sexta-feira, junho 17, 2016


Uma Alegoria pedestre
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A implantação da estátua evocativa de Vasco da Gama (obra do artista Duker Bower) no ataviado Pátio da Alfândega de Angra do Heroísmo tem gerado curiosidade, humorismo e atracção mediática, tanto mais quanto o seu solene e aparatoso descerramento foi inserido nas Comemorações do 10 de Junho.


Tradicionalmente concebidas, promovidas e ordenadas aquelas cerimónias do Dia de Portugal pelo Representante da República nos Açores, desta feita porém foram os eventos nelas constantes diluídos (subordinados?) a uma programação sensivelmente acoplada a acções autárquicas encenadas, à excepção da Recepção na Madre de Deus, em áreas ou facilidades municipais (Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, e Convento de S. Francisco de Angra, para além do controverso átrio fronteiriço às proverbiais portinhas do mar e escadarias da marina da cidade de Angra do Heroísmo).

– Lembrar-se-ão disso, indiferentes ou cabisbaixos, os institutos locais e os partidos amorfos? Todavia e apesar de tudo, não há mal nenhum nessas parcerias socioculturais, ou em outras confluências de vário interesse análogo e mútuo proveito, porquanto assim em pragmática cooperação potenciam-se recursos, protagonismos e flamâncias...


Quanto à escultura do irmão de Paulo da Gama – enterrado este desde 1499 numa capela da igreja de Nossa Senhora da Guia (anexa ao Museu de Angra) e representado aquele em postura de animado caminhar (após o seu historiado desembarque, provavelmente na zona circundante da Prainha) –, remontava (conforme na altura o “Diário dos Açores” de 1 de Abril noticiou) o respectivo projecto já a 2013, oferta pródiga, meritória e empenhada, de Victor Baptista, um imigrante açor-americano de sucesso, entretanto agraciado com o grau de Comendador da Ordem de Mérito e que já havia brindado Portugal com a oferta de uma estátua do futebolista Eusébio.


 – Ora independentemente de retomarmos mais tarde este multifacetado tema, registe-se que as primeiras discordâncias ou reservas sobre aquela promissora ideia (quase perdulária e minorada presentemente, enquanto concretização material e implante in situ) – a par de um denunciado alheamento de uma outrossim exigível avaliação crítica e de coerente reflexão estético-arquitectural (v.g. sobre que critérios para marcação e inscrição física e simbólica em espaços públicos e urbanos de objectos e narrativas memoriais com potencial de impacto imaginário e honorífico, didactismo crível, encenação cívica e mediação interactiva!), prendem-se duplamente com a muito discutível fixação em raso da dita figura alegórica naquele lugar, como há dias fez deduzir, em Editorial, o jornal terceirense “Diário Insular”, ao lobrigar que, devido a tão “precário assentamento no chão, a não haver comedimento (e os excessos potenciais são mais que muitos agora que se aproximam as Sanjoaninas), podemos um dia destes acordar com a estátua vergada de joelhos”...


 Na verdade, tratar daquele tão incauto e provinciano modo um ícone tão glorioso (como se fosse peça retirada de um carro de desfile ou de um quadro alegórico sanjoanínico...), feito elemento meramente decorativo e de arte fantasista e efémera, e posto ali à acessível mão do disparo de selfies turisteiros ou das poses mais ou menos infantis de grupos e caravanas em alegre passeio e folia (para mais tarde se recordarem todos dos brasões da nossa mundial e patrimonial Angra, popularizada então como angra e ancoradouro de um brejeiro e regressivo Portugal de pequeninos, com motivos açóricos de honras perdidas, complexos de centralidade oceânica e presunções de grandeza antiga... –, não lembraria nem aos cortesãos de outras paragens, noutras ilhas de encanto e maravilha, ou de pesadelo exótico, lá por quaisquer Quíloas, Mombaças ou Sofalas que tivessem sido para aqui transplantadas, para contentamento de caciques balofos, conselheiros medíocres, castiços bairristas ou cidadãos já apenas sazonalmente folgazões!


