quarta-feira, maio 28, 2014



MEMÓRIA E REGISTOS 
DE DEVOÇÃO


1. De entre as várias formas expressivas da religiosidade e das manifestações da fé religiosa católica dos Açorianos onde quer que vivam – no Arquipélago ou nas derramadas partidas e diásporas desse vasto mundo de residentes fora das ilhas, no continente português e europeu ou nas áreas de fixação da nossa população imigrada nas distantes terras das Américas –, o Culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres ocupa um lugar único, ímpar e absolutamente distinto.


 De facto – entre as diferentes devoções (Festas do Divino Espírito Santo, Culto Mariano, Culto Eucarístico, Culto a Santos, Oragos e Padroeiros...) que aqui e ali foram ganhando e perpetuando implantação e vigências espirituais, históricas, socioculturais e festivas (mais ou menos populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à Igreja e ao Poder secular...) –, as venerações de cariz crístico ou de representação cristológica, isto é, imediata ou mediatamente direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo (Segunda Pessoa da Trindade), estão presentes e são praticadas um pouco por todas as ilhas e espaços de vida, imaginário e memória colectiva do Povo Açoriano.


Assim, dessa mesma recorrente presença devocional, são exemplos principais as festividades em honra ou preito piedoso ao Senhor da Pedra (em Vila Franca do Campo), ao Bom Jesus (em S. Mateus do Pico), ao Santo Cristo da Ribeirinha (no Faial), ao Santo Cristo da Fajã (em S. Jorge) e ao Santo Cristo da Misericórdia (na Praia da Vitória), este último que cedo se nos tornou familiar, tal qual Vitorino Nemésio o evocou analogamente num notável registo confessional e epistolográfico (que aliás retém núcleos simbólicos, mítico-narrativos e telúricos comuns a outros relatos, topografias sagradas e lugares iniciáticos da Tradição açoriana e das reminiscências cristãs da própria condição existencial específica do homo viator insular), deste paradigmático modo:


– “Uma das cenas da minha infância que me ficou gravada a fogo é a da procissão em memória da caída da Praia (...). Dobravam os sinos. (...) Atrás, fechando o préstito, ia o Crucificado que se diz arribado à ilha. Outras vezes, acordando cedo e estremunhado, ouvia defronte o coro que diz Senhor Deus, Misericórdia! E não se sabe se é humano ou se vem do mar às upas”.



Todavia, apesar desta proliferação cultual e votiva do Cristianismo ao seu Senhor Jesus Milagroso (Santo por excelência, o Cristo da Divindade Trina), enquanto e sob a forma revelacional reflectida no Ecce Homo, ou seja – em feição dolorosa, passionária e sofredora – como ícone universal do Homem das Dores), nenhuma outra devoção açoriana – com a excepção radical e essencial das Festas do Espírito Santo! – reúne tão grandes, profundas, complexas e significativas dimensões (religiosas, teológicas, existenciais, psicológicas, filosóficas, etnográficas, éticas e estéticas) quanto aquela que, em conjugação de sortilégios, se foi polarizando e acumulando no Senhor Santo Cristo dos Milagres que permanece hoje, talvez como nunca dantes, perfeitamente identificável e individualizadamente ritualizado de modo muito próprio, apelativo e espectacular no Convento-Santuário da Esperança em Ponta Delgada, de cuja clausura monacal sai anualmente para um concorrido percurso atapetado, qual réplica de desfile real que a todos apela e comove sob o Seu olhar simultaneamente sereno, melancólico e pacificador, pelas ruas labirínticas da cidade, em andor esplendoroso e florido...


  
2. Por outro lado e apesar do referencial tratado biográfico-apologético do Padre José Clemente (com primeira edição em 1763 e sucessivas reproduções contemporâneas); dos meritórios e conhecidos estudos sectoriais de Urbano de Mendonça Dias (1947), Hugo Moreira (com diligente e vastíssima produção especializada entre 1960 e 2000: 2000), J. Fernandes Mascarenhas (1971), Maria da Ascenção Carvalho Rogers (1978), Jacinto de Almeida (19922), Margarida Lalanda (2005), Maria Fernanda Enes (2010) e Daniel de Sá (2012), e dos Documentos Autobiográficos, Processos oficiais, Memoriais ou Recolhas testemunhais sobre Madre Teresa da Anunciada (1658-1738), – para além das prospectivas abordagens já produzidas sobre complementares facetas da matéria temática e da sincrética fenomenologia teológico-religiosa, historiográfica, sociocultural, iconográfica, narratológica e hagiográfica que são intrínsecas ao mesmo domínio, conforme também pude investigar sucintamente com o saudoso Padre Jacinto Monteiro num estudo conjunto sobre a Imagem do Senhor Santo Cristo Cristo”, trabalho depois publicado na Revista da Academia de S. Tomás de Aquino (Angra do Heroísmo, 1999), repertório que detectamos consultado e compulsado em minúcia, mas raramente citado (prática assaz feia mas rotineira em determinados sectores, e na qual muitos colegas académicos ou universitários amiúde caem quando, por preguiça ou comodidade, lhes dá sorrateiro jeito...).



