1981; Cozinha Tradicional de S. Miguel (com Prefácio de Silveira Paiva), 1988 e 1997; A Alma da nossa Gente (com Prefácio de Jorge Forjaz), 1993; Teatro Angrense, Elementos para a sua História (com Prefácio de Joaquim Ponte), 1993; Cozinha Tradicional de Santa Maria (com Prefácio de Maria da Conceição Bettencourt Medeiros), 1998; Cozinha Tradicional da Ilha Terceira, com 5 edições até 2002 (com Prefácios de Jorge Forjaz, Manuel Lamas e Maria da Graça Vaz Cardoso); Filósofos da Rua, com 4 edições até 1999 (a primeira com Prefácio de Emanuel Félix e a última com Introdução de Sérgio Rocha de Ávila e Prefácio de Luísa Flores Brasil); O Peixe na Cozinha Açoriana (com Prefácio de João Gomes Vieira), 2001, e Danças de Entrudo nos Açores (com Prefácio de Eduardo Ferraz da Rosa), 1999.

Ora, se em Filósofos da Rua bem diversificada e exemplarmente revelou Augusto Gomes o seu pendor evocativo de contista e cronista do quotidiano e da convivencialidade de tantas figuras emblemáticas do nosso pequeno burgo, já em A Alma da nossa Gente os usos, costumes, festas, ritos, utensílios, artefactos, devoções e valores e contra-valores do Povo da Terceira reaparecem à evidência possível na sua arte de rememorar e numa visão maravilhada e enternecida dos cenários e dos protagonistas psicossociais, políticos, éticos e existenciais que marcaram e reflectem uma época, uma linguagem, uma plástica geracional e uma paisagem social e poética internamente muito coerentes.

Também por isso – ou melhor, por tudo isso mesmo –, pelo conjunto articulado e pelo respectivo e complementar labor de criação, investigação e conteúdo de arquivo patrimonial antropológico é que as obras deste terceirense de gema deixam palpitar e entretecer, ainda hoje, muito do perfil signitivo mais genuíno e crítico, simultaneamente condicionado e potencial, da alma da chamada Pátria Açoriana.

– E é ainda por isso que esta Homenagem da actual Junta de Freguesia de Santa Luzia ao nosso saudoso Augusto Gomes, tendo sido perfeitamente idealizada mas apenas humildemente concretizada nestas minhas breves palavras, nem por isso deixa de suscitar-nos, com o que gratamente finalizo, o mais sentido aplauso e a mais sincera solidariedade!

Angra do Heroísmo, 13 de Junho de 2010

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(*) -Texto da Intervenção proferida na Cerimónia de Homenagem a Augusto Gomes, em Santa Luzia (Angra do Heroísmo), no dia 13 de Junho de 2010. Publicado na íntegra no Portal "Azores digital" e nos jornais "A União" (Angra do Heroísmo) e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada). Notícia e Fotos em

sexta-feira, maio 21, 2010

Prémio SHIP da Imprensa Regional


A Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP), com sede em Lisboa, acaba de atribuir o Prémio Anual de Imprensa Regional de 2010 ao Escritor, Ensaísta e Professor Universitário açoriano Eduardo Ferraz da Rosa, conforme deliberação do respectivo Júri Nacional constituído pelo Prof. Dr. Carlos da Silva Gonçalves (Presidente), Dr.ª Joana Ramada Curto (Secretária-geral da Associação Portuguesa de Imprensa), D. João de Castro de Mendia (Conde de Resende), Dr.ª Maria Noémia Leitão e Hélder Sobral de Mendonça.

O Prémio agora atribuído será entregue durante a Sessão Solene Comemorativa do 149º Aniversário da Sociedade Histórica de Portugal, a decorrer no próximo dia 24 de Maio, no Palácio da Independência, sede da Instituição, em Lisboa – fazendo-se o Premiado pessoalmente representar pelo Prof. Doutor Mendo Castro Henriques, Presidente do IDP –, e foi concedido, conforme deliberação do Júri, ao Dr. Eduardo Ferraz da Rosa pelo conjunto de Artigos e outros Textos publicados nos Jornais açorianos “Diário Insular”, “A União”, “Açoriano Oriental”, “Diário dos Açores” e “Correio dos Açores”, durante o ano de 2009.

Instituído em 1987 por esta Sociedade Histórica portuguesa (http://www.ship.pt/), o distinto Galardão (que inclui um Troféu, um Diploma de Honra e um Prémio Monetário), destina-se a “galardoar, anualmente, artigos publicados na Imprensa Regional do ano anterior à atribuição do Prémio e que salientem fundamentalmente os valores que contribuem para a definição da Independência de Portugal e da Identidade do País, nos seus aspectos culturais, políticos e económicos”.

Ex-Conselheiro Nacional de Educação em representação da Região Autónoma dos Açores (1991-92), Eduardo Ferraz da Rosa nasceu na Praia da Vitória (Ilha Terceira), a 2 de Outubro de 1954.

Fez Estudos Secundários em Angra do Heroísmo e nos EUA, é Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa), e Doutorando em Ciências Biomédicas no Departamento de Ciências do Comportamento do ICBAS (Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, Universidade do Porto).

Professor Assistente no Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores (1988-1999), leccionou na Escola Superior de Enfermagem de Angra do Heroísmo e foi Director da Biblioteca Geral do Hospital de Angra do Heroísmo. É Investigador Associado do SEEBMO (Serviço Especializado de Epidemiologia e Biologia Molecular) e Consultor do Governo dos Açores (SRPCBA).

Antigo Assessor Cultural das Câmaras Municipais de Angra do Heroísmo e da Praia da Vitória, o Dr. Eduardo Ferraz da Rosa é Sócio Efectivo do Instituto Cultural de Ponta Delgada, da Academia Mariana da Horta, do Instituto D. João de Castro, da SHIP e do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.

Com vasta produção bibliográfica em Livros, Revistas e Jornais, tendo ainda publicado Estudos e Ensaios académicos na revista Portugueses, Revista Portuguesa de Filosofia, Arquipélago, Boletim do IHIT, Atlântida e Insulana, Eduardo Ferraz da Rosa colaborou e colabora em todos os OCS dos Açores (Jornais, Revistas, Rádio, TV e Portais Digitais, sendo Colunista residente em “Azores Digital”), tendo também dirigido diversos Suplementos de Cultura, Arte e Ciência nos Jornais “A União”, “Diário Insular” e “Jornal da Praia” (Quinzenário de que foi Membro Fundador e seu primeiro Chefe-de-Redacção),

A Sociedade Histórica de Portugal é um instituto de Cultura e de Educação que visa a defesa da Identidade e da Independência de Portugal. Fundada em 1861, a SHIP é Pessoa Colectiva de Utilidade Pública (desde 1987), Grande Oficial da Ordem Militar de Cristo, Medalha de Mérito Municipal (Grau Ouro) da Câmara de Lisboa e Membro Honorário da Ordem do Infante.






quinta-feira, abril 22, 2010

Entrevista ao Jornal "Correio dos Açores"

1.ª - Nome, naturalidade, cidade e país onde reside?
– Eduardo [Manuel] Ferraz da Rosa.
Nasci na Ilha Terceira (Praia da Vitória), no dia 2 de Outubro de 1954.
A minha Mãe era terceirense e o meu Pai do Faial.
Moro agora em S. Mateus (Angra do Heroísmo).

2ª - O primeiro livro que leu?
– Não me recordo de qual terá sido essa primeira obra, para além daquelas publicações, muitas, que integraram as minhas leituras escolares, infantis e juvenis, porquanto nasci e cresci sempre rodeado de centenas de livros (especialmente de Literatura, Contos, Filosofia, Ciência, Arte e Religião).
Mas sei bem que comecei a ver e a ouvir ler, contar e recitar pela mão e pela voz de minha Mãe, desde muito pequeno...

