As Agnosias Diocesanas
e o Resplendor da Imagem Sacra
1. Há uma semana atrás, praticamente na urgência editorial dos
prelos, publiquei neste jornal uma Crónica mais a jeito de resumo temático, ou
síntese, de um tema ainda então a evoluir. Mas foi bom que assim acontecesse,
porquanto o assunto, que ficou entretanto ganhando novos desenvolvimentos,
permite que a ele e a essa luz voltemos hoje, ou não continuasse a merecer
reflexão na Igreja e em toda a
sociedade açoriana esse mesmo e tão falado caso da controversa subtracção temporária do Resplendor do
Senhor Santo Cristo ao conjunto das peças constituintes da integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem própria, para
declarados fins de exposição
artístico-museológica em Lisboa...
Por outro lado – conforme pudemos
ir comprovando –, com crescente impacto socio-religioso, pastoral, eclesial,
mediático (e até político!) – muito embora nem sempre abordado do mais
exigível, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam a mais essencial e legítima tematização
adequada) –, este confrangedor imbróglio foi também aglutinando novas, melindrosas e evidentes complexidades, conflituais reacções, díspares leituras (nalguns casos
bastante despudoradas, levianas ou apenas inscientes), a par de outras
significativas lacunas de reflexão e de compreensão
(que foram amiúde alienadas por muitos daqueles que, por indeclinável dever de múnus
e/ou correlativa responsabilidade pessoal ou institucional, em coerência,
firmeza, estudo, saber e conhecimento, a tanto tinham obrigação)!
– Todavia que mais dizer de quanto
este assunto continua a merecer ser levado
a sério por tudo o que sintomaticamente revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores,
pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do
povo e das suas supostas “elites”, classes dirigentes e corporações, agentes e
actores societários?
2. Tal como sublinhei anteriormente, de entre as formas expressivas da religiosidade e da fé religiosa católica nos Açores, o Culto ao Senhor Santo Cristo
ocupa lugar único e absolutamente distinto, sendo mesmo que – das diversas devoções que nestas ilhas foram
ganhando e perpetuando vigências espirituais, históricas, socioculturais e
festivas (populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à hierarquia institucional da Igreja e ao Poder
secular) – as venerações de cariz
crístico ou representação cristológica
(direccionadas à figura e à figuração
iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo) estão presentes e são
praticadas em quase todos os lugares e contextos existenciais insulares e telúricos de crença,
inconsciente e memória colectiva, reflectindo também conaturalmente as marcas
das sucessivas e hegemónicas modelações
tardo-medievais, contra-reformistas e barrocas da Evangelização no Arquipélago
(especialmente por via dos Franciscanos e dos Jesuítas, com tudo o que
histórico-dogmaticamente os seus carismas, variantes de espiritualidade,
doutrina, formatos de prece e corporizações rituais, cultos e liturgia,
determinações canónicas, etc., implicaram, a par, não negligenciável, de regimes de imposição dogmático-pastoral
e de padronização normativa).
– E foi deste modo que a
proliferação cultual e votiva, reflectida
sob arquetípica forma revelacional no Ecce
Homo – ou seja, na feição dolorosa, passionária e sofredora de um ícone universal representativo do Homem das Dores – conseguiu, como
nenhuma outra devoção portuguesa e açoriana – exceptuando as Festas do Espírito
Santo! – grandes, profundas e significativas dimensões, polarizando e
acumulando depois no Senhor Santo Cristo, devido à superiormente sustentada e específica
acção pessoal, e à posteridade
venerante de Madre Teresa da Anunciada, tudo quanto nesse culto permanece
perfeitamente identificável e ritualizado
de modo ímpar e apelativo, em sua cíclica
honorificação, tanto no recesso
conventual do Santuário da Esperança como nas tradicionais manifestações
festivas públicas, religiosas e profanas,
nos Açores e nas Comunidades Açorianas, porém de modo mais grandioso na ilha de
S. Miguel.
3. Na altura em que comecei a escrever esta Crónica, aguardava-se o
regresso a S. Miguel do Bispo D. António, que iria reunir com as entidades mais
directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no sentido de procurar-se um possível consenso pacífico que pudesse, com
a desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o
Resplendor da Imagem fosse deslocado para a referida mostra (reiteradamente com
medidas de segurança asseguradas,
conquanto constituindo estas apenas uma das
muitas e justificadas razões a ter em conta numa proporcionalmente descontextualizada situação como a da planeada
exposição e sua arbitrária narrativa e
implantação artístico-museológica profana!). Mas hoje, quando termino este
texto, sabe-se já (http://www.diocesedeangra.pt/noticia_2166) que o Resplendor foi mesmo, bastante à socapa, levado para Lisboa, onde se encontra encaixotado no Museu de Arte Antiga, até
ser “estudado”, técnico-cientificamente dissecado e “exposto” numa mostra cuja
data não está definida...
– Não resta dúvida alguma que
tudo se resolveu (por enquanto) com esse grande testemunho (uma jóia de arte,
artimanhas e dignidade eclesiástica!), inspiração sacro-securitária e sabedoria
teológica, uma pérola de zelo artístico-pastoral, compreensão sociocultural e
museológica da fé, sem tibiezas devocionais nem cedências às vozes do Povo
crente!!!
