As Baleias e o Leviatã
______________________________________________
Cerca de seis anos após ser concebida e planeada como pioneira Sociedade de Estudos aeronáuticos, aeroportuários e de transportes aéreos indubitavelmente situada na conjuntura daqueles conturbados, desafiantes e promissores tempos, cenários e horizontes que marcaram os Açores no início da II Guerra, e depois efectivamente concretizada em meados dos anos 40 do século passado (1947) como Sociedade Açoriana de Transportes Aéreos, pode dizer-se que a SATA determinou desde então as ligações inter-ilhas, constituindo referencial do quotidiano e presença viva no imaginário dos nossos transportes, de modo só comparável ao dos navios e iates que antes sulcavam os mares das ilhas. Comprada depois, em 1980, ao Grupo Bensaude, a SATA passou de companhia privada a empresa regionalizada/nacionalizada, e com nova designação (Serviço Açoriano de Transportes Aéreos) mas sob o mesmo acrónimo, viu as suas acções e responsabilidades de serviço público serem divididas entre a TAP e Governo regional.
– Ora para quem muito viajou e
conviveu de perto com a SATA, com os seus míticos pilotos, aeronaves,
tripulações, funcionários, escritórios exíguos e progressivamente modernizados,
a par de descolagens e aterragens, por entre ventos e nevoeiros, esperas de
aeroporto, reservas e acomodamentos e redireccionamentos, com pequenas e grandes
fugas por entre abertas e fechos do caprichoso e às vezes traiçoeiro tempo das
ilhas atlânticas, a relação com essa companhia não é isenta de uma certa
paixão, de expectativas e confianças, de um certo ambiente de família,
proximidade de sentimentos e partilha de condições de vida, apesar de algumas
angústias, desencantos e desilusões (algumas motivadas pelos muitos poços de ar e descaminhos e indefinições
que estão na base e decorrem de oscilações de uma Política Aérea pouco
transparente, pouco racional, incoerente e amiúde até pouco justa).
Por outro lado, os felizmente raros
mas dramáticos e traumáticos acidentes com os seus aviões ainda mais
solidificaram os laços que memorialmente ligam as ilhas e o nosso povo à SATA,
fazendo crescer um envolvimento singular, simbolicamente
identificativo, que gerou mecanismos de confiança – por assim dizer, uma
certa açorianidade em viagem (dentro
dos Açores e fora deles, por e para todo o mundo onde vão ou de onde regressam
os Açorianos) –, quase com sentimentos tácitos e julgados maiores direitos de
acolhimento, expectativas de solidariedade e mesmo alguma esperança (conquanto
nem sempre correspondida!) de união de esforços e partilhas de pátria ou expatriação...
A sobra das notáveis (e também das
infelizmente trágicas) histórias da
SATA é mais ou menos conhecida, e não vale a pena, nem é propósito desta
Crónica, tratá-las hoje, muito embora muitas das peripécias a que estamos
assistindo hoje pudessem ser bem mais claramente situadas, explicadas e
compreendidas à luz dos percursos, rotas e cumplicidades em escala e cadeia... – de onde ninguém poderá atirar
primeiras pedras às rodas e trens da empresa... – dessa e de outras “parcerias”
mais ou menos “estratégicas”, envolvendo nomeações, administrações, gestão,
negócios, financiamentos, subsídios e políticas, favores e escolhas de ocasião
e conveniência, jogos de gabinete e secretaria, corredor, cabine, porão, lobbies profissionais e técnicos,
concorrências e concursos e vagas e promoções, etc., – como cada vez é mais
evidente aos olhos de quem por aí quiser observar (e sindicar) a fundo, em terra e no ar, onde dos serviços e amabilidades do velho
slogan da SATA às vezes já pouco resta por esses balcões e voos adiante e
atrás, nas ilhas e na diáspora, onde a alguns yuppies e fedelhos e fedelhas de gravatinha, farda e calças de fino
toque mas pouca transparência, civilidade e cortesia, melhor fora que os
chamassem ou despedissem um a um...
– Mas pior do que isso é a criminosa e demencial audácia de quem
veio agora (impunemente!?) propalar a
existência (fictícia ou real?) de gravíssima insegurança potencial (e de
esterco pouco higiénico alegadamente à mistura) nos aviões da SATA onde todos
viajamos à guarda e ao zelo exigíveis
a todas as companhias de aviação, sejam elas privadas ou públicas, porém aqui sem
que a verdade tenha sido radicalmente
apurada e a confiança reposta, antes que as nossas asas e o chão que
pisamos mais se confundam e invertam!
Neste contexto – e talvez bem mais
real e figurativamente ligado a tudo o que aqui dizemos... – não posso
finalmente deixar de referir o quanto directa e indirectamente decorre, ou pode
deixar transcorrer, da recentíssima e última iniciativa da SATA, ao renomear o
seu desdobramento de SATA Internacional
para Azores Airlines (o que obrigará
por certo a repintar/redecorar/reeditar todas as aeronaves nesse serviço, e bem
assim, provavelmente, todo o material
icónico ligado à mesma frota), com certeza em obediência a calculados,
estudados, orçamentados e opcionais ditames rentabilizadores e com prioridades
comerciais e técnicas sérias, a custo/benefício calculado para o marketing, a imagem
e as promoções decorrentes...
No essencial, e do aparatoso e novel grafismo e
respectiva reelaboração integrada, portanto, o que veremos doravante no bojo
dos aviões da Azores Airlines (SATA?)
será uma gigantesca baleia (ou cachalote, para o caso tanto faz) cuja concepção estética (ao menos esta...) é
bastante discutível, de todos os pontos de vista.
É claro que desse gigante dos oceanos
– mamífero marinho muito ligado à ancestral história das fainas, ficções
literárias, belos artesanatos, caçadas arrojadas, indústrias desaparecidas,
hodiernas sensibilidades ecológicas e observações neo-turísticas nos mares e
faunas dos Açores, pelos Açorianos e pelos tão desejados, necessários e
putativos visitantes nacionais e da estranja – muito haverá que se lhe diga e contradiga, conforme a perspectiva, não fora a diversidade e mesmo o contraditório e – claro, para bom ou
mau entendedor – ainda a inerente equivocidade
simbólica daquela figuração, carregada que está de muitas e díspares conotações, como devia saber-se com prudência e
arte dos signos...
– Todavia, ficará esse exercício de simbologia aplicada (a um terreno que é também económico-empresarial,
financeiro, técnico-operacional e de mercado), para outra ocasião, enquanto por
hoje ficaremos apenas reflectindo na lenda bíblica de Jonas e na confluente alegoria
do Moby Dick de Melville, mas sem
esquecer o paralelo e potencial sentido oposto, disforme e
aterrador, do Leviatã, – tudo coisas
que os imaginativos ilustradores da Azores
Airlines porventura ignoram ou terão descurado, e que os seus
administradores, gestores, “public-relations” ou agentes de marketing muito
pouco terão levado em sabida conta, lá para os altos ares e fundos mares que os
nossos aviões vão cruzar, com muita gente acomodando-se aos esguichos, barbas,
entranhas, vísceras e espermacetes daqueles tecnologicamente avançados irmãos
(?) dos belos e saudosos pássaros açorianos das brilhantes e solares asas da antiga
e elegante SATA, – esses que agora hibridamente
vão voar travestidos de pesados cetáceos, à semelhança de tudo o resto que nos rodeia,
com barbatanas roídas e olhos fixados nos abismos que nos cercam no ar, no mar
e em terra também!
__________________
Em "Diário dos Açores",
Ponta Delgada, 20.10.2015: