MEMÓRIA E REGISTOS
DE DEVOÇÃO
1. De entre as várias formas
expressivas da religiosidade e das manifestações
da fé religiosa católica dos Açorianos onde quer que vivam – no Arquipélago
ou nas derramadas partidas e diásporas desse vasto mundo de residentes fora das
ilhas, no continente português e europeu ou nas áreas de fixação da nossa
população imigrada nas distantes terras das Américas –, o Culto ao Senhor Santo Cristo
dos Milagres ocupa um lugar único, ímpar e absolutamente distinto.
De facto – entre as diferentes
devoções (Festas do Divino Espírito Santo, Culto Mariano, Culto Eucarístico, Culto
a Santos, Oragos e Padroeiros...) que aqui e ali foram ganhando e perpetuando implantação e vigências espirituais,
históricas, socioculturais e festivas (mais ou menos populares, eclesialmente
integradas ou parcialmente autónomas
face à Igreja e ao Poder secular...) –, as venerações
de cariz crístico ou de representação
cristológica, isto é, imediata ou mediatamente direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo (Segunda
Pessoa da Trindade), estão presentes e são praticadas um pouco por todas as
ilhas e espaços de vida, imaginário e memória colectiva do Povo Açoriano.
Assim, dessa mesma recorrente
presença devocional, são exemplos principais as festividades em honra ou preito
piedoso ao Senhor da Pedra (em Vila Franca do Campo), ao Bom Jesus (em S.
Mateus do Pico), ao Santo Cristo da Ribeirinha (no Faial), ao Santo Cristo da
Fajã (em S. Jorge) e ao Santo Cristo da Misericórdia (na Praia da Vitória),
este último que cedo se nos tornou familiar, tal qual Vitorino Nemésio o evocou
analogamente num notável registo confessional
e epistolográfico (que aliás retém núcleos
simbólicos, mítico-narrativos e telúricos comuns
a outros relatos, topografias sagradas e lugares iniciáticos da Tradição
açoriana e das reminiscências cristãs da própria condição existencial específica
do homo viator insular), deste
paradigmático modo:
– “Uma das cenas da minha
infância que me ficou gravada a fogo é a da procissão em memória da caída da
Praia (...). Dobravam os sinos. (...) Atrás, fechando o préstito, ia o
Crucificado que se diz arribado à ilha. Outras vezes, acordando cedo e
estremunhado, ouvia defronte o coro que diz Senhor
Deus, Misericórdia! E não se sabe se é humano ou se vem do mar às upas”.
Todavia, apesar desta
proliferação cultual e votiva do Cristianismo ao seu Senhor Jesus Milagroso (Santo por excelência, o Cristo da Divindade Trina), enquanto e sob a forma revelacional reflectida no Ecce Homo, ou seja – em feição dolorosa, passionária e sofredora –
como ícone universal do Homem das Dores), nenhuma outra devoção açoriana
– com a excepção radical e essencial
das Festas do Espírito Santo! – reúne tão grandes, profundas, complexas e
significativas dimensões (religiosas, teológicas, existenciais, psicológicas,
filosóficas, etnográficas, éticas e estéticas) quanto aquela que, em conjugação de sortilégios, se foi polarizando
e acumulando no Senhor Santo Cristo dos
Milagres que permanece hoje, talvez como nunca dantes, perfeitamente
identificável e individualizadamente ritualizado de modo muito próprio,
apelativo e espectacular no Convento-Santuário da Esperança em Ponta Delgada,
de cuja clausura monacal sai anualmente para um concorrido percurso atapetado, qual réplica de desfile real que a
todos apela e comove sob o Seu olhar
simultaneamente sereno, melancólico e pacificador, pelas ruas labirínticas da cidade,
em andor esplendoroso e florido...
2. Por outro lado e apesar do referencial tratado biográfico-apologético do Padre José
Clemente (com primeira edição em 1763 e sucessivas reproduções contemporâneas);
dos meritórios e conhecidos estudos
sectoriais de Urbano de Mendonça Dias (1947), Hugo Moreira (com diligente e
vastíssima produção especializada entre 1960 e 2000: 2000), J. Fernandes
Mascarenhas (1971), Maria da Ascenção Carvalho Rogers (1978), Jacinto de
Almeida (19922), Margarida Lalanda (2005), Maria Fernanda Enes
(2010) e Daniel de Sá (2012), e dos Documentos Autobiográficos, Processos oficiais,
Memoriais ou Recolhas testemunhais sobre Madre Teresa da Anunciada (1658-1738),
– para além das prospectivas abordagens
já produzidas sobre complementares facetas da matéria temática e da sincrética fenomenologia
teológico-religiosa, historiográfica, sociocultural, iconográfica,
narratológica e hagiográfica que são intrínsecas ao mesmo domínio, conforme
também pude investigar sucintamente com o saudoso Padre Jacinto Monteiro num
estudo conjunto sobre a Imagem do Senhor Santo Cristo Cristo”, trabalho depois
publicado na Revista da Academia de S.
Tomás de Aquino (Angra do Heroísmo, 1999), repertório que detectamos
consultado e compulsado em minúcia, mas raramente citado (prática assaz feia
mas rotineira em determinados sectores, e na qual muitos colegas académicos ou
universitários amiúde caem quando, por preguiça ou comodidade, lhes dá
sorrateiro jeito...).