 – Mas agora, que às Musas alheias de antanho somente agradeça “o nosso Gama/ O muito amor da pátria, que as obriga/ A dar aos seus, na lira, nome e fama/ De toda a ilustre e bélica fadiga”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 18.06.2016):



























Azores Digital:

Primeira versão em "Diário Insular",
Angra do Heroísmo, 18.06.2016:





sexta-feira, junho 03, 2016


Guerras e outros Mitos
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A recente vinda de António José Telo à ilha Terceira constituiu ocasião para voltarmos a ouvi-lo reflectir (e reflectir com ele) sobre História Político-Militar e Diplomática, Geoestratégia e Defesa, tanto naquilo que nessas áreas está implicado de múltiplas dimensões político-institucionais e socioculturais globais, quanto ao muito que dessas mesmas questões ao âmbito nacional concerne, e em específica medida mais interessa aos Açores (por quanto historicamente nos marcou, diz respeito e continuará a condicionar).


 – Professor da Academia Militar, António José Telo veio a Angra do Heroísmo, a convite do Instituto Histórico da Ilha Terceira, proferir uma Conferência sobre os mitos da Guerra de 1914-18, tendo exposto e analisado, com base em fontes documentais descuradas e segundo linhas de revisão e interpretação alternativas às usualmente seguidas, o contexto, factores determinantes e respectivas motivações reais da participação portuguesa na I Guerra (assim e agora propositadamente desmistificada), problemática já antes abordada pelo competente e distinto professor da Academia Militar, embora a partir de arquivos mais cingidos, tal como lemos no seu sugestivo trabalho “Um Enquadramento Global para uma Guerra Global”, publicado na Revista Nação e Defesa do IDN.

Nesse texto, o conceituado académico e investigador, explanando a abordagem que parcialmente retomou em Angra, escrevia que a beligerância portuguesa na Primeira Guerra “tem fortes traços de originalidade e, sem os entender em termos gerais, não é possível compreender nenhum aspeto particular, nomeadamente o enquadramento global que conduz Portugal para a guerra.


 “ (...) Portugal é o único poder que força a beligerância, não para obter vantagens e ganhos materiais, mas para se defender. Defender-se contra uma agressão do inimigo? Não! Defender-se contra os inconfessáveis desejos dos aliados (Grã-Bretanha, Bélgica e África do Sul) ou dos neutros (Espanha) e, sobretudo, defender-se internamente. A beligerância forçada foi o caminho que um pequeno grupo de republicanos fundamentalmente ligados ao Partido Democrático, que concebido a República como um regime radical, violento e intolerante, encontrou para se perpetuar no poder”.

– E após uma detalhada análise das múltiplas linhas de força e de interesse, clivagens e influências internas e externas, que se debateram no respeitante à participação portuguesa na Guerra, António José Telo fechava ali nomeadamente com o seguinte:


 “Como conclusão final pode-se afirmar que esta é a originalidade portuguesa: uma guerra civil que se mistura com a guerra internacional, uma posição defensiva onde interno e externo são inseparáveis, uma política de pedir o impossível a Forças Armadas que foram aniquiladas na sua capacidade operacional, um papel importante no equilíbrio entre os dois principais Aliados, um papel importante no despertar dos EUA, uma densa cortina de fumo onde se mente conscientemente à opinião pública pedindo a cumplicidade relutante do aliado na mentira, uma gigantesca divisão dos militares, chamados a lutar por uma política que muitos consideram ser um desastre nacional, inseridos numa máquina desorganizada, sem o apoio efetivo do seu aliado e mesmo sem a sua compreensão. É preciso acrescentar que a cortina de fumo se prolonga muito para além da guerra, pois as forças que estavam por detrás dos “guerristas” entendem muito bem que a sua única hipótese é insistir na Nação e Defesa 32 Um Enquadramento Global para uma Guerra Global mentira inicial, reforçar a ideia que Portugal fez um grande esforço nacional para responder ao pedido do seu “Secular Aliado”, quando a realidade é justamente o contrário. É uma cortina de fumo que ainda hoje continua e que torna difícil e mesmo perigoso, explicar o que realmente aconteceu. Essa é a missão dos historiadores, preocupados em entender para além das aparências; o resto é a missão, não dos políticos, que todos são, mas dos maus políticos, que muitos há. Para quem conhecer Portugal, não é difícil saber quem vai prevalecer. Ou será que alguma coisa de essencial mudou?”.