Porém – vinha a dizer –, para além desses trabalhos e de todas as pesquisas, edições e reedições críticas, conquanto algumas infelizmente pouco acessíveis e outras talvez dependentes do andamento duvidoso do conexo e problemático “processo de beatificação” (em suspenso?) da nossa Venerável freira clarissa –, a verdade é que muitas dessas e outras subsidiárias investigações poderiam e mereceriam ser ainda desejavelmente retomadas e mais multidisciplinar e sistematicamente desenvolvidas por relação à possibilidade de cotejo com novas e alternativas intertextualidades ascético-místicas e outras universais categorias, quadros histórico-críticos, fontes e particularidades hermenêuticas (v.g. a partir de inerentes e confluentes raízes devocionais canónicas e de piedade ortodoxa e heterodoxa; de conflitos entre tipologias e carismas das congregações; de espirituais discursividades análogas; de medievais heranças franciscanas, contra-reformistas, tridentinas, jesuíticas e barrocas, para já nem apontar modelos pastorais, sociologias críticas da religião, da sociedade e da política, a interferência das elites, das ordens e das corporações, etc.)...


– E tudo isto seria tanto mais motivador quanto este Culto vivido teve no passado, e continua igualmente a ter no presente, uma particular modelação regional católica, penitencial e doutrinal, a par de específicos e múltiplos percursos e configurações de apropriação societária (nos Açores em geral, em S. Miguel em particular e nas comunidades da Diáspora,), que assim e por isso – quer como experiência prática, identitária e colectivamente mobilizadora, quer como repositório pessoal, subjectivo e íntimo de vivências subjectivamente transformadoras ou metamórficas valeria sempre a pena continuar a acompanhar, (re)pensando-o, estudando-o mais e melhor no concreto contexto da sua génese e da sua imaginável evolução, segundo os seus múltiplos legados pretéritos e segundo os actuais sinais dos tempos do Mundo, da Igreja e do Espírito...



3. Para além da primordial e preponderante dimensão religiosa que o Culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres comporta em S. Miguel (e é precisamente aqui, com prudência e percepção de legitimidades, diga-se entre parênteses, que também devia ser socio-religiosa, pastoral e teologicamente situada a exemplar polémica a decorrer por causa da subtracção provisória, para fins artístico-museológicos, do Resplendor à integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem!), conforme está visivelmente dada em todo o aparato do cumprimento cíclico das suas ritualidades orantes e celebrações, teatros litúrgicos, parada de promessas e ostentação de votos que sistemicamente integram essa devoção –, estas festividades envolvem um sem número de outras paralelas actividades profanas (que reclamam redes logísticas, funcionais, organizacionais, técnicas, comerciais e financeiras, todas directa ou indirectamente envolvidas num enorme e indispensável circuito institucional e individual de trabalho ordenado, planeado, produtivo e criativo em manutenção e apoio ajustados, para além de promoções, marketing turístico-religioso, potenciação mediática, etc., etc.) –, factores importantes e suscitadores de apurada concertação administrativa e gestão de meios, boas vontades e empenhos públicos e privados, não só pelas naturais exigências qualitativas que todo o respectivo cenário festivo urbano exige e compromete, quanto ainda pelos especiais cuidados que uma concentração humana tão massiva e compacta sempre impõe a todos os níveis e ponderáveis estratégicos...


Finalmente e ainda a propósito evocativo desses dias de comemoração, não posso deixar de referir o modo muito belo como a dimensão memorial, visual e humana das Festas do Senhor Santo Cristo evidenciam um tempo e um espaço de Açorianidade (sempre profundamente envolvente, mesmo quando breve ou efemeramente marcado, porém ganhando sempre esplendores luminosos por sobre o peso das vidas, saudades de redenção, pedidos de cura ou perdão, dádivas do sacrifício ou medo das dores, rostos do mistério, espera da alegria ou altar das esperanças das Ilhas...), tal como tão sugestivamente os vejo espelhados no magnífico e prestigiante livro-álbum que as Edições Letras Lavadas (Publiçor, Ponta Delgada, 2013) em boa hora deram à estampa, com Textos de José Andrade e Fotos de José António Rodrigues, mostrando, “De Ponta Delgada para o Mundo”, essa realidade tão nossa e singular, em autênticos registos de devoção:


– “Dezenas de milhares de almas corporizam uma das maiores procissões do mundo católico, em cinco horas de circulação massiva pelas paróquias de S. José, S. Sebastião e S. Pedro – primeiro, o guião, as opas, as filarmónicas, os anjos, os seminaristas, o clero; depois, as religiosas, as promessas, as autoridades, as representações, os escuteiros, os bombeiros; e, entretanto, uma única Imagem. Uma Imagem única. Poderosa e cativante. Sem igual. À sua passagem ficamos sozinhos na multidão, de coração entregue ao hino (...). São festas que as palavras não conseguem descrever e que as imagens ajudam a conhecer, mas que só a fé permite compreender e viver”!
_________

Em "Diário dos Açores" 
(Ponta Dejgada, 29.05.2014):

















e "Diário Insular" 
(Angra do Heroísmo, 01 de Junho de 2014):