3ª - Quando sentiu o chamamento para a escrita?
– Talvez tudo tenha começado familiarmente a partir daquelas primeiras lições de iniciação poética, expressiva, comunicacional e profética da Palavra…, logo seguidas de irreverentes intervenções socio-políticas e jornalísticas, de experimentações poéticas e teatrais, e depois progressivamente com a aprofundada percepção comovida e a assumpção voluntariosa das virtudes, das limitações e dos recursos da Linguagem, do Discurso da Razão e do Pensamento Crítico face às coisas, aos rostos e ao Mundo que me rodeavam e que se me afiguravam como precisando de ser olhados com o coração e reflectidos com ternura, amados com Alegria, transformados pelo Perdão e unicamente salvos pela Justiça e pela Graça…

4ª - Qual é o seu género literário?
– Tenho produzido Estudos, Ensaios e Trabalhos Académicos nas minhas áreas de especialidade e de docência na Universidade, de trabalho institucional e de investigação histórica, sociológica e científica, a par de Crónicas, intervenção sociopolítica e jornalística, Crítica Literária e Poesia.

5ª - Na Escola Primária era habitual ter boas classificações nas redacções?
– Sim, e na oratória, na leitura poética e na expressão verbal, expositiva e argumentativa também…

6.ª – Há algum livro dos seus que gostaria de reescrever?
– Obra propriamente já escrita, não! Porém, a poesia de O Mar este Silêncio deverá ser retomada lá mesmo onde ficou guardada ou suspensa…

7.ª – Quais os livros que publicou e o mais recente?
– Sem contar com as obras em conjunto, ou por mim editorialmente organizadas, os títulos, em edição autónoma ou publicados em separata, são principalmente os seguintes:
E o Mar este Silêncio (Poesia), com Carta-Prefácio de Vitorino Nemésio, 1980; Vitorino Nemésio: As Metamorfoses do Homem Interior, 1988; Vitorino Nemésio, Uma Poética da Memória, Prefácio de José Enes, 1989; Açorianidade e Autonomia, 1989; Esboço do Percurso do Método da Análise Expectante - Linguagem e Ser em José Enes, 1990; Uma Hermenêutica Trágica da Experiência do Mistério: Finitude e Esperança em Antero de Quental, 1991/93; Luís Bernardo Leite de Athaíde: Uma Estética da Açorianidade, 1991; Maria e a Ternura de Deus em Antero de Quental, 1992; Almeida Garrett, os Açores e a Praia da Vitória: Duas Memórias Garrettianas da Praia no Bicentenário do seu Nascimento, 1999; Memória Biobibliográfica Vieiriana, 2000; Heranças da Terra, 2000; De Vitorino Nemésio a António Cordeiro: A Restauração de Portugal como Ideal Histórico Açoriano, 2001; Memorial da Praia da Vitória, 2002; Nemésio, o Brasil e os Descobrimentos, 2002; Poder, Tradição e Utopia: Nemésio e a Autonomia dos Açores, 2004; O Risco das Vozes, Prefácio de Carlos Reis, 2006, e Sombras – Fotomemória e Antologia Musical, 2008.

8.ª – Indique-me um livro de um escritor açoriano de que gostaria de ter sido o autor.
As Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso; mas também O Pão e a Culpa, de Vitorino Nemésio…

9ª - Como se relaciona com outros escritores?
– Regularmente bem, com sentido crítico, solidariedade partilhada, estima mútua e amizade.
Procurei sempre dialogar com todos, da minha e de outras gerações, lê-los e estudá-los, na medida em que isso me foi possível em tempo, temáticas, estilo e gramáticas de compreensão de ideias, práticas, símbolos e valores…

10.ª – Pensa enriquecer como escritor?
– Esta é uma pergunta para sorrir… Não, claro que não!
De resto, sempre vivi do meu trabalho, embora tenha tido a sorte de nascer numa Família que pôde dispensar-me os meios para estudar, comprar livros e música, viajar, conhecer o Mundo, frequentar excelentes Escolas e Universidades, sem nunca ter sentido muitas das carências e das dificuldades a que outros, infelizmente, estiveram (e estão!) sujeitos.
Mas comecei a trabalhar, dando aulas, ainda com 20 anos…

11ª – Que livro nunca recomendaria a um amigo?
– Nunca recomendaria um livro tosco, pontuado com banalidades e mal escrito, ou que semeasse apenas o obscurantismo, a degradação das vozes e da linguagem humanas, a alienação afectiva, a cobardia e o rebaixamento intelectual, o vazio ou a subjugação espiritual!
Mas, em todo o caso, recomendaria sempre, como Nietzsche, qualquer obra aprumada e altiva, que constituísse um aberto desafio à inteligência e um firme apelo à coragem da procura do sentido, de modo criativo, livre e nobre, como quem oferece não a rédea mas o estribo, ou o selim, para o corcel da viagem…

12ª - Que livro gostaria de deixar e que ainda não escreveu?
– Um livro que revelasse as dimensões humanas, profundas e densas da memória, do imaginário e da esperança, a partir dos tempos, dos lugares e dos seres que incarnaram na minha vida, a partir da Praia da Vitória, e onde tudo o que aprendi existencialmente e estudei se fundisse com os signos universais e as permanentes cifras do Mistério do Futuro…

(Entrevista conduzida por Afonso Quental, para o Jornal "Correio dos Açores. 
Ponta Delgada, 22 de Abril de 2010)

quinta-feira, janeiro 14, 2010

Políticas de Integração Curricular
e Desintegração de Competências



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Mal sabia eu ao escrever aqui mesmo nesta coluna do “Azores Digital” na semana passada, a propósito de um empeçado projecto de ensino de Filosofia para Crianças, que as apressadas sentenças de abusiva colagem capitalizadora de uma suposta folha de serviços da SREF não tinha “a mais leve correspondência ao que se passa na verdade das políticas institucionalmente lideradas, tuteladas ou sofridas no quotidiano escolar açoriano…” –, quando, logo agora, uma semana depois, foram a opinião pública e os observadores políticos mais uma vez tristemente confrontados com novas e ainda mais convencidamente expeditas declarações governamentais (também em nome do PS?), desta vez pela própria secretária regional “socialista”, sobre uma proposta do PPM (que aqui passo por alto), de introdução do Ensino de História dos Açores nos currículos regionais do nosso Arquipélago e Região Autónoma.

– Dizendo discordar “completamente” de tal ideia, porquanto, em seu abalizado entendimento científico, pedagógico, académico e político, tal abstrusa inserção fugiria “à lógica que nós entendemos que deverá ser da integração do saber e não da segmentação”, no almejado quadro de “um currículo de educação básica abrangente, um currículo integrador” (sic), – ao que ainda consta, a dita e feita primeira executora da política educativa e formativa do Governo presidido por Carlos César, mais parece ter até conseguido reunir alguns supostos ou simulados (mas talvez apenas ligeiros e afinal contraditórios e pouco aprofundados) consensos ou concordâncias de Sindicatos de Professores, de um ou outro dos curiosos e exteriormente silenciados Deputados presentes na então decorrida reunião da Comissão Parlamentar dos Assuntos Sociais da Assembleia Legislativa regional, onde também parece ter estado presente o reempossado mas novel director regional da Cultura (não se percebe bem, da peça televisiva, se este também lá figurava para secundar as profundas teses da sua hierarquicamente relevada correligionária, se para dar algum prestabilíssimo aval político-cultural ao mesmo sentenciado assunto, ou se apenas para dar, de palanque, outras contas do seu rosário regulamentador de espectáculos tauromáquicos de natureza artística…).

Sem entrarmos aqui e hoje em mais detalhes de análise a este apaixonante tema e relevante problema do Currículo Regional (no âmbito específico da letra e do espírito da Lei de Bases do Ensino em Portugal e de uma também daí devida e co-implicada reflexão técnica e jurídico-programática, da territorialização processual e da gestão dos currículos, dos equilíbrios, na verdade a acautelar sempre, entre a autonomização do currículo e a das escolas, e depois sobre a então sistémica e consistentemente chamada integração curricular…) – questão que se arrasta, sem frutos reais, há anos sem fim nas acumuladas inoperâncias das sucessivas SRECs sociais-democratas e do PS até hoje, nesta vertente, e com a qual aliás se prende não só aquela discussão sobre a Filosofia e a História, mas também a Geografia, a Literatura, a Antropologia Cultural, a Sociologia, a História da Ciência, a Cidadania, o Direito e a Política, etc., e todas estas e outras Disciplinas aqui e ali indeclinavelmente perspectivadas por relação estruturante, efectiva e fundamental com as conhecidas, competentemente já pensadas ou diligentemente repensáveis abordagens e estratégias dos conteúdos e dos modelos curriculares da Escola (isto é, do Ensino, da Educação e da Cultura) –, quero apenas recordar o que se escreveu, subscreveu e ainda pode ser lido e posto em prática por quem, se calhar à margem ou na ignorância expedita dos ideais e das práticas perfilhados no Documento do Fórum 2013 (Açores – Ilhas de Futuro, 2008) e do que sobre esta problemática consta.