– Todavia não posso deixar de mais registar hoje que António José Telo durante a sua permanência na Terceira também concedeu uma marcante e pertinente Entrevista aos jornalistas Armando Mendes e Luciano Barcelos da RDP/RTP-A, na qual tornou a deixar essenciais ponderações sobre o actual quadro geopolítico (com relevo para o Índico e o Pacífico!) e o re-posicionamento das ilhas atlânticas neste novo contexto geoestratégico global, europeu, nacional e regional, para além de ter voltado a acentuar, com toda a razão, a necessidade de um imprescindível acompanhamento permanente, cogitação aprofundada e produção crítica e prospectiva a partir dos Açores...


 – Ou não se continuasse, como em 1993, a constatar que “raramente há consenso em Portugal sobre qual a sua estratégia nacional”, que “raramente existe sequer uma elite que elabore um pensamento coerente nestes termos”, que “só em raros casos podemos dizer que um grupo político particular tem uma visão elaborada sobre a estratégia nacional do país”, e que o que há, isso sim, é “uma longa tradição de não discutir em termos realistas estes assuntos e de ignorar a forma como as grandes potências encaram Portugal”!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 04.06.2016):



























Azores Digital:























RTP-Açores:



























e outra versão em "Diário Insular", Angra do Heroísmo, 04.06.2016:




























sexta-feira, maio 20, 2016


Um Arquivo Secreto,
Romanesco e Escandaloso
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Publicada pela Editora Esfera do Caos (Lisboa, 2011), a obra Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa – Documentação, conforme referi na altura aqui no "Diário dos Açores" (17.12.2011) – disponível em http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2011/12/do-fascinio-dos-arquivos-secretos-do.html e ainda recentemente retomei no "Diário Insular" (18.12.2015) – reúne peças sumariadas do Fundo da Nunciatura de Lisboa, patentes no  “Arquivo Secreto do Vaticano”  e relativas ao período da Expansão Portuguesa (ao qual podemos chamar de “primeira globalização do Cristianismo na sua forma confessional católica desde a modernidade”). Sob coordenação de José Eduardo Franco (JEF), todo esse excepcional Repertório constituía logo, e mais – como então salientei –  tem vindo a constituir indispensável instrumento para quem quiser estudar o Catolicismo em Portugal e no Mundo: – Assim, ler essas fontes documentais, identicamente salientava JEF, é encetar “uma aventura de compreensão que deve ser, em primeiro lugar, a missão da construção da história como revisitação do passado, guiada por uma insistente interrogação”.



– Ora do Tomo I dessa obra, originalmente relativo à Costa Ocidental de África e Ilhas Atlânticas, acaba de fazer-se, como Volume Extraordinário do N.º 65 (2015) do Boletim Eclesiástico dos Açores, um Suplemento (485 páginas) propriamente relativo aos Açores (1691-1919). A edição-selecta, intitulada A Diocese de Angra no Arquivo Secreto do Vaticano, integra – lamentavelmente sem qualquer Índice remissivo... – 6115 entradas (datas-limite: 14.08.1813-11.08.1915), nelas constando, como subscreve o seu Director (Hélder Fonseca Mendes), “matéria abundante que roça o romanesco e até o escândalo. Tudo com nomes de pessoas concretas marcadas pelo conflito interior de quem numa altura da vida toma um compromisso para sempre, mas depois altera-se a vontade, e às vezes, com o amadurecimento ou a falta dele dão origem a um conflito exterior entre os direitos da liberdade individual e as normas que a limita. As transformações sociais também transparecem no caminho que leva ao laicismo e ao secularismo.