Porém – vinha a dizer –, para
além desses trabalhos e de todas as pesquisas, edições e reedições críticas,
conquanto algumas infelizmente pouco acessíveis e outras talvez dependentes do andamento duvidoso do conexo e
problemático “processo de beatificação” (em suspenso?) da nossa Venerável
freira clarissa –, a verdade é que muitas dessas e outras subsidiárias
investigações poderiam e mereceriam ser ainda desejavelmente retomadas e mais multidisciplinar e sistematicamente
desenvolvidas por relação à possibilidade de cotejo com novas e alternativas intertextualidades ascético-místicas e outras universais
categorias, quadros
histórico-críticos, fontes e particularidades hermenêuticas (v.g. a
partir de inerentes e confluentes raízes devocionais canónicas e de piedade
ortodoxa e heterodoxa; de conflitos entre tipologias e carismas das
congregações; de espirituais discursividades análogas; de medievais heranças
franciscanas, contra-reformistas, tridentinas, jesuíticas e barrocas, para já
nem apontar modelos pastorais, sociologias críticas da religião, da sociedade e
da política, a interferência das elites, das ordens e das corporações, etc.)...
– E tudo isto seria tanto mais motivador quanto este Culto vivido teve no passado, e continua igualmente a ter no presente, uma particular modelação regional católica, penitencial e doutrinal, a par de específicos e múltiplos percursos e configurações de apropriação societária (nos Açores em geral, em S. Miguel em particular e nas comunidades da Diáspora,), que assim e por isso – quer como experiência prática, identitária e colectivamente mobilizadora, quer como repositório pessoal, subjectivo e íntimo de vivências subjectivamente transformadoras ou metamórficas – valeria sempre a pena continuar a acompanhar, (re)pensando-o, estudando-o mais e melhor no concreto contexto da sua génese e da sua imaginável evolução, segundo os seus múltiplos legados pretéritos e segundo os actuais sinais dos tempos do Mundo, da Igreja e do Espírito...
– E tudo isto seria tanto mais motivador quanto este Culto vivido teve no passado, e continua igualmente a ter no presente, uma particular modelação regional católica, penitencial e doutrinal, a par de específicos e múltiplos percursos e configurações de apropriação societária (nos Açores em geral, em S. Miguel em particular e nas comunidades da Diáspora,), que assim e por isso – quer como experiência prática, identitária e colectivamente mobilizadora, quer como repositório pessoal, subjectivo e íntimo de vivências subjectivamente transformadoras ou metamórficas – valeria sempre a pena continuar a acompanhar, (re)pensando-o, estudando-o mais e melhor no concreto contexto da sua génese e da sua imaginável evolução, segundo os seus múltiplos legados pretéritos e segundo os actuais sinais dos tempos do Mundo, da Igreja e do Espírito...
3. Para além da primordial e preponderante dimensão religiosa que o Culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres
comporta em S. Miguel (e é precisamente aqui, com prudência e percepção de legitimidades, diga-se entre parênteses,
que também devia ser socio-religiosa, pastoral e teologicamente situada a exemplar polémica
a decorrer por causa da subtracção provisória, para fins
artístico-museológicos, do Resplendor à integridade
iconicamente sacralizada da sua Imagem!), conforme está visivelmente dada em
todo o aparato do cumprimento cíclico
das suas ritualidades orantes e celebrações, teatros litúrgicos, parada de promessas
e ostentação de votos que sistemicamente integram essa devoção –, estas
festividades envolvem um sem número de outras paralelas actividades profanas (que reclamam redes logísticas,
funcionais, organizacionais, técnicas, comerciais e financeiras, todas directa
ou indirectamente envolvidas num enorme e indispensável circuito institucional
e individual de trabalho ordenado, planeado, produtivo e criativo em manutenção
e apoio ajustados, para além de promoções, marketing
turístico-religioso, potenciação mediática, etc., etc.) –, factores importantes
e suscitadores de apurada concertação administrativa e gestão de meios, boas
vontades e empenhos públicos e privados,
não só pelas naturais exigências
qualitativas que todo o respectivo cenário
festivo urbano exige e
compromete, quanto ainda pelos especiais
cuidados que uma concentração humana tão massiva e compacta sempre impõe a
todos os níveis e ponderáveis estratégicos...
Finalmente e ainda a propósito
evocativo desses dias de comemoração, não posso deixar de referir o modo muito
belo como a dimensão memorial, visual e humana das Festas do Senhor Santo Cristo evidenciam um tempo e um espaço de Açorianidade (sempre profundamente
envolvente, mesmo quando breve ou efemeramente marcado, porém ganhando sempre esplendores
luminosos por sobre o peso das vidas,
saudades de redenção, pedidos de cura ou perdão, dádivas do sacrifício
ou medo das dores, rostos do mistério, espera da alegria ou altar das
esperanças das Ilhas...), tal como tão sugestivamente os vejo espelhados no
magnífico e prestigiante livro-álbum que as Edições Letras Lavadas (Publiçor, Ponta Delgada, 2013) em boa hora deram à
estampa, com Textos de José Andrade e Fotos de José António Rodrigues,
mostrando, “De Ponta Delgada para o Mundo”, essa realidade tão nossa e singular,
em autênticos registos de devoção:
– “Dezenas de milhares de almas
corporizam uma das maiores procissões do mundo católico, em cinco horas de
circulação massiva pelas paróquias de S. José, S. Sebastião e S. Pedro –
primeiro, o guião, as opas, as filarmónicas, os anjos, os seminaristas, o clero;
depois, as religiosas, as promessas, as autoridades, as representações, os
escuteiros, os bombeiros; e, entretanto, uma única Imagem. Uma Imagem única.
Poderosa e cativante. Sem igual. À sua passagem ficamos sozinhos na multidão,
de coração entregue ao hino (...). São festas que as palavras não conseguem
descrever e que as imagens ajudam a conhecer, mas que só a fé permite
compreender e viver”!
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