Efectivamente, ali, no Capítulo III.3, a páginas tantas (102-110), consta o seguinte, que – sem prejuízo de voltarmos ao assunto, noutro inciso de merecido tratamento –, fica hoje apenas à reconsideração de quem mais aprouver.

– Assim, embora dando por provado (o que não corresponde à realidade!) que a política educativa passada se tenha concretizado em todos os elencados pontos, é ali justamente reconhecido, afirmado e assumido que é preciso Continuar e aprofundar o desenvolvimento e a operacionalização do currículo regional, de modo a incluir no sistema educativo conteúdos que promovam e valorizem, em simultâneo, a diversidade e a unidade dos valores identitários de “ilha”, de “região” e de “país”, sendo que “o desenvolvimento de um currículo escolar regional, complementar do currículo nacional, [é] um passo estruturante para a afirmação das competências regionais na política educativa, sem esquecer, antes valorizando, as condições de competição dos jovens açorianos no contexto nacional”, pelo que, das medidas propostas, constam as adiante bem explicitadas no Objectivo 2, que abaixo seguem ipsis verbis, sem mais comentários, por ora:

1. Identificar os conteúdos identitários açorianos que, podendo integrar os currículos escolares do sistema regional de educação, enriqueçam os alunos açorianos no seu confronto com os seus colegas nacionais.


2. Incentivar o desenvolvimento, por cada escola ou agrupamento de escolas, de programas pedagógicos próprios que espelhem a realidade local, mas sempre perspectivada no contexto da ilha, da região e do país.


3. Promover o conceito de escola como centro da comunidade em que se insere e das comunidades de origem dos seus alunos.

– Ficamos entendidos?

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Publicado em "Diário Insular", "A União", "Diário dos Açores" e "Azores Digital"

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ENTREVISTA AO “DI”
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Sobre a Filosofia para crianças:
Um projecto promissor mas complexo

“Diário Insular” (DI) – Como Docente universitário de Filosofia, com responsabilidades que também assumiu de direcção no Curso de Formação de Professores (CIFOP-Terceira) e como antigo Orientador de Estágios de Professores dessa Disciplina no Ensino Secundário, como encara o projecto de Ensino de Filosofia para Crianças?


Eduardo Ferraz da Rosa (EFR) – Tanto quanto pude observar e avaliar minimamente – também pelas explanações do meu amigo Mário Cabral e por outros testemunhos de alguns docentes de Filosofia e de outras áreas disciplinares que não poderiam ficar à margem de um exigível envolvimento crítico nesse interessante projecto –, parece-me tratar-se de uma iniciativa em si e idealmente promissora, louvável e positiva, muito embora revestindo-se de uma evidente complexidade temática (científica, didáctica, pedagógica e curricular, ou seja teórico-crítica, epistemológica e metodológica), que não poderá deixar de ser integradamente equacionada, com rigor e sistematicidade pluridisciplinar.

DI – Parece-lhe possível e útil ensinar Filosofia a crianças?

EFR – Depende daquilo que se entender por Ensinar, por Filosofia e por Infância
– É por isso que sem uma reflexão prévia e aprofundada sobre as múltiplas e correlativas dimensões destes conceitos, categorias e valores, corre-se o tremendo e contraproducente risco de baratear aquilo mesmo que se pretende redimir ou semear…
De resto, para já não remontarmos à antiquíssima e sempre nova questão dialéctica do ensino-aprendizagem, bastará atender às conhecidas teses de Matthew Lipman (anos 70) e à posteridade das suas experiências e experimentalismos (especialmente nos Estados Unidos e na América Latina, em geografias mentais e até ideológicas muito díspares…), para compreendermos a fundo o que está aqui pressuposto e accionado!
– E depois, Lipman, como, mais tarde, e um pouco em algumas das suas linhas, Allan Bloom…, nem sempre serão lá muito conciliáveis por exemplo com Jean Piaget ou Paulo Freire, ou com clássicos filósofos das tradições naturalistas, iluministas, personalistas, etc., etc.

DI – O seu actual trabalho de Doutoramento (Ciências Biomédicas) pressupõe uma interface muito grande com a Ciência. Vê essa ligação presente no referido projecto de Filosofia para crianças?

EFR – No quadro histórico e sociológico da génese e das sucessivas mudanças de paradigma noético, epistemológico e ético nos saberes, nas artes e nas ciências, nunca o horizonte fundamental da reflexão filosófica esteve distante do mundo fenoménico e técnico-tecnológico da Ciência, sendo até que foi à Filosofia que sempre coube pensar e fornecer o quadro transcendental para o possível (conquanto limitado…) conhecimento do real.
– No projecto aqui em atenção vejo aliás ressaltada uma vertente de co-implicação lógico-matemática (material e formal), mais discutivelmente vista ou dita como lógico-dedutiva, quando me parece que a mesma podia e devia antes ser mais explícita e implicitamente de teor hermenêutico, compreensivo do sentido das coisas e dos seres, por via de uma especial atenção aos universos mais originários da Linguagem e da Narrativa, da Arte, da Afectividade, da Busca e da Revelação do Mistério, da Expressão da Beleza e da Bondade, da Cosmologia Ecológica, etc., e então por aí até às estruturações racionais da ordem e da finalidade…

DI – A Secretaria Regional da Educação e Formação classificou este projecto como “mais um exemplo da dinâmica e empenho das escolas açorianas em proporcionar (...) um ensino de excelência centrado na formação integral das crianças e jovens açorianos”. Quer comentar?

EFR – Prefiro não comentar com delongas, já que essa quase abusiva colagem ao projecto de Mário Cabral não tem a mais leve correspondência ao que se passa na verdade das políticas institucionalmente lideradas, tuteladas ou sofridas no quotidiano escolar açoriano…
– E tal não será certamente por culpa principal ou demissão dos professores; assim e antes, ao contrário, lhes fossem dados e respeitados os tempos, os meios, os devidos apreços e os reconhecidos méritos próprios!

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Publicado em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo) e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada)

sábado, janeiro 09, 2010

BALANÇAS DO TEMPO


Especialmente ao terminar cada ano civil – mas às vezes também com incidência sobre outros períodos convencionais variáveis ou padronizados (como décadas, séculos, legislaturas, mandatos, regimes, ciclos de festança, etc.) e cuja percepção de duração se afigura significativa… –, é costume já estabelecido, mormente nos OCS, fazer-se uma espécie de inventário mais ou menos crítico dos doze meses passados, assim a modos de um exercício de reavaliação retrospectiva e global dos principais acontecimentos, factores, agentes e actores que marcaram a vida, a história e os discursos do mundo, dos cidadãos ou de uma determinada sociedade durante aquele mesmo período de tempo.


– Ora, como é evidente, as leituras daquele dito inventário – às vezes também denunciadamente feito segundo parâmetros mais próprios de certos balanços político-comerciais, de balancetes de créditos e de existências malparadas, ou para ajuste de velhas contas pessoais em véspera de saldos… –, que nem por nunca poderem ser totalmente neutros nem incondicionalmente objectivos – e até exactamente por isso… – não deixam lá por isso de traduzir mesmo, ou de insinuar em parte, muitas das linhas de inércia ou de força que, recebidas do passado, vão já regendo o quotidiano e perspectivando os futuros próximos.


Contudo – e tal como se costuma dizer que “a cada cabeça sua sentença”, também aqui, à paralela medida em que vão sendo seleccionados, pesados e medidos os dados do aludido inventário de 2009, sempre conforme os pesos e as medidas que tiverem sido usados na balança das análises e nas contas e pautas dos diferentes observadores e contextos em presença – muitas vezes, mais interessante do que desfiar o rol das escolhas seria analisar a relação entre elas e os seus analistas jurados (júris de selecção ou juízes de opinião…).