“Os conflitos entre Bispos e o Cabido também transparecem. É impressionante a quantidade de energias que se gasta em torno de quezílias internas (...). A mobilidade nas ilhas com a entrada de estrangeiros leva a que aumente o número de pedidos de dispensa de disparidade de culto. As igrejas reformadas entram em acção também nos Açores”.


– A imagem da sociedade açoriana e da Igreja que aqui está, com os seus prelados, clérigos, religiosos, etc., tal como torna a ressaltar da releitura de A Diocese de Angra no Arquivo Secreto do Vaticano nem sempre é muito lisonjeira, deplorando, por exemplo, o Bispo D. Estêvão, em 1644, “a falta de ministros com qualidades suficientes para pregarem a palavra divina, apontando como causas para esta situação a imoralidade de alguns, a decadência de conhecimentos teológicos e educação eclesiástico-religiosa”, a par de “irregularidades praticadas nas Ordens”, “desacatos”, “roubos”, “públicos(s) escândalo(s) em concubinato(s)”, freiras “enclausuradas no distrito de Angra (...) vivendo a maioria irregularmente e algumas em grande escândalo, encontrando-se situações semelhantes em S. Miguel e na Horta”, por entre autos e libelos, acusações, seduções, fugas, prisões, anátemas confessionais (v.g. antiprotestantes e antijudaicos...), excomunhões, censuras, conluios institucionais, etc., etc.

De resto, já em Outubro de 2011, por ocasião da apresentação da edição integral referida, D. Manuel Clemente (actual Cardeal Patriarca de Lisboa) logo salientou a importância,   recursos e potencialidades que uma obra desta natureza continha, com a particularidade – para nós indicativa, como escrevi antes – de se ter debruçado sobre a problemática conflitual (para ele dilecta e da qual é reputado especialista) do liberalismo, do primeiro republicanismo, do movimento católico português e das suas paradigmáticas configurações, ecos e ilustrações nas nossas ilhas, para tanto respigando, um exemplo documental de “sete anos antes da revolução liberal”, onde um prelado já dava notas de um outro tempo, que então chegava, ao referir “apreciar a religiosidade das pessoas do campo em oposição à cidade, onde diz que residem os libertinos e os maçons”, e bem assim com muitas outras e preciosas informações e pistas que ali variada e abundantemente constam... E isto mesmo fora ainda salientado por Arnaldo Espírito Santo (coordenador, com Manuel Saturino Gomes, do primeiro tomo da referida obra) ao escrever o seguinte:

– “Tomemos como caso notável a história regional e local das comunidades açorianas. Das centenas de pedidos de dispensa de impedimentos canónicos do matrimónio entre familiares, consanguíneos e afins, ressalta a verificação de que era restrito, no século XVII, o número de famílias do arquipélago, em grande parte descendentes daquelas que iniciaram o povoamento das ilhas. A prática religiosa é intensa. A enquadrar as comunidades urbanas e com uma grande inserção entre elas, exercem o seu fascínio os conventos e os institutos de várias famílias religiosas. Muitos e muitas acorrem a engrossar as suas fileiras. Seja por inadaptação ou por insatisfação, chovem os pedidos de mudança de lugar, uns alegando desejo de maior austeridade, outros denunciando dificuldades pontuais de convivência e conflitos pessoais. Uma abadessa solicita a exoneração do cargo; uma freira, já idosa, pretende licença para ter uma criada. A autoridade eclesiástica competente vai despachando conforme os casos, ora acedendo aos pedidos, ora recusando para não criar precedentes.

