Svetlana Aleksievitch:
Desenganos da Utopia
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A atribuição do Prémio Nobel 2015 da Literatura à
escritora Svetlana Aleksievitch chamou a atenção
do mundo para uma obra singular, que tem vindo a ganhar crescente notoriedade
na Europa, não só pelo seu carácter propriamente literário, vertente ensaística
e estilo narrativo quanto também pelos conteúdos
da problemática sociopolítica, cultural e filosófica que a atravessa e
profundamente modela.
Nascida
em 1948 na Ucrânia, então pertencente à
URSS, o difícil (e arriscado...) trabalho de Svetlana Aleksievitch, mormente
através da recolha de entrevistas, arquivo de confissões e registo de histórias
de vida, oscilando sempre entre textos profundamente
realistas (alguns quase surrealistas
e para-ficcionais de tão cruamente contados...),
numa espécie de investigação antropológica de campo que é igualmente um talentoso
misto de pesquisa etnológica e de reportagem jornalística –, tem vindo a
permitir-lhe abordar (denunciando...) a experiência histórica, ética,
espiritual, ideológica e psico-existencial da chamada era pós-soviética e das verdadeiramente traumáticas implicações modernas e contemporâneas que as suas mais relevantes fracturas sociopolíticas (Perestroika), ambientais (Chernobyl), bélicas (Guerras Mundiais,
Afeganistão e Chechénia), institucionais
e morais, atingindo quase todas as classes, camadas e etnias
populacionais da extinta URSS, provocaram na dramática reconfiguração destinal e simbólica do “homem soviético”
da sua mentalidade e desencantos “saudosistas”, patrióticos ou nacionalistas,
num quadro – digamos – de “ocidentalização” pelo
pior, por entre derivas juvenis, “boom” consumista, guetização e
proliferação de drogas, violências urbanas, manifestações racistas e
iconoclastas, – enfim –, de todos os
mitos soviéticos, pós-soviéticos e... neo-soviéticos,
essencialmente irmanados com os vícios, perversidades e taras seculares e mundanas (e metafísicas!) de um Ocidente decadente e impotente em sua cancerígena
e já universal podridão...
– E
é evidente que, neste caso, para Svetlana Aleksievitch, tais motivos próximos
foram e são ainda, entre outros, o regime de Loukachenko e o voraz czarismo neoimperial de Putin (como escreveu
em 2014 no Le Monde, a propósito da
anexação da Crimeia e do “histerismo” neonacionalista russo); as causas dos
descendentes das purgas estalinistas e do actual controlo, instrumentalizações
e propagandas dos media; as vítimas
do Gulag; as aberturas da era Gorbatchev; o golpe de 1991; a acumulação
neocapitalista das grandes fortunas, monopólios e grémios empresariais; a
criação dos gangs mafiosos russos e seus ajustes de contas criminosos; o
desemprego dos universitários ou a sua única sobrevivência possível no mercado
dos pequenos serviços, trabalhos no comércio ou em biscates precários, e a
global degradação das condições de vida, saúde, habitação, educação, etc.
Porém, acima de tudo e paralelamente
a tudo isso (amiúde por isso mesmo!),
Aleksievitch tem testemunhado na sua obra todo
um universo de fixações utópicas naquele passado “comunista”
(soviético), conquanto objectivamente perdido e volatilizado hoje, porém
re-activo e constatável nos interstícios do desenvolvimento
sofredor (pático e amiúde patológico)
de mecanismos compensatórios e ilusórios (ressentidos, frustrados e desenganados),
ao mesmo tempo quase delirantes, regressivos e até suicidários, conforme os seus livros vem revelando, desde 1983-85
(com o impressionante repositório narrativo de vivências de soldados e testemunhos
femininos da II Grande Guerra) até ao O Fim do Homem
Soviético – única publicação sua traduzida
em português, na Porto Editora, por António Pescada –, obra vencedora do Premio Médicis Ensaio e Livro do Ano escolhido pela Revista Lire, em 2013.
– “Escrevo
a história das almas”, assim se exprimia num depoimento concedido a Michel
Eltchanioff (antigo professor universitário, especialista em Dostoievski e
actual chefe-de-redacção adjunto da Philosophie
Magazine), onde a bielorrussa, após recordar a infância, formação
universitária e intelectual, leituras e primeiros ideários e influências
ideológicas (Gramsci, Freud, Nietzsche, Adamovitch), caracteriza o método da sua escrita por relação ao mundo que lhe tem sido
dado viver, sofrer e observar, deste modo:
“Não procuro – diz, recusando
assumir tanto o papel de jornalista como o de historiadora – produzir um
documento mas esculpir a imagem de uma época. É por isso que levo entre sete a
dez anos para redigir cada livro. Registo centenas de pessoas. Torno a ver a
mesma pessoa várias vezes. Com efeito, é preciso, antes de mais, libertá-la da
banalidade que ela possui”, como se se tratasse de um mal que ela tenha, ou tivesse, em si mesma ou por si própria...
Ora
é certamente por essas marcas narrativas (e éticas!), onde tantas vozes se
erguem e cruzam, que a Academia Sueca lhe atribuiu agora um Nobel, mais salientando
o carácter polifónico de uma obra que
pode ser vista como “um memorial ao sofrimento e à coragem na nossa época”. De
resto, segundo me parece, os livros desta escritora deveriam valer também para
a elaboração de uma complementar perspectivação daquilo a que François Furet
chamou de O Passado de uma Ilusão –
Ensaios sobre a Ideia Comunista no Século XX, que aliás e já de si, de
certo modo, parafraseava, para analogar sob um fundo comum, muito daquilo que pode
estar na base de fenómenos próximos
como o totalitarismo, o fanatismo, o fascismo, o militarismo, outras e demais pulsões de morte pessoal e colectiva, e
poder de Estado e Vontade de Poder, Destino e Cultura, Violência e Civilização,
Crença, Utopia e (des)Ilusão, e Desengano, como na famosa obra de Freud O Futuro de uma Ilusão...
Finalmente,
da obra de Svetlana Aleksievitch poder-se-á dizer que nos traz não só um retrato trágico da grande História e da
Ideia do “comunismo”, tal como foram historicamente
tentados na falhada experiência
soviética, como também nos revela o
interior existencial, concreto e real
das pequenas histórias individuais da vida de cada um dos milhões de homens que
acreditaram num (nesse?) Ideal de
Humanidade nova e “reconciliada consigo mesmo”, como teorizava Marx, – sonho imemorial de uma sociedade justa e
perfeita, desejo afinal latente naquele subconsciente
ideologicamente construído e condicionado e hoje ainda nostalgicamente latente no heróico e messiânico Povo russo, mesmo
face ao fracasso, ou pelo próprio
falhanço, do modelo real de
sociedade e de regime politico-historicamente impostos e/ou assumidos,
com temor e terror concentracionários
também, na URSS e seus domínios ou satélites, conforme Aleksievitch
espantosamente revela à luz crua da realidade ou da sua negação!
– Assim,
nos tempos conturbados que vivemos, a obra de Svetlana Aleksievitch contém tanto
um aviso de perigo como uma esperança realista, quer para quem nunca
acreditou como para quem sempre sonhou e confiará nos valores civilizacionais de um projecto outro, humanista e
humanizante, face a tudo o que degrada o Homem e aliena a prudente rectidão reguladora
das unicamente necessárias utopias
integrais que podem fazer avançar o Mundo, crescer a Justiça e assegurar a
Liberdade.
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