No caso provincial da vida portuguesa e das suas periferias, semi-periferias e ultra-periferias – que a tal graduação se chegará facilmente nestes inícios da segunda década do Século XXI e nos alvores comemorativos da primeira centúria daquela indistintamente encomiástica ética republicana que até ao nosso encabulado PR fez subir o tom de um discurso inocuamente moralista e destituído da mínima dimensão historicamente crítica…, – que mais se há-de acrescentar ao que já foi escrito?

– Nada, porventura, que as balanças do tempo não dão para mais e falarão por si à consciência espiritual profunda de cada um, pontual e institucionalmente talvez apenas a par e passo com algumas das vozes mais lúcidas da Igreja, face aos desafios inauditos e aos ventos perigosos que aí estão a fustigar a sociedade portuguesa e a parasitar a deformada alma de um País abúlico, condenado de novo aos expedientes de um medíocre marasmo fatalista e rasteiro, que só tem servido afinal a quem o domina, despreza e explora, com impiedade cruel e proveito garantido…

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In "Diário Insular" e Azores Digital (09.01.2009



sexta-feira, dezembro 18, 2009

Encargos de Advento



A entrega do Prémio Pessoa 2009 a D. Manuel Clemente (Bispo de Porto e presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações) – uma iniciativa do “Expresso” visando distinguir a personalidade portuguesa que mais se tenha destacado durante o ano e que tiver protagonizado uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do País –, e cujo Júri (presidido por Francisco Pinto Balsemão) integra Faria de Oliveira, António Barreto, Clara Ferreira Alves, Fraústo da Silva, João Lobo Antunes, José Luís Porfírio, Maria de Sousa, Mário Soares, Miguel Veiga, Rui Baião e Rui Vieira Nery, constituiu uma agradável surpresa intelectual, um bom sinal sociocultural e uma sugestiva indicação ética e cívica bem oponível a outros factos e indícios que marcam (mas pela negativa…) o quotidiano real e mediatizado da vida corrente dos Portugueses:

– “Em tempos difíceis como os que vivemos actualmente, D. Manuel Clemente é uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo”, ao mesmo tempo que “leva a cabo a sua missão pastoral” e desenvolve “uma intensa actividade cultural de estudo e debate público”, – pode assim ler-se na Acta da Reunião daquele Júri, tal como justamente ali se realça ainda que, para além da sua vasta obra historiográfica, “a sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, de combate à exclusão e da intervenção social da Igreja”.

Nascido em 1948, Manuel do Nascimento Clemente frequentou a Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, onde se formou em História, tendo na mesma altura sido aluno residente do Colégio Universitário Pio XII (ao que já fizemos referência em Crónica anterior). Concluída aquela sua primeira Licenciatura, ingressou no Seminário Maior dos Olivais (1973), vindo depois a licenciar-se (1979) e a doutorar-se (1992) em Teologia Histórica pela Universidade Católica Portuguesa com uma tese intitulada Nas origens do apostolado contemporâneo em Portugal. A "Sociedade Católica" (1843-1853). Ordenado Presbítero (29 de Junho de 1979), foi coadjutor das Paróquias de Torres Vedras e Runa, Reitor do Seminário dos Olivais e, desde 1997, membro do Cabido da Sé de Lisboa, diocese da qual foi depois Bispo Auxiliar (2000).

Professor na Universidade Católica Portuguesa, onde lecciona História da Igreja e dirigiu o Centro de Estudos de História Religiosa, D. Manuel Clemente é autor de vários livros e estudos sobre temas das áreas de História, Teologia e Pastoral, publicados em edições próprias e Revistas da especialidade, e de entre os quais, entre muitos outros, destacamos:

Portugal e os Portugueses (2009), publicação apresentada por António Barreto, conforme anteriormente aqui já anotámos; 1810 - 1910 - 2010; Datas e Desafios (2009); Um Só Propósito. Homilias e Escritos Pastorais (2009); Igreja e Sociedade Portuguesa do Liberalismo à República (2002); A Igreja no tempo (2000); “A sociedade portuguesa à data da publicação da Rerum Novarum: o sentimento católico” (in Lusitania Sacra. Segunda série. Lisboa, 6, 1994); “Igreja e sociedade portuguesa do Liberalismo à República” (in Didaskalia. Lisboa, 24, 1994); “Fé, razão e conhecimento de Deus no Vaticano I e no Vaticano II” (in Communio. Lisboa, 10:6, 1993); “A Igreja e o Liberalismo. Um desafio e uma primeira resposta” (in Communio. Lisboa, 9:6, 1992); “Clericalismo e anticlericalismo na cultura portuguesa” (in Reflexão Cristã. Lisboa, 53, 1987), e “Notas de cultura portuguesa. Do teatro sagrado ao teatro profano” (in Novellae Olivarum. Nova série. Lisboa, 6-7, 1983).

Ora o actual Bispo do Porto, comentando na altura a atribuição que acabara de lhe ser feita do Prémio Pessoa 2009, salientou então que a referência ética era um quadro de valores, logo precisando que a sua missão era a de estar com as pessoas, “animá-las, dar-lhes esperança” e garantir-lhes que, “como representante da mais antiga instituição cultural do País, estava ao dispor” em tudo aquilo que pudesse contribuir!

E mais na ocasião acentuou o Prelado portuense: – “Agradeço, (…) reconhecendo que não sou merecedor de um galardão como este, que tomo como um encargo e uma responsabilização, também, porque sou um homem de Igreja e tento ser um homem da Cultura e da Sociedade, no sentido mais constitutivo do termo”.

– Humildes, animadoras e exemplares palavras estas, e bem a propósito da exigente quadra que atravessamos, aonde nenhum apenas pontual (voluntarioso, benemérito ou ilusório?) apoio caritativo, psicossocial ou técnico, há-de substituir-se ao trabalho solidário e fraterno da construção progressiva, paciente e pacífica, de um mundo mais livre e mais justo porque integralmente mais humano…

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(*) Publicado em "Correio dos Açores".

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Caudais de Risco e Ribeiras de Desgraça


Ribeira da Agualva e velha Ponte de Madeira destruída pela mortífera Enxurrada de 8 de Dezembro de 1962 (Foto da época).


A freguesia da Agualva, situada na zona norte da ilha Terceira, em conjunto com outras localidades do Concelho da Praia da Vitória, foi novamente atingida este inverno por fortes chuvadas que provocaram enxurradas de grande caudal e imparável violência destrutiva sobre moradias, estradas e redes públicas de abastecimento de água e saneamento básico, – tendo o cenário físico das devastações provocadas já sido, com propriedade, adjectivado de dantesco e diluviano.

– Porém, ao contrário do que sucedeu em outras trágicas ocasiões e eventos catastróficos ocorridos e bem lembrados nos Açores, agora e felizmente, não há vítimas humanas mortais a lamentar, muito embora sejam perceptíveis dolorosas marcas traumáticas pessoais e familiares, e notoriamente avultados os prejuízos materiais apurados em bens particulares, infra-estruturas essenciais e equipamentos colectivos, – sendo que aqui e para a urgente, rápida e competente reposição mais segura e precaucional dos mesmos é de esperar uma absolutamente necessária, devida e determinante articulação reforçada, solidária e supletiva de meios financeiros e técnicos, e de confluentes programas específicos entre a Câmara Municipal da Praia da Vitória, o Governo Regional, as Juntas de Freguesia, os habitantes das zonas sinistradas e as diferentes entidades privadas e público-privadas directa ou indirectamente envolvidas e interessadas numa responsável e responsabilizante resposta a tão momentosa e capital calamidade!

Por outro lado, embora ainda muito em cima dos primeiros e dramáticos momentos e espaços deste sinistro – onde não faltaram as devidas presenças testemunhais e simbólicas de Carlos César e de José Contente –, e também já com uma devida nota de apreço pela capacidade e esforço de intervenção demonstrados pelas autoridades, serviços públicos e associações socioprofissionais e assistenciais mobilizados, a par da histórica e quase heróica dimensão da resiliência novamente avivada na alma do Povo desta terra, – mas exactamente por isso mesmo! –, é que é preciso que, atendendo às ocorrências secularmente conhecidas de alguns (nomeadamente a de Setembro de 1813) ou contemporaneamente preservadas na memória de muitos (especialmente a de 8 de Dezembro de 1962), não se deixe que da cura possível das feridas humanas e da limpeza radical das lamas residuais se passe a um branqueamento estratégico das águas ou ao desvio, apenas errático, perigoso e contraproducente, daquilo que, por adiamento ou interesse de conjuntura, apenas canalizará renascentes caudais de risco e de sofrimento para as ribeiras da próxima desgraça...

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(*) Publicado em "A União", "Diário dos Açores" e "Azores Digital".

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Memórias de Giacometti com os Açores presentes


Michel Giacometti (1929-1990) é um nome que preenche e detém um lugar único na Antropologia Cultural desenvolvida em Portugal, mormente na área da Etnomusicologia.


Apesar de ter praticado uma Etnografia de carácter predominantemente empírico (e mais ou menos espontâneo, como João Leal e Pais de Brito a denominam), este etnólogo – nascido na Córsega e doutorado pela Sorbonne, mas radicado no nosso País desde 1959 na sequência de uma acentuada crise de saúde e de uma sugestiva e iniciática visita ao Musée de l’Homme em Paris –, deixou-nos uma obra de excepcional envergadura e alcance, especialmente devido às recolhas que efectuou para os Arquivos Sonoros Portugueses (1960) em conjugação de dedicações de pesquisa e ideários sociológicos e estéticos com o seu camarada Fernando Lopes-Graça, dos quais resultaram nomeadamente os vários volumes conhecidos e editados da Antologia da Música Regional Portuguesa e do Cancioneiro Popular Português (1981).


– Ora acontece que os Registos Etnomusicais, tão laboriosa e sistematicamente recolhidos por Giacometti, foram acompanhados de levantamentos e compilações não menos notáveis de outros documentos e peças antropológicas afins e complementares daqueles (fotografias, utensílios, narrativas e testemunhos orais, fichas e apontamentos de trabalho de campo, notas socioculturais e técnico-artesanais, etc.), de todos esses materiais dando mostra cabal as ricas colecções guardadas nos Museus do Trabalho (ao qual foi dado o seu nome, em Setúbal), da Música Portuguesa (Cascais) e Nacional de Etnologia (Lisboa).

Comemorações e Esquecimentos

Agora, comemorando-se em 2009 o 80º aniversário do nascimento e os 50 anos da chegada de Giacometti ao nosso País, com toda a justiça, merecimento e louvor assinalou-se no Continente a obra e a vida deste tão apaixonado quanto genuíno e incansável etnólogo francês, cuja sensibilidade e empenho de visão, ouvido, coração, memória e inteligência legou a Portugal uma herança de incalculável valor (conquanto ainda não devidamente divulgado e potenciado!) e cuja dimensão deixa a milhas as burocráticas sebentas de alguns empertigados portuguesitos de fraca cepa civilizacional, de outros tantos rotineiros e preguiçosos académicos de carreira e número, e de grossos cadeirões de pardas eminências de ruim gramática humana, cultural e política...


De resto, nesta era mediática e de tão amplos e sofisticados recursos – gastos, tantas vezes, em autênticas quinquilharias efémeras e alienantes subprodutos para estratégico divertimento de massas! –, nem sequer as nossas TVs (aonde tanto lixo é exibido ad nauseam) se tem lembrado lá muito da Série “Povo que Canta”, realizada por Alfredo Tropa e transmitida pela RTP, a partir de 1970, durante três anos seguidos…

– Mas, como dizia acima, nestas coisas da Cultura e do Património às vezes há honrosas excepções – e nem sempre tontas e oportunistas borboletas de decoração batem asinhas para chamar e entreter besouros de estimação e inofensiva parada… –, como é o caso das cidades de Coimbra e de Cascais.

De facto, em Coimbra, tal como foi anunciado, o Sector Intelectual do PCP (Partido Comunista Português) organizou – e bem! – entre Janeiro e Outubro um Ciclo de Comemorações, denominado "Reencontro com Giacometti", para o qual contou com a colaboração de entidades, organizações, associações, pessoas e grupos culturais cuja vida, actividade ou objecto de estudo tem contribuído para divulgar o papel e legado de Michel Giacometti e para celebrar e promover a Cultura Popular Portuguesa, e de entre os quais se contam os seguintes: Câmara Municipal de Coimbra, Universidade de Coimbra, Sindicato dos Professores da Região Centro, Museu da Música Portuguesa/Casa Verdades de Faria (Cascais), Museu do Trabalho "Michel Giacometti" (Setúbal), A Escola da Noite, Ateneu de Coimbra, Bonifrates, Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, Rodobalho, Teatrão, Teatro do Morcego, Brigada Víctor Jara, Diabo a Sete, Quarto Minguante, Realejo e Rebimbomalho.

E aqui, relembre-se, constituindo a principal iniciativa política deste Ciclo, foi promovida uma recolha de assinaturas reivindicando a reedição e publicação, por parte da RTP, da citada Série "Povo Que Canta" (que reúne, em trinta e sete episódios, sons e imagens da Vida e da Cultura Rural do nosso Povo, para “que os documentos que os constituem possam cumprir, sempre que convocados e para todos os interessados, a intenção de contribuir para ‘a análise necessariamente rigorosa da sociedade’ e das tradições culturais portuguesas, das quais aqueles sons e imagens foram gerados, e nos foram dados a herdar”.

Por seu lado, a Câmara de Cascais (presidida pelo social-democrata António Capucho) acaba – e muito bem! – de liderantemente associar-se ao IELT (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) e à FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) para viabilizar a monumental edição (Gradiva) do “Espólio de Medicina Popular recolhido por Michel Giacometti”, publicado há poucas semanas, com o título de Artes de Cura e Espanta-Males, sob a Coordenação de Ana Gomes de Almeida, Ana Guimarães e Miguel Guimarães, e com Prefácio de João Lobo Antunes:

– Trata-se aqui da publicação em livro (687 páginas, em formato grande) de 5.550 Fichas de Doenças do Espólio Documental de Giacometti (preservado no Museu da Música Portuguesa, em Cascais), cujos textos de Medicina Popular (com rezas, ladainhas, benzeduras, provérbios, receitas e receituários, remédios, ervanárias, etc.) foram lidos e são comentados por médicos especialistas, poetas, artistas, investigadores e professores – Júlio Machado Vaz, Fernando Nobre, Teresa Rita Lopes, Isabel do Carmo, Germano Xavier do Carmo, entre outros, num riquíssimo repositório, acompanhado de Glossário e Bibliografia, de saberes e práticas ancestrais relativas ao corpo, à doença e à procura da cura.

Recordações Açorianas

Devo finalmente salientar que para nós também, como açorianos e como investigadores, este livro – que por via da Etnomusicologia desenvolvida por Giacometti ainda deixaria ocasião para evocar as recolhas insulares de Artur Santos e de José Alberto Sardinha… –, se reveste de um específico e particular interesse pela presença que a nossa terra e a nossa gente aqui marcam directa ou indirectamente, conforme as referências retidas e citadas, por exemplo a partir de Teófilo Braga, Côrtes-Rodrigues, Leite de Athaíde, Drumond, Inocêncio Enes e M. Dionísio.Ainda por isso e tal como já escrevi em “Narrativas e Virtualidades de um Património de Crenças” (cf. Heranças da Terra, 2000) a propósito do imenso e análogo labor localmente proporcionado do nosso querido J. H. Borges Martins e das suas Crenças Populares da Ilha Terceira (2 Volumes, Edições Salamandra, 1994) – obra que Giacometti infelizmente já não pôde desfiar, mas que não posso deixar de recordar neste contexto temático –, realmente, trabalho(s) como este(s), podem e devem ser acolhidos, potenciados, lidos e estudados nas nossas Escolas e na nossa Universidade, sendo os seus conteúdos susceptíveis de fornecer abundante campo para vastíssimos, criativos e mobilizadores projectos disciplinares e interdisciplinares (desde a Filosofia à Antropologia Cultural, da Psicologia à História da Mentalidades, da Sociologia à Ciência, e da Literatura à Religião), além de constituírem um valente e sério exemplo para tanto desleixo ou tanto interesseirismo cultural que por aí pululam, de braço dado com preguiças e ignorâncias institucionais de bradar aos Céus, rogando-se curas para tantas maleitas históricas ou esconjuro para alguns dos males espirituais e crónicas patologias sociais que persistem em assombrar muitas das nossas vivências pessoais e insuspeitados, recorrentes ou estagnados imaginários colectivos nacionais e regionais…


(*) Publicado em "Diário dos Açores", "Correio dos Açores", "A União" e Azores Digital.

