domingo, junho 15, 2014


As Agnosias Diocesanas
e o Resplendor da Imagem Sacra



1. Há uma semana atrás, praticamente na urgência editorial dos prelos, publiquei neste jornal uma Crónica mais a jeito de resumo temático, ou síntese, de um tema ainda então a evoluir. Mas foi bom que assim acontecesse, porquanto o assunto, que ficou entretanto ganhando novos desenvolvimentos, permite que a ele e a essa luz voltemos hoje, ou não continuasse a merecer reflexão na Igreja e em toda a sociedade açoriana esse mesmo e tão falado caso da controversa subtracção temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto das peças constituintes da integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem própria, para declarados fins de exposição artístico-museológica em Lisboa...


 Por outro lado – conforme pudemos ir comprovando –, com crescente impacto socio-religioso, pastoral, eclesial, mediático (e até político!) – muito embora nem sempre abordado do mais exigível, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam a mais essencial e legítima tematização adequada) –, este confrangedor imbróglio foi também aglutinando novas, melindrosas e evidentes complexidades, conflituais reacções, díspares leituras (nalguns casos bastante despudoradas, levianas ou apenas inscientes), a par de outras significativas lacunas de reflexão e de compreensão (que foram amiúde alienadas por muitos daqueles que, por indeclinável dever de múnus e/ou correlativa responsabilidade pessoal ou institucional, em coerência, firmeza, estudo, saber e conhecimento, a tanto tinham obrigação)!

– Todavia que mais dizer de quanto este assunto continua a merecer ser levado a sério por tudo o que sintomaticamente revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do povo e das suas supostas “elites”, classes dirigentes e corporações, agentes e actores societários?

2. Tal como sublinhei anteriormente, de entre as formas expressivas da religiosidade e da fé religiosa católica nos Açores, o Culto ao Senhor Santo Cristo ocupa lugar único e absolutamente distinto, sendo mesmo que – das diversas devoções que nestas ilhas foram ganhando e perpetuando vigências espirituais, históricas, socioculturais e festivas (populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à hierarquia institucional da Igreja e ao Poder secular) – as venerações de cariz crístico ou representação cristológica (direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo) estão presentes e são praticadas em quase todos os lugares e contextos existenciais insulares e telúricos de crença, inconsciente e memória colectiva, reflectindo também conaturalmente as marcas das sucessivas e hegemónicas modelações tardo-medievais, contra-reformistas e barrocas da Evangelização no Arquipélago (especialmente por via dos Franciscanos e dos Jesuítas, com tudo o que histórico-dogmaticamente os seus carismas, variantes de espiritualidade, doutrina, formatos de prece e corporizações rituais, cultos e liturgia, determinações canónicas, etc., implicaram, a par, não negligenciável, de regimes de imposição dogmático-pastoral e de padronização normativa).

– E foi deste modo que a proliferação cultual e votiva, reflectida sob arquetípica forma revelacional no Ecce Homo – ou seja, na feição dolorosa, passionária e sofredora de um ícone universal representativo do Homem das Dores – conseguiu, como nenhuma outra devoção portuguesa e açoriana – exceptuando as Festas do Espírito Santo! – grandes, profundas e significativas dimensões, polarizando e acumulando depois no Senhor Santo Cristo, devido à superiormente sustentada e específica acção pessoal, e à posteridade venerante de Madre Teresa da Anunciada, tudo quanto nesse culto permanece perfeitamente identificável e ritualizado de modo ímpar e apelativo, em sua cíclica honorificação, tanto no recesso conventual do Santuário da Esperança como nas tradicionais manifestações festivas públicas, religiosas e profanas, nos Açores e nas Comunidades Açorianas, porém de modo mais grandioso na ilha de S. Miguel.


 3. Na altura em que comecei a escrever esta Crónica, aguardava-se o regresso a S. Miguel do Bispo D. António, que iria reunir com as entidades mais directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no sentido de procurar-se um possível consenso pacífico que pudesse, com a desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o Resplendor da Imagem fosse deslocado para a referida mostra (reiteradamente com medidas de segurança asseguradas, conquanto constituindo estas apenas uma das muitas e justificadas razões a ter em conta numa proporcionalmente descontextualizada situação como a da planeada exposição e sua arbitrária narrativa e implantação artístico-museológica profana!). Mas hoje, quando termino este texto, sabe-se já (http://www.diocesedeangra.pt/noticia_2166) que o Resplendor foi mesmo, bastante à socapa, levado para Lisboa, onde se encontra encaixotado no Museu de Arte Antiga, até ser “estudado”, técnico-cientificamente dissecado e “exposto” numa mostra cuja data não está definida...

– Não resta dúvida alguma que tudo se resolveu (por enquanto) com esse grande testemunho (uma jóia de arte, artimanhas e dignidade eclesiástica!), inspiração sacro-securitária e sabedoria teológica, uma pérola de zelo artístico-pastoral, compreensão sociocultural e museológica da fé, sem tibiezas devocionais nem cedências às vozes do Povo crente!!! 

Indiscutivelmente, assim, um verdadeiro e espantoso marco “de valor patrimonial, cultural e histórico que importa partilhar com toda a comunidade humana”, para perpétua memória simbólica da actual evangelização regional, no entendimento prudente e consciencioso do nosso iluminado e ilustrado Prelado, da sua clerezia conselheiral e dos seus doutos co-mentores diocesanos... Um feito, sem nódoa (para usar o termo de Santos Narciso), nem escrúpulo, nem motivo de escândalo; historicamente um exemplo edificante para a Igreja que está nos Açores, no País e no Mundo!

Por outro lado, não deixa de ser originalidade, neste quadro litigioso e de um cinismo atroz, saber-se que, no Santuário, quando constava correr uma espécie de “objecção de consciência” em relação à remoção física do Resplendor da Imagem (o que acentuaria simbolicamente as divergências existentes entre o Bispo e o Padre Duarte Melo, e a Irmandade, o Reitor do Santuário e as Religiosas...), vir agora um arauto diocesano frisar ter contado a dita operação transitária, fiscalizada em pessoa pelo Senhor D. António, com “a boa colaboração das irmãs que zelam pelo Tesouro”...

4. Só uma corajosa e bem formada inteligência da fé e uma proporcional consciência real destas realidades poderiam ter fornecido a todos, sem rodeios e falácias de argumentário indigente e servil, a devida percepção da estrutura global dos sistemas de signos e objectos, das suas lógicas e mais-valias, de uma ética da mostração diferencial das suas múltiplas categorias de significação, e da dialéctica das apropriações e legitimações que neste campo de bens materiais e simbólicos, móveis e imóveis, sempre se articulam e amiúde digladiam!

– E é assim que vale ainda hoje a pena recapitular que a Imagem do Senhor Santo Cristo e os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente activos (v.g. o Resplendor) constituem um todo objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outra instituições, para já nem falar no senso comum dos seus fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, seguindo as directrizes da Santa Sé e da Conferência Episcopal Portuguesa quando ensinam e determinam nos Princípios e Orientações relativos à tipologia e finalidade deste género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para salvaguarda do “carácter sagrado” dos objectos religiosamente queridos e piedosamente venerados, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das decisões que [os] afectem particularmente (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se ainda, para “usos em fins secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns [desses objectos de culto ou sagrados], nomeadamente (...) imagens de grande devoção”, como é o caso do Senhor Santo Cristo, evidentemente!


 Ora a este respeito creio que nada mais será preciso acrescentar hoje, embora deva relembrar, entre outros episódios historicamente tristes e didácticos, aquele que se passou nos Açores com as Irmandades do Espírito Santo (na década de 50 do século passado), salvaguardas as diferenças que a todos deveriam fazer pensar nas semelhanças, para obviar mimeses e sequelas análogas nestas presumidas “modernidades” eclesiásticas e “dadas às artes” (e a algumas artimanhas), impantes e laicistas nos seus cosmopolitismos turisteiros (ou apenas voyeuristas) – quando não encarreirados nas academias e nas administrações públicas e estatais –, para dessacralização gratuita e primária de certos símbolos (ditos “retrógrados” ou “arcaicos”), porém apenas para (re)investimentos duvidosos, fúteis ou sinistramente iconoclastas noutros signos, mitologias e processos mais ou menos (in)conscientes e inconsistentes de substituição ou transferência “progressista”, “esclarecida” ou até – imagine-se – insensata e confusamente ditos sociopolítica, estética e secularmente “libertadores”!

5. Neste momento este assunto ganhou contornos universais ainda mais complexos, que aqui ficam apenas sinalizados, e sobre os quais certamente muito se debaterá depois, para além das apaixonantes questões da Arte Sacra, da Museologia Religiosa e Eclesiástica, do estatuto dos Sacramentais (e talvez até, em decorrência, dos próprios Sacramentos...), para além das implicações pastorais, da teologia dos objectos de culto, da teologia icónica e das imagens, e da ética da conservação e da exposição, sem esquecer que tudo isso deve ser pensado e repensado no contexto sociocultural, devocional e católico dos Açores em geral e de S. Miguel em particular, numa (una?) Diocese.


– Também por isso é que esta procissão diocesana, entre agnosias de bradar aos céus, talvez ainda vá no adro, até porque não consta que anéis, báculos e mitras, estatuárias de beija-pé, objectos benzidos ou alfaias bentas, custódias, cálices, píxedes, etc., etc., possam ser todos colocados no mesmo nivelado museu das religiões... Ou então será que poderão, a curto prazo, também vir a ficar ao lado do Resplendor, sem vínculo de devoção, estrutura interna e integrada de representação, em indiferenciada e profana museologia, irrecuperavelmente dessacralizados numa montra iconoclasta perante a qual ninguém reza nem ajoelha, em piedosa devoção, crença e fé, Razão e Coração?
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 15.06.2014):