“Há matéria abundante que roça o romanesco. Uma freira foge do convento para Inglaterra com um marinheiro inglês. Outra salta o muro, dizem que com conivência do confessor. Um escândalo que fez correr rios de tinta e de documentos”…, e assim por diante, para encantadoras incursões e revisitações socio-históricas, públicas e privadas, culturais e existenciais, pelos caminhos do passado da vida nos Açores, no entrecruzamento de gentes, mentalidades e destinos do Mundo.

– Uma obra fascinante, portanto, torno a dizer, e plena de atractivos inter e pluridisciplinares, indispensável nas estantes pessoais e bibliotecas e arquivos regionais, para estudo, investigação e reprodutivo conhecimento crítico daquilo que fomos, e do muito que, de algum modo, ainda nos molda e condiciona hoje…


E depois, se a designação de “Arquivo Secreto do Vaticano” – aliás já acessível hoje até ao Pontificado de Bento XV (1914-1922) – inclina realmente o leitor para “um mundo subterrâneo, obscuro, perigoso, duvidoso, inacessível”, pode também criteriosamente contribuir com este Catálogo (cadastro...) “para que, de futuro, os investigadores, possam arquitectar e construir uma [outra?] História da Igreja nos Açores”, sem mitos ou novas mistificações, quiçá renovada espiritual e socialmente, e muito mais verdadeiramente fiel aos ensinamentos do seu Mestre... 
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 21.05.2016):


sábado, maio 14, 2016


Romanesco e Escandaloso
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Publicada pela Esfera do Caos (Lisboa, 2011), a obra Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa – Documentação, conforme referi na altura (17.12.2011) – disponível em http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2011/12/do-fascinio-dos-arquivos-secretos-do.html e recentemente retomei aqui no DI (18.12.2015) – reúne documentação sumariada do Fundo da Nunciatura de Lisboa patente no  “Arquivo Secreto do Vaticano”  e relativa ao período da Expansão Portuguesa ao qual podemos chamar de “primeira globalização do Cristianismo na sua forma confessional católica desde a modernidade”.

Sob Coordenação de José Eduardo Franco (JEF), todo esse excepcional Repertório constituiu logo, e mais – como então salientei –  tem podido vir a constituir indispensável instrumento para quem quiser estudar o Catolicismo em Portugal e no Mundo:

– Ler essas fontes documentais, identicamente salientava JEF, é pois encetar “uma aventura de compreensão que deve ser, em primeiro lugar, a missão da construção da história como revisitação do passado, guiada por uma insistente interrogação”.Ora do Tomo I dessa obra, originalmente relativo à Costa Ocidental de África e Ilhas Atlânticas, acaba de fazer-se, como Volume Extraordinário do N.º 65 (2015) do Boletim Eclesiástico dos Açores, um Suplemento (485 páginas) propriamente relativo aos Açores (1691-1919).
– Esta edição-selecta, intitulada A Diocese de Angra no Arquivo Secreto do Vaticano, integra 6115 entradas (datas-limite: 14.08.1813-11.08.1915), nelas constando, como assinala o seu Director (Hélder Fonseca Mendes), “matéria abundante que roça o romanesco e até o escândalo (...).
“As transformações sociais também transparecem no caminho que leva ao laicismo e ao secularismo. Os conflitos entre Bispos e o Cabido também (...).“É impressionante a quantidade de energias que se gasta em torno de quezílias internas”.
– E depois, a designação de “Arquivo Secreto do Vaticano”, aliás já acessível hoje até ao Pontificado de Bento XV (1914-1922), pode realmente remeter o leitor para “um mundo subterrâneo, obscuro, perigoso, duvidoso, inacessível”.Todavia, este catálogo também pode contribuir “para que, de futuro, os investigadores, possam arquitectar e construir uma [outra?] História da Igreja nos Açores”...

– Talvez sem mitos, ou novas mistificações!
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 14.05.2016):













domingo, maio 08, 2016


Maio em Abril?
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Ao leitor poderá parecer que título desta Crónica altera ou parece trocar a sequência cronológica do repertório-padrão dos meses, baralhando as agendas com que usualmente preenchemos os dias e que nos diversos calendários, almanaques e devocionários vão registando o girar cíclico do Tempo, a sucessão das estações, ciclos festivos, acontecimentos memoráveis e todas as datas que são marcos culturais e histórico-existenciais dos indivíduos singulares, das comunidades e das várias, mutáveis e sucessivas civilizações.



Isto mesmo registou o nosso Eça, num notável texto de 1895, quando – começando por recordar uma antiquíssima lenda do Talmude sobre os dois sábios filhos de Seth que “naquele caminho perdido da Mesopotâmia, sob a tristeza imensa da tarde, determinaram arquivar, escrevendo em matéria imperecível, a Ciência que possuíam”, e que, “na derradeira madrugada, finda a Obra, (...) levantando as faces cansadas, louvaram o Senhor que lhes concedera tempo de cumprirem, para com os homens da outra Humanidade, aquele dever final de fraternidade magnífica” – observou que “cada povo que se organiza, e se prepara para a História, imediatamente organiza o seu Almanaque, com o cuidado e a previsão com que traça as ruas da sua cidade”, não só nos habilitando “a que vivamos bem, na larga vida social e espiritual, mas a que a vivamos bem, com doces facilidades, na vida pequenina e caseira”...


 – Ora vem este tema a propósito do título desta coluna (ou vice-versa que fosse, o que para o caso tanto faria), porque, especialmente longe dos lugares e quadras locais, se volvêssemos olhos para as coisas e loisas circunvizinhas, talvez não antevíssemos muita discrepância de factos e de sentidos quer começássemos por 1 de Abril, proverbial festejo da mentira ou peta, ou pelo 1.º de Maio, solene evocação da ternura e saudade das Mães do Mundo, da (amiúde espoliada) dignidade universal dos Trabalhadores e do Trabalho, e (enfim...) do arranque doméstico de (in)certos lustres brasonados, desde os castiçamente dependurados nos arraiais e cordas populares até aos suspensos em brasonadas bazófias e capotes, que como tal para pouco prestarão nos almanaques de hoje e nos do Futuro!
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Em "Diário Insular",
Angra do Heroísmo, 07.05.2016:























Azores Digital:






















RTP-Açores:



























e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 12.05.2016):






quinta-feira, abril 14, 2016


Imaginário Presidencial 

e Mitos Portugueses


É sabido que o nosso recém-eleito Presidente da República sempre captou e cultivou, com predilecção comunicacional e talento estratégico, as múltiplas dimensões simbólicas das palavras e dos gestos, – selectiva e intencionalmente accionadas por ele desde há anos e nos mais diversos contextos pessoais e sociais, privados e públicos, individuais e institucionais... 


– E foi assim logo a partir das daquelas suas tão famosas análises no “Expresso” (naquilo que evidentemente tinham ou reflectiam de factos objectivos e empiricamente constatados, e no que entreteciam ou arquitectavam em e como hábeis construtos imaginativos...), modelos bem lembrados e que, pese embora a passagem dos tempos, modos e vontades, persistem ainda no seu natural e estudado jeitos de formar argumentário e gizar acção, exprimir crenças, formular valores e propor ideais. 

De resto, tal pendor simbólico-actuante de Marcelo Rebelo de Sousa – sobremaneira vindo a acentuar-se nos últimos tempos, nas suas atractivas prestações radiofónico-televisivas e no encaminhamento tendencial (às vezes tendencioso) dessas sugestivas e consensualizantes exibições e peças para um projecto político autónomo que, enfim e por fim, se concretizou na almejada e inquebrantável resolução da sua candidatura vitoriosa a Belém – tornou a revelar-se paradigmaticamente presente e vivo na suas inaugurais falas e movimentos como Chefe de Estado, nomeadamente na alocução à Assembleia da República durante a cerimónia de Tomada de Posse, nas pontuais declarações à Comunicação Social e nas seguintes visitas ao Vaticano/Santa Sé Santa Sé e a Espanha...


É claro que o recurso a teses, narrativas, dimensões figuradas e símbolos (muitos deles, quando não todos) dotados de ambivalência ou plurivalência de significado, nunca é isento de riscos, na medida em que essa selectiva escolha e o seus correspondentes manuseamentos estratégicos (eles próprios real ou potencialmente míticos ou até mesmo mistificantes...) pressupõem, veiculam e transportam uma particular e pré-determinada interpretação convencionada de factos e factores cuja suposta (sempre relativa ou correlativa) “verdade” (enquanto mensagem crítica e historicamente situada...) é variável, quando não, e por isso mesmo, internamente conflitual, ou intrinsecamente conflituante, nos respectivos conteúdos, vigências e alcances!


– Ora apesar do honroso e indubitável sentimento nacional, foi o caso das sucessivas invocações patrióticas (e das razões políticas?) de Ourique, Mouzinho (ainda recitado no discurso às Forças Armadas), Lobo Antunes, Torga e da Bula Manifestis probatum... Para além, naturalmente das cerimónias de deposição de flores nos túmulos de Camões e de Vasco da Gama, cujas conjugações de sentido e de significado com as primeiras ainda mais acentuam as suas mútuas relevâncias...
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Em "Diário dos Açores",
Ponta Delgada, 09.04.2016:






sexta-feira, abril 01, 2016


Os Ditados do Tempo
em Fernando Aires
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Numa feliz iniciativa da editorial Opera Omnia (Guimarães, 2015), chegou-nos recentemente o livro Era uma vez o Tempo – Diário (1982-2010) de Fernando Aires. 


Prefaciada por Eugénio Lisboa – com posfácio de José Leon Machado e coordenação de Maria João Ruivo Sousa Franco –, esta volumosa obra reúne os Diários (I a VI) daquele escritor nascido e falecido em Ponta Delgada (1928-2010), estimado professor, jornalista e cronista que também publicou uma novela (A Ilha de Nunca Mais, 2000), contos – Histórias do Entardecer, 1988, “Prémio Nunes da Rosa 1988”; Memórias da Cidade Cercada (1995) – e ensaios – v.g. José do Canto – Subsídios para a História Micaelense (1820-1898); Faria e Maia e Antero (1961); Afonso Chaves (1982); Alice Moderno – A Mulher e a Obra (1985), e Delinquência e Emigração em S. Miguel na 1.ª metade do séc. XIX (1988).



– Com ligeireza tem às vezes a diarística (de facto nem sempre formal ou modelarmente praticada de maneira equivalente) sido vista como género, subgénero ou estilo menor (porque julgada demasiado “intimista”, “fechada” ou “auto-referenciada”), enquanto narrativa autobiográfica (que também é).


 Porém, cronologicamente sequenciado e pautado por registos de quotidianos singularmente experimentados, temporalmente revividos, subjectivamente interiorizados e selectivamente reflectidos, sempre os Diários, como salientaram Carlos Reis e Ana Cristina Lopes nos seus estudos narratológicos – e assim tão apelativa e admiravelmente se dá nesta excepcional obra –, revelam uma complexa fragmentação diegética e uma tendência para o confessionalismo (aqui simultaneamente crítico, poético e vital), ambos muito apelativos e exigentes...


 – Tenho bem presente a delicada figura, a sensível personalidade e a notável obra de Fernando Aires, com quem partilhei saudosos espaços de convívio cultural e de docência na Universidade dos Açores, e de quem releio hoje o que dele registaram amigos, colegas, companheiros e críticos (Almeida Pavão, Vamberto Freitas, Urbano Bettencourt, João de Melo, Nuno Costa Santos, Eduíno de Jesus, Assunção Monteiro, Adília Araújo...).