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Humor e Agravos

Tem o programa “Gato Fedorento” vindo a merecer crescentes encómios nos Órgãos de Comunicação Social lisboetas, sendo até coqueluche e suposto modelo de criatividade humorística aplicada ao actual campo da vida sociopolítica do proverbial e ajardinado “rectângulo” do Zé Povinho…

De resto, a projecção e as reverências concedidas àquele dito “imaginativo e desempoeirado” programa tem sido de tal ordem que não poucos foram os analistas que chegaram ao queirosiano ponto de lhe atribuírem significativa quota de responsabilidade na formação do sentido do voto nacional e no desenvolvimento da inteligência, da perspicácia e do espírito satírico do Portugal contemporâneo!

Ora tendo isto em vista talvez até tivessem razão aqueles ilustrados articulistas, pois na verdade grandes foram, em determinada altura, os índices de audiência granjeados pelas suas famosas Entrevistas aos líderes da praça política que Portugal ostenta e complacentemente venera, e cuja (des)complexada e consentânea ida ao aromático mas felino programa foi mesmo posta em oposição de interesse à concorrente substância dos inócuos e estafantes Debates interpartidários das TVs.

É claro que também subjacente a tudo isto está a problemática do Humor e do Riso, – questão recheada de “dialéctica subtil e delicada, complexa e de entendimento nem sempre fácil” de analisar nos seus diferentes modelos, conteúdos e esquemas, como sintetizou Manuel Antunes.

E depois, diversamente, há humor e humores, conforme os talentos, as virtudes e os níveis culturais em cena (por exemplo, os ditos à Charlot, Cantiflas, Solnado ou Badaró, o ordinário à Herman, o inglês de Mr. Bean ou Yes Minister, o francês de Allo! Allo!, o brasileiro do Gordo ou as sitcoms norte-americanas, sem esquecer os Palhaços dos Circos e as Danças de Carnaval…).

Todavia – e para já não referirmos outras, exemplares e bem duvidosas graçolas do “Gato Fedorento”, como uma anterior sobre as devoções marianas em Fátima –, o que mais se lamenta ainda aqui e hoje é o uso, pretensamente catalisador de risota ou gargalhada em estúdio que ali se fez (chocarrice pegada, embora até audio-linguisticamente equivocada nas afitadas orelhas daqueles meninos de capital!), nas vésperas das Eleições Autárquicas, de um vídeo do YouTube com um candidato do PSD a uma Junta de Freguesia da Terceira.

– Realmente, e fosse lá com quem ou de quem fosse, tão humilhante e cruel publicitação da fala e face de um simples homem do povo (aliás vítima inocente e infeliz da inoperância política própria e alheia, e de afins e clamorosas incompetências comunicacionais!), documentou afinal e apenas mais uma manifestação da desalmada e impiedosa lógica de violência simbólica e do acanalhamento cívico a que o nosso burgesso e fútil País político-partidário e os seus actores e agentes mediáticos chegaram, sem apelo nem agravo!


(Publicado no "Diário dos Açores" de 24.10.2009)

LITERATURAS UNIVERSAIS



OS GRANDES LIVROS
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A ideia de ministrar-se em Portugal e na Universidade Católica Portuguesa um Curso sobre os Grandes Livros da Humanidade nasceu de um projecto pensado por João Carlos Espada (director do Instituto de Estudos Políticos da UCP) e concretizado por Anthony O’Hear – professor de Filosofia na Universidade de Buckingham, director do Royal Institute of Philosophy e editor da revista "Philosophy" –, antigo visiting professor da Fundação Gulbenkian naquela Universidade portuguesa, onde, entre o Outono e a Primavera de 2004-05, leccionou uma Cadeira que tinha por temática "A Tradição dos Grandes Livros" e cujas aulas vieram precisamente a constituir o conteúdo de um livro agora acabado de lançar pela Alêtheia Editores.


– O texto, declaradamente escrito com grande e justificado entusiasmo, pretende servir de roteiro iniciático ou primeiro mapa de leitura para um sugestivo e motivador contacto com os autores clássicos seleccionados, de modo a que os leitores possam conhecer e apreender as grandes obras ali referidas "com satisfação e deleite, para além de aprenderem com a visão, as intuições e a sabedoria nelas contidas", sem esquecer ainda "a maneira como certas obras da tradição influenciam outras obras posteriores, sendo continuamente referidas nelas, [e] muitas vezes de uma forma que permite compreender cada vez melhor as obras anteriores", – e vice-versa, ressalte-se aqui, com certeza, e nalguns casos até por maioria de confluentes ou difluentes horizontes temáticos, literários e existenciais – conforme aliás poderíamos deduzir de outros Cânones…, ou articular com a abordagem da famosa angústia da influência do também "canonista" literário Harold Bloom (muito conhecido apologista shakespeariano de José Saramago…) –, ou ainda por outras mais avantajadas razões e demais entendimentos histórico-críticos, hermenêuticos e exegéticos que andam por aí a par de outras afins lacunas de familiaridade e vivência civilizacional sólida, marcando o paradigmático "caos da vida corrente" em que vegetamos e nos afundamos geração após geração, e cuja clamorosa e fatídica ausência secular por esse País fora e por esta Região adentro são o pão nosso de cada dia na Cultura, na Educação e até na Religião!


Resta dizer que nesta obra, de leitura acessível e de vigor mediano, de Anthony O’Hear – Os Grandes Livros, da Ilíada e da Odisseia de Homero até ao Fausto de Goethe – uma viagem afinal por 2500 Anos de Literatura Clássica, passando por Platão, Virgílio, Ovídio, S. Agostinho, Dante, Chaucer, Shakespeare, Cervantes, Milton, Pascal e Racine –, lá encontraremos ainda o nosso Camões, de quem o Prof. O’Hear afirma possuir "um agnosticismo profundo, que talvez não devesse ser analisado em termos exclusivamente cristãos".



– E assim, também aqui, a questão, como se vê, não é nem tão antiga nem tão pouco polémica como a outra tão em voga nas pedregosas e transtemporais sendas de Caim

sábado, novembro 28, 2009


Das Heranças do Passado aos Desafios do Futuro



Pedidas que me foram algumas breves palavras para testemunho pessoal sobre o 1º de Dezembro – data nobre da História de Portugal e dos Açores –, mais do que descrever agora, à repetição sabida, o narrativo episódico ou o factual provável de uma ou outra cena – cujo enquadramento, de resto, mereceria um demorado aprofundamento analítico –, mas ainda a propósito desta efeméride julgo ser mais útil e necessário pensar dentro da comemoração, recolhendo o que de essencialmente significativo o acontecimento em causa representou ontem, e bem assim aquilo que para nós, hoje, ele pode proveitosamente constituir. 



Ontem, isto é, lá por 24 de Março de 1641, na Praia da Vitória, como tombou Ferreira Drumond, nos Anais da Ilha Terceira, a partir de um escrito de Frei Diogo das Chagas que – como aquele salienta – lhe legara “uma exacta relação dos acontecimentos que tiveram lugar nesta ilha”, e sendo que esse mesmo relato lhe pareceu “o escrito mais exacto de quantos [tinha] achado, sobre tal objecto” –, foi deste modo o assunto relatado: 

 – No dia 24 de Março de 1641, domingo de Ramos, Francisco d’Ornellas da Câmara, Capitão-Mór da então Vila da Praia, fidalgo da casa do Duque de Bragança (entretanto já aclamado Rei de Portugal em Dezembro de 1640, com o título de D. João IV), ”resolveu romper a voz da acclamação; e para isto, ás 10 horas da manhã saiu da egreja matriz de Sancta Cruz a camara municipal, acompanhada da nobreza, e clero secular, e regular da mesma villa, e grande quantidade de povo, em solemne procissão e com muita festa, e ceremonias usadas em similhantes actos, acclamou pelas ruas, e praças mais notaveis a voz d’el-rei D. João IV, em quanto os moradores daquella empregavam todas as demonstrações d’alegria, e completa satisfação, por ouvirem já publica a voz da sua liberdade, por que havia tantos annos suspiravam”. 



Em causa estava pois a voz da liberdade, por tantos anos suspirada, e então ali pública e solenemente cerimoniada, aclamada e partilhada por Clero, Nobreza e Povo, sendo tal voz, como o texto identifica, a mesma ou símile da do próprio Rei, ouvida e reproduzida por ruas e praças em demonstrações de alegria e completa satisfação”, mas mais sendo que a rompida voz institucionalizada da Liberdade só ganhou, como sempre, completo e alegre eco e realização ao ser aclamada, quase como coisa sagrada, por um Povo que a ouviu, por ela suspirou e nela acreditou como se e porque de coisa sua e assumida se tratasse… 

 – Hoje, 368 anos volvidos, que exigentes e inovadoras vozes são aquelas que nos é dado lançar ao tempo ainda adiado de independência cultural e de autonomia integradora, de tanta coisa que ainda falta fazer, proclamar e assumir? Francisco Ornelas da Câmara também trazia, à mistura com documentos do Rei Filipe, apreensivo com o assédio estrangeiro ou exterior às Ilhas, outra e mais ardilosa e pragmática documentação do recém-aclamado Rei de Portugal... 

 – E tal documentação, em resumo de argumentos, o que propunha aos já realmente derrotados ocupantes do mais estratégico lugar das Ilhas era uma espécie de cómoda passagem à reforma, com prebendas fartas em títulos e rendas, sendo que essa cedência à vontade expressa de mudança garantiria ao menos alguma paz social e uma quase natural passagem de testemunho “governativo”, ao mesmo tempo que pretendia reintroduzir uma alma regional legítima no corpo mesmo da fortaleza angrense... 

A prudência mas também a firmeza e a coragem havidas por Ornelas da Câmara, ou que talvez um pouco mítica e generosamente lhe foram atribuídas por certa linhagem historiográfica…, até à consumação definitiva da justa ruptura e da subsequente movimentação restauradora da mais profunda historicidade dos Açores e de Portugal, sendo paradigmáticas de uma paciência histórica exemplar, de um tacto estratégico notável e de uma oportuna lucidez provada, devem pois valer ainda, nesta particular conjuntura civilizacional e histórica da nossa Pátria e da nossa Região, como sinais e pistas para enfrentarmos as heranças do passado, respondendo positiva e emancipadoramente aos desafios insulares do presente e do futuro, perante os riscos e as promessas de um País, da Europa e de um Mundo em rápida e nem sempre estabilizada nem segura transformação positiva.

quinta-feira, novembro 26, 2009

A RESTAURAÇÃO COMO IDEAL NACIONAL




1. Na sua História de Portugal, Damião Peres introduz o tema do restabelecimento da independência nacional de 1640 dizendo que “a dominação castelhana nunca conseguiu apagar totalmente em Portugal a saudade da independência”…

Outro historiador português, na sua análise do processo social, económico e político-institucional da Restauração afirma que são duas as ideias que perpassam “como fios condutores” através do movimento restaurador:


– “Em primeiro lugar, a coroa portuguesa foi usurpada em 1580 à casa a que pertencia de juro e herdade [...]; trata-se portanto, fundamentalmente, de restituir o seu a seu dono, anulando a usurpação sessenta anos anterior a fim de colocar no trono o único legítimo pretendente. Em segundo lugar, a união dinástica fizera-se pela força mas jurando os monarcas espanhóis respeitar as leis, foros e costumes de Portugal [...]; por conseguinte, os conjurados de 1640 visam o regresso à forma legítima [...] de Estado e governo, pondo termo a essa tirania, em que tinham soçobrado os soberanos de dinastia espanhola: restauração, em suma, a completar a restituição”.

E o mesmo Vitorino Magalhães Godinho precisa ainda o travejamento da sua global interpretação do processo estrutural do mundo da Restauração e do Portugal “restaurado”:

– “Em 1640 dá-se, portanto, a expulsão de um tirano usurpador (simultaneamente) e a restituição do poder a quem de direito. (…) Os Filipes tinham acabado por não respeitar as instituições tradicionais e o direito estabelecido; os Portugueses restauram, quer dizer, voltam à primitiva forma, o Estado anterior a 1620, ou mesmo a 1580”.

Por seu lado, José Hermano Saraiva, analisando o processo que conduziu ao 1º de Dezembro de 1640, já referia que “A conspiração não incluiu representantes populares; mesmo os chefes da revolta de 1637-1638 não foram chamados. [...] A preocupação de não desencadear uma revolução popular dominava os políticos de 1640 do mesmo modo que tinha dominado os de 1580.

“Os conspiradores decidiram restaurar a linha legítima da sucessão do trono, [...] D. João, duque de Bragança. [...] O duque vivia em Vila Viçosa, aparentemente afastado da vida política de Lisboa, e era considerado em Madrid como pessoa de confiança. Pouco antes da revolução, tinha sido nomeado governador militar do país. Convidado para a chefia da revolução, hesitou. Os conjurados colocaram-no perante a alternativa. Ou a conservação da monarquia com ele, ou uma república de nobres. Acedeu por fim”...

Finalmente, na sua perspectivação da História Política e Militar da Restauração – e defendendo logo, ao contrário de J. H. Saraiva, ser preciso rebater “a tradição sem fundamento que fez de D. João IV um homem indeciso ou pouco varonil, quando a sua actuação foi norteada pela lúcida visão das realidades políticas que lhe coube encarnar” e que “sem o seu equilibrado apoio e direcção” nunca a Restauração poderia ter eclodido –, Veríssimo Serrão introduz a temática restauracionista, a partir das seguintes linhas fundamentais e fundamentantes:

– A Restauração representa “um período bem definido da história portuguesa”, que se impôs também pela “unidade temporal que define uma grande realidade histórica”, tendo sido pois um período de retoma da “plena consciência do sentimento nacional”.

2. Muito longe de traduzir restritivos rituais passadistas ou nacionalistas – ambos datados e amiúde timbrados por conjunturas políticas e civilizacionais que não são as nossas –, faz todo o sentido a comemoração contemporânea desta tão significativa efeméride da existência histórica de Portugal como Pátria e Nação propriamente dotada de personalidade jurídica unitária (como Estado) e de identidade colectiva – dir-se-ia mesmo espiritual e culturalmente incarnada em formas, categorias e expressões específicas – como Povo.

Ora todas as evocações simbólicas e todas as representações comemorativas tendo um papel pragmático e normativo e desempenhando uma importante função cívica que é “instituinte de sociabilidades”, como salientou Pierre Bourdieu, assim também o mais profundo e autêntico sentido da celebração deste dia deve ser o de suscitar e cumprir ocasião propícia para pensar e reflectir criticamente aquela mesma realidade que é trazida de novo à memória e à representação, isto é, a existência histórica de Portugal e dos Portugueses, à luz de valores que são afinal formas universais e nacionais – e regionais também, bem entendido! – desse ideal ou conceito-força valorativo da afirmação dos nossos projectos histórico-existenciais e culturais, e da defesa dos nossos interesses vitais permanentes como País independente e soberano.

3. Facetado e dito sob múltiplas formas, até hoje, mas localizadamente em tantas e tantas datas cruciais da vida do nosso País, e afinal também na vida de todos e cada um de nós individualmente considerado, este ideal de Restauração (que não poderá ser com legitimidade apropriado por nenhuma forma ou regime político particular!) sempre pretendeu significar algo de essencial e direccionado a uma espécie de regeneração, recuperação, salvação ou ganho de plenitude histórica, destinal ou existencial. …

– Comemorar pois a Restauração de 1640 é assim tanto um acto de memória e de reflexão quanto um acto projectivo de imaginação, de criatividade e de esperança, numa época tão assolada por crises, impasses e desalentos, como esta em que vivemos.
Mesmo a Restauração de 1640 – embora parcialmente justificada por enquadramentos psico-sociais nacionais traumáticos … –, carece ainda de ser explicada pela articulação da individualidade cultural com a independência política; a conjuntura económica e colonial dos Impérios Português e Espanhol; as pretensões, interesses e sucessivos reposicionamentos tácticos e estratégicos das restantes potências europeias do século XVII (França, Inglaterra e Holanda); o posicionamento das classes, formações, grupos socioprofissionais e mentalidades socio-religiosas; a situação político-militar europeia (nomeadamente as revoltas regionais da Biscaia, de Évora e a decisiva rebelião nacionalista da Catalunha); o contexto conflitual dos vários esquemas teórico-jurídicos e diplomáticos vigentes, – e todos estes ainda no quadro militar puro e próprio de um processo revolucionário de re-nacionalização, como foi o que se seguiu à insurreição restauracionista e à Paz de Vestefália, sendo até que a ordem internacional decorrente desta última só terá terminado afinal em 11 de Setembro de 2001!

– Como se deduzirá por comparação ou analogia, ou como pseudo-socraticamente poderia parecer, não estamos assim tão longe do espírito hobbesiano do sistema-mundo, dos paradigmas emergentes da progressiva racionalização das sociedades ocidentais e do vacilante coração dos homens de 1640…
COMEMORAR A RESTAURAÇÃO DE 1640
PARA REPENSAR A ACTUALIDADE



Muito longe e muito mais do que cumprir restritivos rituais passadistas ou nacionalistas – ambos datados e amiúde timbrados por conjunturas políticas e civilizacionais que não são as nossas –, faz todo o sentido a comemoração contemporânea desta tão significativa efeméride da existência histórica e independente de Portugal como Pátria e Nação propriamente dotada de personalidade jurídica unitária (como Estado) e de identidade colectiva – dir-se-ia mesmo espiritual e culturalmente incarnada em formas ou categorias específicas – como Povo.

O mais profundo e autêntico sentido da celebração deste dia deve pois ser assim o de suscitar e cumprir mais uma ocasião, com motivo e em tempo propícios, para pensar e reflectir criticamente aquela mesma realidade que é trazida de novo à memória e à representação, isto é, a existência histórica de Portugal e dos Portugueses, à luz de valores que são afinal formas universais e nacionais – e regionais também, bem entendido! – desse ideal perseverante ou conceito-força valorativo da formulação e da afirmação dos nossos projectos histórico-existenciais e culturais, e da defesa dos nossos interesses vitais permanentes como País independente e soberano.

Todas as evocações simbólicas e todas representações comemorativas, tendo um papel pragmático e normativo, desempenham uma importante função cívica que é “instituinte de sociabilidades”, como salientou Pierre Bourdieu.

E depois, a ideia de Restauração (restauratio) – muito ligada, por exemplo, pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa, à dimensão espiritual do Império e que é ainda uma categoria teórico-prática de raiz bíblica – sempre mobilizou Portugal, talvez até mesmo desde os primeiros impulsos da construção imaginal da nação portuguesa como pátria possível.

– Facetada e dito sob múltiplas formas, até hoje, mas localizadamente em tantas e tantas datas cruciais da vida do nosso País, e afinal também na vida de todos e cada um de nós individualmente considerado, este ideal de Restauração (que não poderá com legitimidade ser apropriado por nenhuma forma ou regime político particular!) sempre pretendeu no fundo significar algo de essencial e direccionado a uma espécie de regeneração, recuperação, salvação ou ganho de plenitude histórica, destinal ou existencial. …

– Comemorar pois a Restauração de 1640 é assim tanto um acto de memória e de reflexão quanto um acto projectivo de imaginação, de criatividade e de esperança, numa época tão assolada por crises, impasses e desalentos, como esta em que vivemos.

A nossa dita abertura (muitas vezes afinal e apenas mais um tardio escancaramento tecno-financeiro, consumista, parasitário, passivo, politicamente subserviente e subsídio-dependente!) e a nossa imparável inserção nos novos espaços e tempos da Globalização hegemónica, deve ser contrabalançada pela preservação possível daquilo que nos pode distinguir, fazer desenvolver e progredir de modo sustentado, integrado mas autónomo. Os campos discursivos globais e regionais, também aqui, enfrentam batalhas civilizacionais e ético-políticas decisivas…

Mesmo a Restauração de 1640 – embora parcialmente justificada por enquadramentos psico-sociais nacionais traumáticos … –, carece ainda de ser explicada pela articulação da individualidade cultural com a independência política; a conjuntura económica e colonial dos Impérios Português e Espanhol; as pretensões, interesses e sucessivos reposicionamentos tácticos e estratégicos das restantes potências europeias do século XVII (França, Inglaterra e Holanda); o posicionamento das classes, formações, grupos socioprofissionais e mentalidades socio-religiosas; a situação político-militar europeia (nomeadamente as revoltas regionais da Biscaia, de Évora e a decisiva rebelião nacionalista da Catalunha); o contexto conflitual dos vários esquemas teórico-jurídicos e diplomáticos vigentes, – e todos estes ainda no quadro militar puro e próprio de um processo revolucionário de re-nacionalização, como foi o que se seguiu à insurreição restauracionista e à Paz de Vestefália, sendo até que a ordem internacional decorrente desta última só terá terminado afinal em 11 de Setembro de 2001!

– Como se deduzirá, por comparação ou analogia, não estamos assim tão longe do espírito do mundo, da inteligência das sociedades e do coração dos homens de 1640, como pseudo-socraticamente poderia parerecer...

domingo, novembro 22, 2009

PARTÍCULAS DE DEUS


Os mais representativos e relevantes mundos, agentes e actores da Ciência, da Filosofia, da Teologia e da Religião – devido às múltiplas e mutuamente implicadas dimensões, categorias, níveis e sistemas conceptuais, epistemológicos e hermenêuticos envolvidos –, estiveram nos últimos dias, e vão permanecer durante largo tempo, intelectual e reflexivamente mobilizados e especialmente atentos à particular, apelativa e muito pertinente conjugação de problemáticas, abordagens e desafios técnico-científicos e teórico-críticos suscitados pelo arranque das actuais, mais recentes e muito complexas experimentações do LHC (Large Hadron Collider), um audacioso projecto do CERN-Laboratório Europeu de Física de Partículas (www.cern.ch) que envolveu grandes consórcios científicos e financeiros europeus (entre os quais vários portugueses).




De resto e como seria de esperar, a presença e o confronto de questões técnicas muito sofisticadas com paradigmas, escalas e modelos físico-matemáticos, epistémicos e cosmológicos situáveis em vários campos disciplinares – que as referidas experiências com aquele Acelerador de Partículas vão consumando e mais hão-de ainda suscitar, também eles em cadeia –, começaram já a merecer um grande relevo na Comunicação Social de todos os países e regiões, para além, naturalmente, de estarem a ser retomados, em múltiplas vertentes, ópticas, interesses e sentidos, nos meios académicos e intelectuais cujos horizontes epistémicos, científicos e culturais aliás, embora de acordo com as variáveis e determinantes da própria historicidade do Conhecimento e do Saber, sempre os assumiram como objectos seus e próprios, conquanto metódica e ontologicamente diferenciados, isto é não sobreponíveis nem subsumíveis uns aos outros, nomeadamente nos campos da Física, da Astrofísica, da Cosmologia e, por maioria de razão, da Metafísica!

É pois assim que também tem sido proveitoso acompanhar e comparar ainda o actual debate sobre a dialéctica da própria dimensão das esferas de realidade com as respectivas categorias simbólicas, analógicas ou puramente formais de linguagem referenciadora (desde as equações energético-quantificadoras e representativas dos tempos, movimentos e espaços de existência ou para-vida das partículas sub-atómicas, tal aquela de Higgs, até à sua mesma e contraditória qualificação ôntica, quase demiúrgica, como se "de Deus"…).

– Mas é claro que tudo isto tem muito que se lhe diga, até porque de partículas, emanações ou sinais de Deus, neste nosso Mundo e nos outros a cujas penúltimas portas de Génese talvez o LHC ande mesmo a bater, nunca faltou nem centelha real nem ilusão de aparição, só que ocultas ambas no outro Mistério da sua ínsita Criação…
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Sexta-Feira, 12 de Setembro de 2008
* Originalmente publicado em "Diário Insular" e "Azores Digital"