sexta-feira, outubro 16, 2015


Svetlana Aleksievitch:
Desenganos da Utopia
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A atribuição do Prémio Nobel 2015 da Literatura à escritora Svetlana Aleksievitch chamou a atenção do mundo para uma obra singular, que tem vindo a ganhar crescente notoriedade na Europa, não só pelo seu carácter propriamente literário, vertente ensaística e estilo narrativo quanto também pelos conteúdos da problemática sociopolítica, cultural e filosófica que a atravessa e profundamente modela.


Nascida em 1948 na Ucrânia, então pertencente à URSS, o difícil (e arriscado...) trabalho de Svetlana Aleksievitch, mormente através da recolha de entrevistas, arquivo de confissões e registo de histórias de vida, oscilando sempre entre textos profundamente realistas (alguns quase surrealistas e para-ficcionais de tão cruamente contados...), numa espécie de investigação antropológica de campo que é igualmente um talentoso misto de pesquisa etnológica e de reportagem jornalística –, tem vindo a permitir-lhe abordar (denunciando...) a experiência histórica, ética, espiritual, ideológica e psico-existencial da chamada era pós-soviética e das verdadeiramente traumáticas implicações modernas e contemporâneas que as suas mais relevantes fracturas sociopolíticas (Perestroika), ambientais (Chernobyl), bélicas (Guerras Mundiais, Afeganistão e Chechénia), institucionais e morais, atingindo quase todas as classes, camadas e etnias populacionais da extinta URSS, provocaram na dramática reconfiguração destinal e simbólica do “homem soviético” da sua mentalidade e desencantos “saudosistas”, patrióticos ou nacionalistas, num quadro – digamos – de “ocidentalização” pelo pior, por entre derivas juvenis, “boom” consumista, guetização e proliferação de drogas, violências urbanas, manifestações racistas e iconoclastas, – enfim –, de todos os mitos soviéticos, pós-soviéticos e... neo-soviéticos, essencialmente irmanados com os vícios, perversidades e taras seculares e mundanas (e metafísicas!) de um Ocidente decadente e impotente em sua cancerígena e já universal podridão...



– E é evidente que, neste caso, para Svetlana Aleksievitch, tais motivos próximos foram e são ainda, entre outros, o regime de Loukachenko e o voraz czarismo neoimperial de Putin (como escreveu em 2014 no Le Monde, a propósito da anexação da Crimeia e do “histerismo” neonacionalista russo); as causas dos descendentes das purgas estalinistas e do actual controlo, instrumentalizações e propagandas dos media; as vítimas do Gulag; as aberturas da era Gorbatchev; o golpe de 1991; a acumulação neocapitalista das grandes fortunas, monopólios e grémios empresariais; a criação dos gangs mafiosos russos e seus ajustes de contas criminosos; o desemprego dos universitários ou a sua única sobrevivência possível no mercado dos pequenos serviços, trabalhos no comércio ou em biscates precários, e a global degradação das condições de vida, saúde, habitação, educação, etc.  





Porém, acima de tudo e paralelamente a tudo isso (amiúde por isso mesmo!), Aleksievitch tem testemunhado na sua obra todo um universo de fixações utópicas naquele passado “comunista” (soviético), conquanto objectivamente perdido e volatilizado hoje, porém re-activo e constatável nos interstícios do desenvolvimento sofredor (pático e amiúde patológico) de mecanismos compensatórios e ilusórios (ressentidos, frustrados e desenganados), ao mesmo tempo quase delirantes, regressivos e até suicidários, conforme os seus livros vem revelando, desde 1983-85 (com o impressionante repositório narrativo de vivências de soldados e testemunhos femininos da II Grande Guerra) até ao O Fim do Homem Soviéticoúnica publicação sua traduzida em português, na Porto Editora, por António Pescada –, obra vencedora do Premio Médicis Ensaio e Livro do Ano escolhido pela Revista Lire, em 2013.


– “Escrevo a história das almas”, assim se exprimia num depoimento concedido a Michel Eltchanioff (antigo professor universitário, especialista em Dostoievski e actual chefe-de-redacção adjunto da Philosophie Magazine), onde a bielorrussa, após recordar a infância, formação universitária e intelectual, leituras e primeiros ideários e influências ideológicas (Gramsci, Freud, Nietzsche, Adamovitch), caracteriza o método da sua escrita por relação ao mundo que lhe tem sido dado viver, sofrer e observar, deste modo: 

“Não procuro – diz, recusando assumir tanto o papel de jornalista como o de historiadora – produzir um documento mas esculpir a imagem de uma época. É por isso que levo entre sete a dez anos para redigir cada livro. Registo centenas de pessoas. Torno a ver a mesma pessoa várias vezes. Com efeito, é preciso, antes de mais, libertá-la da banalidade que ela possui”, como se se tratasse de um mal que ela tenha, ou tivesse, em si mesma ou por si própria...


Ora é certamente por essas marcas narrativas (e éticas!), onde tantas vozes se erguem e cruzam, que a Academia Sueca lhe atribuiu agora um Nobel, mais salientando o carácter polifónico de uma obra que pode ser vista como “um memorial ao sofrimento e à coragem na nossa época”. De resto, segundo me parece, os livros desta escritora deveriam valer também para a elaboração de uma complementar perspectivação daquilo a que François Furet chamou de O Passado de uma Ilusão – Ensaios sobre a Ideia Comunista no Século XX, que aliás e já de si, de certo modo, parafraseava, para analogar sob um fundo comum, muito daquilo que pode estar na base de fenómenos próximos como o totalitarismo, o fanatismo, o fascismo, o militarismo, outras e demais pulsões de morte pessoal e colectiva, e poder de Estado e Vontade de Poder, Destino e Cultura, Violência e Civilização, Crença, Utopia e (des)Ilusão, e Desengano, como na famosa obra de Freud O Futuro de uma Ilusão...


Finalmente, da obra de Svetlana Aleksievitch poder-se-á dizer que nos traz não só um retrato trágico da grande História e da Ideia do “comunismo”, tal como foram historicamente tentados na falhada experiência soviética, como também nos revela o interior existencial, concreto e real das pequenas histórias individuais da vida de cada um dos milhões de homens que acreditaram num (nesse?) Ideal de Humanidade nova e “reconciliada consigo mesmo”, como teorizava Marx, – sonho imemorial de uma sociedade justa e perfeita, desejo afinal latente naquele subconsciente ideologicamente construído e condicionado e hoje ainda nostalgicamente latente no heróico e messiânico Povo russo, mesmo face ao fracasso, ou pelo próprio falhanço, do modelo real de sociedade e de regime politico-historicamente impostos e/ou assumidos, com temor e terror concentracionários também, na URSS e seus domínios ou satélites, conforme Aleksievitch espantosamente revela à luz crua da realidade ou da sua negação!


– Assim, nos tempos conturbados que vivemos, a obra de Svetlana Aleksievitch contém tanto um aviso de perigo como uma esperança realista, quer para quem nunca acreditou como para quem sempre sonhou e confiará nos valores civilizacionais de um projecto outro, humanista e humanizante, face a tudo o que degrada o Homem e aliena a prudente rectidão reguladora das unicamente necessárias utopias integrais que podem fazer avançar o Mundo, crescer a Justiça e assegurar a Liberdade.
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Em "Diário dos Açores", Ponta Delgada (17.10.2015):