Indiscutivelmente, assim, um verdadeiro e espantoso marco “de valor
patrimonial, cultural e histórico que importa partilhar com toda a comunidade
humana”, para perpétua memória simbólica da actual evangelização regional, no
entendimento prudente e consciencioso do nosso iluminado e ilustrado Prelado,
da sua clerezia conselheiral e dos seus doutos co-mentores diocesanos... Um
feito, sem nódoa (para usar o termo
de Santos Narciso), nem escrúpulo, nem motivo de escândalo; historicamente um
exemplo edificante para a Igreja que está nos Açores, no País e no Mundo!
Por outro lado, não deixa de ser originalidade,
neste quadro litigioso e de um cinismo atroz, saber-se que, no Santuário, quando
constava correr uma espécie de “objecção de consciência” em relação à remoção física do Resplendor da Imagem
(o que acentuaria simbolicamente as divergências existentes entre o Bispo e o
Padre Duarte Melo, e a Irmandade, o Reitor do Santuário e as Religiosas...),
vir agora um arauto diocesano frisar ter contado a dita operação transitária,
fiscalizada em pessoa pelo Senhor D. António, com “a boa colaboração das irmãs
que zelam pelo Tesouro”...
4. Só uma corajosa e bem formada inteligência da fé e uma proporcional
consciência real destas realidades poderiam ter fornecido a todos, sem rodeios e falácias de argumentário
indigente e servil, a devida percepção da estrutura global dos sistemas de signos e objectos, das suas lógicas e mais-valias, de uma ética da mostração diferencial das suas múltiplas
categorias de significação, e da dialéctica das apropriações e legitimações
que neste campo de bens materiais e
simbólicos, móveis e imóveis, sempre se articulam e amiúde digladiam!
– E é assim que vale ainda hoje a
pena recapitular que a Imagem do Senhor Santo Cristo e os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente activos (v.g. o Resplendor)
constituem um todo objectual unitário,
que a Igreja, analogamente a outra instituições, para já nem falar no senso comum dos seus fiéis, tem “obrigação
de respeitar”, com “zelo”, seguindo as directrizes da Santa Sé e da Conferência
Episcopal Portuguesa quando ensinam e determinam nos Princípios e Orientações relativos à tipologia e finalidade deste
género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador,
de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para
salvaguarda do “carácter sagrado” dos objectos
religiosamente queridos e
piedosamente venerados, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a
comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das
decisões que [os] afectem particularmente (...), sobretudo quando esteja em
causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço
que a comunidade tem por ele”, respeitando-se ainda, para “usos em fins
secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns [desses objectos de culto ou sagrados],
nomeadamente (...) imagens de grande
devoção”, como é o caso do Senhor Santo Cristo, evidentemente!
Ora a este respeito creio que
nada mais será preciso acrescentar hoje, embora deva relembrar, entre outros
episódios historicamente tristes e
didácticos, aquele que se passou nos Açores com as Irmandades do Espírito
Santo (na década de 50 do século passado), salvaguardas
as diferenças que a todos deveriam fazer pensar nas semelhanças, para obviar
mimeses e sequelas análogas nestas presumidas “modernidades” eclesiásticas
e “dadas às artes” (e a algumas artimanhas), impantes e laicistas nos seus cosmopolitismos
turisteiros (ou apenas voyeuristas) –
quando não encarreirados nas academias e nas administrações públicas e estatais
–, para dessacralização gratuita e
primária de certos símbolos (ditos “retrógrados” ou “arcaicos”), porém
apenas para (re)investimentos duvidosos, fúteis ou sinistramente iconoclastas
noutros signos, mitologias e processos mais ou menos (in)conscientes e
inconsistentes de substituição ou transferência “progressista”, “esclarecida”
ou até – imagine-se – insensata e confusamente ditos sociopolítica, estética e
secularmente “libertadores”!
5. Neste momento este assunto ganhou contornos universais ainda
mais complexos, que aqui ficam apenas sinalizados, e sobre os quais certamente
muito se debaterá depois, para além das apaixonantes questões da Arte Sacra, da
Museologia Religiosa e Eclesiástica, do estatuto dos Sacramentais (e talvez
até, em decorrência, dos próprios Sacramentos...), para além das implicações
pastorais, da teologia dos objectos de
culto, da teologia icónica e das
imagens, e da ética da conservação e
da exposição, sem esquecer que tudo isso deve ser pensado e repensado no contexto sociocultural, devocional e
católico dos Açores em geral e de S. Miguel em particular, numa (una?) Diocese.
– Também por isso é que esta
procissão diocesana, entre agnosias de
bradar aos céus, talvez ainda vá no adro, até porque não consta que anéis,
báculos e mitras, estatuárias de beija-pé, objectos benzidos ou alfaias bentas,
custódias, cálices, píxedes, etc., etc., possam ser todos colocados no mesmo nivelado museu das religiões... Ou então
será que poderão, a curto prazo, também vir a ficar ao lado do Resplendor, sem vínculo de devoção, estrutura
interna e integrada de representação, em indiferenciada e profana museologia, irrecuperavelmente
dessacralizados numa montra iconoclasta
perante a qual ninguém reza nem ajoelha, em piedosa devoção, crença e fé, Razão
e Coração?
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