George Monteiro, no JL de 11 de Maio de 1994, já havia salientado que a obra de Fernando Aires se encontrava, na “muita boa companhia” de outros “autores de diários, concebidos e produzidos para publicação”, e no mesmo ano Eugénio Lisboa não hesitava em nomear o escritor micaelense, a par de Torga, Manuel Laranjeira, Irene Lisboa, Florbela, Régio, Vergílio Ferreira e Marcello Duarte Mathias, entre muitos outros certamente, como senhor de “um dos mais belos e sensíveis diários em língua portuguesa”, acentuando também agora no seu Prefácio:

– “A escrita deste diário é discreta mas quase sempre sedutora, eficaz e, não raro, reveladora de um cúmulo da arte de escrever. (...) Fernando Aires perscruta os segredos profundos da língua e da escrita e fá-lo, por si próprio, sem se agachar nem a escolas nem a modas. (...) O diário é rico de meditações, de percepções, de assombros que surgem no decorrer dos dias e que o escritor vai registando com pathos variado. O efémero da vida – o sic transit... surge de quando em quando, ou porque morre um amigo, ou, simplesmente, porque a evidência disso fulge inesperada e imperiosamente e magoa a alma assim visitada: ‘Se a finalidade da vida é apenas e só, viver, oh, vida que tão depressa te cumpres em cinza, pó e nada! Como dói a tua pressa em cada um que se cumpre e não voltará jamais a cumprir-se. Jamais. Jamais’. Raul Brandão não andará longe”.



– A abrir este livro, em “Nótula Biobibliográfica”, Maria João Ruivo Sousa, justamente assinala os percursos de Fernando Aires (seu pai), sinalizando a sua ligação às tertúlias literárias e jornalísticas de meados do século (com Eduíno de Jesus, Jacinto Soares de Albergaria, Fernando de Lima, Eduardo Vasconcelos Moniz e outros condiscípulos, “com quem viria a constituir, em 1946, o Círculo Literário Antero de Quental, que, pela sua actividade literária, contribuiu para a divulgação do Modernismo na ilha de S. Miguel:

“Os primeiros escritos deste grupo começaram a circular na imprensa de Ponta delgada a partir de então, primeiro na página literária do Diário dos Açores, coordenada por Oliveira San-Bento, e na do Correio dos Açores, coordenada por Ruy Galvão de Carvalho e Diogo Ivens, e logo depois no semanário A Ilha, dirigido por José Barbosa. Fernando Aires publicou nesses jornais alguns artigos e pequenos contos, assim como os primeiros parágrafos de um diário íntimo”.


– Ora é por tudo isso (mesmo atendendo ao conhecido património diarístico já existente) que estes Diários de Fernando Aires e as suas fascinantes leituras geram, ou podem suscitar, prazer espiritual e marcam nova, genuína e ímpar presença “salpicada de humanidade e ternura, paixão e compaixão” (como bem sentiu e exprimiu o Onésimo Almeida), seja por quanto neles se entretece e concretiza de fino discurso literário (dramaticamente dito, sincero, compartilhado, catártico, metamórfico e redentor...), seja pelos específicos mundos, incisos filosóficos, vivências histórico-culturais, memórias geo-humanas, amores e projecções de uma ditada existência insulada, porém transcendentalmente oceânica, na qual Vida, Morte, Passado, Destino e Esperança coabitam em rostos, terras, águas e palavras feridas nos enigmas do Tempo presente e dulcificadas na saudade do Porvir:


 Ponta Delgada, 18 de Dezembro de 1982: O Outono quase no fim. Um céu liquefeito como certos olhos azuis rasos de água. A luz pousando na terra sem ruído. Depois da manhã cheia de horas intermináveis e de gestos obrigatórios, este sabor de vida. Este pão tostado ao calor da intimidade. Esta migalha de tempo tantas vezes adiada.

(...) Lisboa, 13 de Maio de 1988: Só o que é fugaz conserva fascínio – assim como a vida que, se não fosse a morte, não seria o desejo que é”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 02.04.2016):



























Outras versões __________________________

Em "Azores Digital":

























RTP-Açores:




























e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 02.04.2016):